Por Sinivaldo S. Tavares, OFM*
Para criar do nada, Deus precisa, em primeiro lugar, constituir o nada.
Duas são as perspectivas para se
considerar a “criação do nada”: a partir do Criador e a partir do ser
humano, criatura na qual aflorou a consciência deste gesto singular de
Deus e da peculiar relação existente entre Criador e criatura. Na ótica
do criador, o criar a partir “do nada” é, rigorosamente falando, criar a
partir de si mesmo. Neste sentido, tinha razão o Mestre Eckart quando
insistia que a “creatio ex nihilo” era, no fundo, “creatio ex Deo”.
Por ser o único Deus, sua presença é plena. Não existe nada que possa
escapar aos raios de sua presença. Não existe, a rigor, coisa qualquer
que se possa considerar “fora de Deus”. Deus na sua onipotência infinita
se revela também como onipresente.
Contudo, para criar do nada, Deus precisa, em primeiro lugar,
constituir o nada, não propriamente como um espaço fora dele, mas, como
um espaço autônomo, ainda que dentro dele. E esta constituição do nada,
como passo primeiro e imprescindível para a criação de todas as
criaturas, se dá mediante uma retração quenótica do Criador. É como se o
Criador se retirasse, reservando assim um espaço que pudesse ser
ocupado por suas criaturas autônomas, apesar de continuar a envolvê-as
por todos os lados. Talvez a metáfora do útero materno possa tornar mais
clara esta concepção do criar do nada como processo de retração do
Criador em vistas da autonomia da criatura. A geração do filho implica
no fato da mãe lhe reservar um espaço no interior do qual seu rebento
possa crescer com relativa autonomia. Não que o útero constitua um
espaço separado do corpo da mãe. Ele demarca um espaço reservado para o
crescimento do feto, mas que permanece envolto por todos os lados pelo
corpo da mãe.
De forma análoga, o Criador se retrai para dar lugar às suas
criaturas, respeitando-lhes a autonomia. Mas isto não significa que o
Criador se desinteresse por elas ou que as trate com indiferença. Ao
contrário, continua envolvendo-as por todos os lados com sua terna
presença; embora as respeite em sua sadia autonomia e soberana
liberdade. Em outras palavras, o Criador confere a suas criaturas uma
consistência própria. Criar “do nada” significa ainda respeitar as
criaturas na sua irredutível diferença. Criar “a partir do nada” implica
em pôr diante de si o diferente como potencial alteridade face à
própria singularidade de Criador e, portanto, seu interlocutor na trama
histórico-salvífica, cujo desfecho querido e proposto pelo Criador é o
encontro e a comunhão com suas criaturas.
Concebida a partir do ser humano, esta criação “do nada” constitui a
condição da possibilidade de sua liberdade. Fomos queridos livres para
que pudéssemos amar. Pois o amor pressupõe decisão livre e espontânea.
Não se pode constranger alguém ao amor. Amor pressupõe liberdade.
Ademais, porque criado e querido “do nada”, o ser humano é livre até
para se considerar, para todos os efeitos, causa de si próprio, negando
em tudo e por tudo sua umbilical relação com o criador.
Por outro lado, o ser humano também pode sucumbir à tentação de
exercitar sua liberdade, porém, negando-a, preferindo viver como um
eterno dependente do Criador, incapaz de empenhar a própria liberdade no
exercício de uma sadia autonomia face ao mesmo. Nesse sentido, o ser
humano vive como se estivesse na corda bamba, dividido entre o
considerar-se dependente e o rebelar-se contra seu criador, vivendo como
emancipado e isolando-se, portanto, do Criador e das demais criaturas.
Assumir a própria existência na mais genuína autenticidade significa
aceitar sua condição primordial de criatura querida por Deus como “ser
do nada”. O ser humano não constitui uma mera continuação ou extensão de
seu Criador. A relação que existe entre Criador e criatura não se
resume a uma continuidade pura e simples ou a algo que se dê de forma
natural e espontânea. A relação entre Deus e nós é fruto de uma decisão
livre, por parte de ambos, que se dá mediante relações de reciprocidade
no bojo da qual possam emergir alteridades e singularidades.
Não fomos criados para permanecer numa dependência paralisante e
castradora, comprometendo assim nossa singularidade. Não fomos queridos
para permanecer num eterno infantilismo. Deus nos quer e nos trata como
adultos. Quer que nos empenhemos de maneira lúcida e consciente na
tarefa de corresponder a seus apelos. Quer que nossa resposta seja livre
e madura, expressão de uma sincera vontade de corresponder a seu amor
gratuito e inusitado para conosco. Quer, em suma, que nossa resposta
também seja expressão de amor.
Nesse sentido, Deus não se encontra apenas na origem de nossa
existência, como uma espécie de primeiro movente, sujeito de um impulso
primordial, que, depois de ter dado origem a todo e qualquer movimento,
permanece distante e indiferente à nossa sorte e ao nosso destino. Mas,
ao contrário, por respeitar nossa autonomia e liberdade, Ele se coloca
do nosso lado, dispondo-se a percorrer conosco, lado a lado, os caminhos
difíceis da história, como nosso companheiro, interlocutor
privilegiado. Mais ainda, Deus nos envolve por todos os lados e vem
habitar no mais íntimo de nós, sem, contudo, violentar minimamente nossa
autonomia e liberdade.
Deus se nos revela sobremaneira como futuro em aberto, atraindo a
história e o cosmos todo para um final bom e plenificador. E porque se
encontra no futuro, é que Ele continua e continuará sempre a criar o
mundo “do nada” de sua insignificância, constituindo-o continuamente
enquanto cenário da trama amorosa para com suas criaturas que terá seu
desfecho na Parusia final. Este final dos tempos concebido não apenas
como os tempos derradeiros, mas como a plenitude de todo o tempo,
culminará na transfiguração não apenas da existência de cada uma e de
todas as criaturas, mas na transfiguração total e completa do inteiro
cosmos, potencializando e explicitando ao máximo suas mais íntimas inter
e retro-relações.
Assim concebido, “o nada” a partir do qual Deus cria se revela como
lugar de uma insólita e inusitada fecundidade. O nada não se confunde
com a total ausência de toda e qualquer coisa. Ele é, em última
instância, a possibilidade máxima da existência de todas as coisas. A
“criação do nada”, compreendida escatologicamente significa a máxima
potencialização do “nada” por desejo gratuito do Criador para que as
criaturas oriundas dele convirjam, com lento vagar, ao encontro último e
definitivo dos tempos derradeiros. Em outras palavras, sem faltar com o
respeito para com a autonomia de suas criaturas, respeitando-as ao
máximo em sua liberdade, o Criador as predispõe a celebrar com ele
aquele encontro de comunhão reservado para a plenitude de todo o tempo.
*Frei Sinivaldo S. Tavares, OFM é doutor em Teologia
Sistemática pela Pontificia Università Antonianum, Roma. Durante treze
anos, professor de Teologia Fundamental e de Teologia Sistemática na
Faculdade de Teologia do Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis.
Desde 2012, professor de Teologia.

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