Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*
Porque apaixonado por suas criaturas, Deus jamais as deixará entregues à própria sorte. |
Pelo fato de ter sido criado do
“nada”, o ser humano foi querido pelo Criador como autônomo e, portanto,
livre. O pecado humano só é possível dentro do horizonte da liberdade e
autonomia que lhe foram oferecidas pelo Criador. Porque livres é que
podemos chegar ao ponto de nos considerarmos emancipados e, por isso,
separados do Criador e das demais criaturas. O pecado, assim concebido,
resulta como uma possível resposta nossa à presença e interpelação do
Criador em nossa vida. Somos, de fato, destinados ao encontro e à
comunhão com as criaturas e com o Criador. Não fomos, para todos os
efeitos, condicionados a isso. Esta comunhão, acolhida como nossa
destinação primeira, nos é proposta, jamais imposta, pelo Criador.
O pecado consiste na concretização deste fechamento nosso com relação
ao Criador e às criaturas. Ele é, nesse sentido, expressão da decisão
livre do ser humano de viver por conta própria, não se preocupando em
realizar aquela destinação primeira à qual se sente chamado. O ser
humano pode, em virtude de sua liberdade, se autoconceber como razão de
si mesmo e, portanto, comportar-se de conseqüência. Pode, na realidade,
viver para si e em função única e exclusivamente de si e de seus
interesses próprios.
Enveredando por este caminho, o ser humano pode ir se fechando cada
vez mais em seu próprio mundo e, assim, selar definitivamente seu
destino de isolamento e morte. Ele acaba empenhando, desta forma, sua
própria liberdade na negação de sua identidade mais genuína, enquanto
criatura querida por Deus e destinada ao encontro e à comunhão com Ele e
com as demais criaturas.
É precisamente nas profundezas deste “nada do pecado” que o Filho
unigênito de Deus mergulha para poder arrancar o ser humano preso aí
dentro. Trata-se de um processo de autêntica kénosis, de um despojamento
total, expresso mediante a radical proximidade ao diferente na sua mais
extrema alteridade. O Filho de Deus se solidariza com o ser humano
caído, desfigurado, vítima de suas decisões e, enfim, enredado em suas
próprias malhas.
Como atesta um dos textos mais antigos do Segundo Testamento, o hino
cristológico pré-paulino que se encontra na Epístola aos Filipenses 2,
5-11:
“Tende em vós os mesmos sentimentos
de Cristo Jesus: Ele, subsistindo na condição de Deus, não se apegou à
sua igualdade com Deus. Mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição
de escravo, tornando-se solidário com os seres humanos. E,
apresentando-se como simples homem, humilhou-se, feito obediente até à
morte, até a morte numa cruz. Foi por isso que Deus o exaltou e lhe deu o
Nome que está acima de todo nome. Para que ao nome de Jesus se dobre
todo joelho de quantos há no céu, na terra, nos abismos, e toda língua
proclame, para glória de Deus Pai, que Jesus Cristo é Senhor”.
E esta solidariedade para além de toda e qualquer expectativa é
expressão do amor gratuito de Deus para com cada ser humano, para com
todos os seres humanos e para com todas as criaturas. No mistério da
encarnação de Seu Filho unigênito, culminada na sua paixão solidária e
redentora, o próprio Deus se aproxima em liberdade do ser humano
enredado nas malhas do pecado. E o faz não propriamente para lhe impor
sua vontade, mas para interpelá-lo uma vez mais e, desta vez decidida e
definitivamente, ao amor.
O caminho livremente escolhido, porque querido, por Deus para
realizar esta última e definitiva interpelação ao ser humano é a
solidariedade. E, através desta sua escolha, Deus se revela sobremaneira
como o servidor de toda humana criatura e de todas as criaturas suas. O
expediente que Deus escolhe para demover suas criaturas do isolamento
do pecado é o da sedução amorosa. Não sucumbe à tentação da ostentação
do poder, como poderia ser, por exemplo, a de impor ao ser humano sua
vontade mediante decretos e embaixadas. Ele mesmo vem ao encontro do ser
humano e se solidariza com ele, assumindo sua condição e sua própria
sorte, para, a partir do interior de sua situação, resgatá-lo em sua
dignidade singular de filho de Deus e, portanto, irmão Seu e morada do
Espírito Santo.
Em seu Filho encarnado, Deus penetra naquele espaço que representa a
negação cabal de si mesmo, para se solidarizar com o ser humano pecador
e, assim, realizar aquela reconciliação almejada, desde todos os tempos,
por Ele. Trata-se de uma experiência, para todos os efeitos, kenótica,
fruto do amor gratuito e desinteressado do Criador por suas criaturas.
Nem mesmo o pecado é capaz de representar uma barreira intransponível a
Deus. No seu imenso amor, Ele é capaz de transpor todo e qualquer
obstáculo para realizar seu eterno desígnio de amor.
Porque apaixonado por suas criaturas, Deus jamais as deixará
entregues à própria sorte. Muito menos as tratará com indiferença, mesmo
naquelas situações em que suas criaturas se fecham a seu amor. Ele
permanece sempre na espreita, aguardando toda e qualquer oportunidade
para que possa revelar seu amor e comunicar-nos seus apelos. Jamais,
porém, faltará com o respeito para com nossa liberdade. Respeitá-la-á
até o fim sem com isso manifestar-se indiferente.
*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia
Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze
anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na
Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis.
Desde 2012, professor de Teologia.

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