Fonte: Revista Catolicismo, Nº 789, setembro/2016
A reviravolta dos dois Sínodos dos Bispos sobre a família e da Exortação Apostólica Amoris laetitia, do Papa Francisco. Mudanças na linguagem e o emprego de palavras-talismã numa nova pastoral relativista e permissiva incapaz de iluminar os que erram, converter os pecadores e solidificar os fundamentos da instituição familiar.
O debate que animou os dois últimos Sínodos dos Bispos sobre a família (2014 e 2015) tem suscitado reações opostas, mas os documentos publicados não avançaram propostas concretas sobre como curar os males da vida matrimonial e doméstica. Alguns comentaristas concluíram que os Sínodos não mudaram nada de substancial. No entanto, a Exortação Apostólica pós-sinodal Amoris laetitia, recentemente publicada pelo Papa Francisco, propõe explicitamente uma nova abordagem global da pastoral familiar.
Para termos uma opinião abalizada que pudesse esclarecer a questão, entrevistamos o estudioso italiano Guido Vignelli [foto ao lado], residente em Roma, diretor durante 20 anos do Projeto SOS Jovens e ex-membro da Comissão sobre a Família junto à Presidência do Conselho de Ministros da Itália. Recentemente ele escreveu o livro intitulado Uma revolução pastoral – Seis palavras-talismã no debate sinodal sobre a família [foto no alto], precisamente sobre os problemas suscitados pelas palavras, ideias e tendências emergentes após os dois Sínodos. A obra está sendo divulgada em três línguas pela TFP italiana, e uma edição brasileira está sendo preparada.
Guido Vignelli visa sistematicamente a realidade. Ele vai buscá-la no fluxo das modas sempre cambiantes, no curso das ideias em circulação, no estrépito dos acontecimentos atuais. Sua acuidade penetra a modernidade com seus alegres enganos e manifestações otimistas. Visão da realidade é virtude cada vez mais rara, seja nos livros, seja no jornalismo. Prevalece de modo geral o “pensamento único”, o famoso “politicamente correto”.
Ele mostra em suas obras, subjacente à euforia moderna, a profunda insatisfação do homem contemporâneo, consequência do fato de se ter liberado de Deus e menosprezado a sua Lei. Também aborda o tema dos malefícios da televisão e sua ação brutal, particularmente sobre a infância. Seus escritos sobre técnicas modernas têm acolhida sobretudo em meios católicos. Visam devolver à sociedade a felicidade perdida pelo afastamento da Igreja.
Os erros penetrados na Igreja atingem hoje graus paroxísticos. Fiéis são constrangidos em massa a adotar uma “nova mentalidade” e a ter a salvação eterna como fruto apenas de “boa consciência”, sem consideração pela lei moral. Uma alegada sinceridade de sentimento prima sobre a noção de pecado. Pecado? Este é tido como um conceito superado.
Nesta entrevista, Guido Vignelli, a propósito de seu livro Uma revolução pastoral, analisa um método insidioso de penetração de erros atuais na Igreja com o fim de destruir a moral básica da instituição familiar. Ferramenta essencial desse método são as “palavras-talismã”, cuja magia mediática penetra os espíritos e até importantes documentos do magistério eclesiástico. Essa obra de Vignelli se inspira na análise percuciente da realidade efetivada por Plinio Corrêa de Oliveira em sua obra Baldeação Ideológica Inadvertida e Diálogo, obra básica do pensamento católico contra-revolucionário, da qual este autor italiano é grande difusor na Europa.
Catolicismo — Que tipo de mudanças são esperadas na nova pastoral familiar?
Guido Vignelli — Alguns afirmam que essas mudanças vão
modificar a pastoral familiar não em sua substância, mas apenas em seu
“estilo” de expressar-se e de agir. Cumpre objetar-lhes que é
precisamente este campo delicado e escorregadio que causará problema. As
mudanças na linguagem e na prática podem ser decisivas porque, quando
se modifica a maneira de expressar e de agir, as coisas tendem a mudar.
Tanto os sínodos episcopais quanto a posterior Exortação pontifícia Amoris laetitia propuseram “um novo léxico que revoluciona a pastoral”,
como advertiu “Avvenire” — jornal da Conferência Episcopal Italiana
(24-4-16). Portanto, pode-se esperar que esse “léxico revolucionário”
exercerá influência cada vez maior, não só na questão familiar, mas
também em toda a vida eclesial.
A mensagem sinodal e a papal se impõem não tanto pelo seu diagnóstico
e sua terapia, quanto pela sua intenção explícita de promover uma
“conversão pastoral” da linguagem e da prática que favoreça uma
“inversão de perspectiva” não só na vida familiar, mas também eclesial,
como disseram os cardeais que apresentaram a Amoris laetitia à
imprensa. A “conversão pastoral” consiste em adequar critérios, métodos e
meios eclesiais à pretensão do homem moderno de agir seguindo apenas a
própria consciência subjetiva e satisfazendo as exigências permissivas
daí resultantes. A “inversão de perspectiva” consiste em colocar não
mais os meios a serviço do fim, mas o fim ao serviço dos meios, ou seja,
em colocar a verdade e as leis evangélicas a serviço da nova pastoral
eclesial, o que vale também para o direito canônico e inclusive para os
Sacramentos.
Para esse fim, surgiu a perigosa tendência de encarar a verdade
evangélica sobre o casamento e a família como se fosse “um modelo
ideal”, ou seja, uma bela teoria, mas muito abstrata e difícil de
alcançar, que depois vai adequar-se às exigências pastorais exigidas
pelas situações concretas. Por isso se prevê avaliar e resolver essas
situações recorrendo a atenuantes morais e exceções, derrogações e
licenças jurídicas. Desta forma, contudo, o mencionado modelo evangélico
perde o seu rigor ideal, e com ele também a sua força de sedução e
atração; além disso, o acúmulo de exceções à regra acaba frustrando a
própria regra, deslizando-se na insegurança jurídica.
Catolicismo — Qual é o papel dessa nova linguagem eclesial nas mudanças previstas?
Guido Vignelli — A nova linguagem sinodal é dominada por certas palavras-chave que, mediante máximas correlativas, fórmulas e slogans,
definem os problemas examinados e orientam as soluções propostas, de
modo a sugerir uma mudança substancial de toda a prática eclesial. Em
resumo, essas palavras-chave são neutras e de uso comum. Na prática, no
entanto, elas estão inseridas em um contexto que lhes confere um
significado enganoso e as faz exercer uma perigosa influência sobre os
que as usam, manipulando a sensibilidade e a mentalidade dos fiéis
através de uma técnica de persuasão psicológica oculta, análoga àquela
utilizada pelos sistemas de propaganda de massa, por exemplo, na
publicidade.
É por isto que tais palavras nós as podemos definir como
“palavras-talismã”, comparando-as com as fórmulas mágicas. Ou seja, elas
não se limitam a exprimir o que significam (uma ideia, um valor, um julgamento), mas tendem a realizar
aquilo que significam, isto é, a produzir um efeito (uma escolha, uma
posição, um comportamento) capaz de seduzir e atrair um ouvinte ingênuo,
distraído ou conformista. Quem usa tais palavras-talismã é depois
empurrado inconscientemente para uma determinada direção, arriscando ser
“baldeado” de uma posição antiga e rigorosa para uma nova e permissiva.
Como se sabe, esse tipo de palavras e o mecanismo sutil desencadeado
por elas foram analisados com acuidade pelo Prof. Plinio Corrêa de
Oliveira em sua obra intitulada Baldeação ideológica inadvertida e Diálogo
(1965), um ensaio de importância histórica e profética, muitas vezes
surrupiado por estudiosos e apologistas por sinal, mas quase nunca
citado como fonte autorizada.
O
Sacramento da Eucaristia, instituído por Nosso Senhor na Santa Ceia,
hoje é concedido a pessoas sem prévia conversão e reparação, ao pecador
impenitente
Catolicismo — Quais são as “palavras-talismã” que emergiram dos dois Sínodos?
Guido Vignelli — De acordo com protagonistas e observadores oficiais, as palavras-talismã dominantes no debate sinodal e confirmadas por Amoris laetitia foram as seguintes: pastoral – misericórdia – escuta – discernimento – acompanhamento – integração. Essas seis palavras se repetem com frequência nos atos oficiais dos dois Sínodos: pastoral (90 vezes), misericórdia (48), discernimento (45), acompanhamento (102); a palavra integração ocorre apenas 24 vezes, mas, se a unirmos à palavra que a pressupõe, ou seja, acolhida, repetida 74 vezes, juntas formam um total de 98. Houve outras palavras-chave recorrentes, como complexidade, aprofundamento, desafio, mas que não parecem ter a importância das precedentes.
Essas palavras-talismã são relacionadas entre si. A nova pastoral exige tratar com misericórdia as situações conjugais e familiares imorais, que não devem por isso ser julgadas eticamente, mas através da escuta de suas experiências e necessidades, a fim de discernir em todas o que é “autêntico”, com vistas a acompanhá-las rumo a um processo de acolhida, obtido com a plena integração na comunidade eclesial e na vida sacramental.
Catolicismo — Qual é a impostação da nova pastoral?
Guido Vignelli — A nova pastoral familiar é baseada no
pressuposto de que os agentes pastorais devem limitar-se a utilizar
apenas métodos e meios de “diálogo”, da persuasão e do exemplo,
renunciando à reprovação, à denúncia, para a condenação e punição do
pecador. Acredita que métodos penais não são misericordiosos.
Consequentemente, mesmo quando a culpa é obstinada, pública e
escandalosa, nenhum pecador pode ser marginalizado ou expulso da
comunidade da Igreja.
Em concreto, o pecador não é tanto perdoado quanto escusado,
aduzindo-se atenuantes justificatórias, por exemplo, o fato de viver em
uma situação matrimonial ou familiar supostamente insanável. Então,
tende-se ser misericordioso, não só com o pecador (que sempre
pode converter-se), mas também com a sua situação pecaminosa (que nunca
pode converter-se, mas deve simplesmente desaparecer); não se limita a “odiar o pecado e amar o pecador”,
como afirma Santo Agostinho, mas chega-se a justificar o pecado e a
absolver o pecador impenitente, concedendo-lhe até o acesso à Sagrada
Comunhão sem prévia conversão e reparação. Tal misericórdia é contrária ao ensinamento da Igreja, inclusive o da encíclica Dives in Misericordia de João Paulo II.
Esse permissivismo, que ontem era concedido apenas aos que erravam,
estende-se hoje aos pecadores públicos. Se esta abordagem liberal fosse
aplicada com rigor, nenhuma sociedade poderia conservar-se por longo
tempo, nem sequer a da Igreja, que é divina, porque os tribunais
tornar-se-iam ilícitos e, portanto, seriam abolidos.
A abordagem metodológica está em suma na exigência pastoral e no primado da misericórdia.
O problema é que essas duas palavras-chave foram falsificadas em seu
significado e traídas na sua missão. Na ânsia de diagnosticar as
situações pecaminosas absolvendo-as da devida condenação moral, a pastoral tende a eludir a verdade revelada; na ânsia de curar essas situações poupando-as dos inevitáveis sofrimentos, a misericórdia
tende a escapar da justiça divina. O resultado é uma pastoral
relativista, incapaz de iluminar os que erram e uma misericórdia
permissiva incapaz de converter os pecadores.
Quanto
mais um cristão se obstina em viver num estado público de pecado,
violando gravemente os mandamentos relativos à fidelidade e à castidade
matrimonial, ele pode lícita e canonicamente considerar-se “simul justus
et pecador” (“que é pecador justificado”), como pretendia o heresiarca
Lutero.
Catolicismo — Qual é a teoria implícita nessa nova pastoral?
Guido Vignelli — Se consideradas nas suas relações, as
mencionadas palavras-chave se explicam e se apoiam mutuamente, sugerindo
uma nova metodologia que nos leva a passar de um conceito rigoroso a um
permissivo, não só da pastoral doméstica, mas também da moral familiar.
A avaliação moral é de fato posta na dependência dos tempos, lugares,
pessoas e situações, com base, portanto, em critérios não mais absolutos
(ou seja, universais e necessários), mas relativistas (ou seja,
particulares e subjetivos); os próprios conceitos de “mal absoluto” e
“estado de pecado” são implicitamente rejeitados como abstratos e
rigoristas. O que leva ao seguinte paradoxo: quanto mais um cristão se
obstina em viver num estado público de pecado, violando gravemente os
mandamentos relativos à fidelidade e à castidade matrimonial, ele pode
lícita e canonicamente considerar-se “simul justus et pecador” (“que é pecador justificado”), como pretendia o heresiarca Lutero.
A nova pastoral pressupõe e insinua uma teoria moral relativista e
permissiva, semelhante à “nova moral” denunciada em seu tempo por Pio
XII: afirma-se que, “libertada das sutilezas sofísticas do método
tradicional, a moral seja reconduzida à sua forma originária e remetida à
inteligência e à determinação da consciência individual. [...] A ‘nova
moral’ afirma que a Igreja, em vez de fomentar a lei da liberdade humana
e do amor, pelo contrário leva, quase exclusivamente e com excessiva
rigidez, à firmeza e intransigência das leis morais cristãs, recorrendo
com frequência àqueles ‘sois obrigados’ e ‘não é lícito’ que têm muito
sabor de um pedantismo desalentador. [...] Com o resultado de que a
acusação de dureza opressora, do movimento ‘nova moral’ contra a Igreja,
vai na verdade atingir em primeiro lugar a própria Pessoa adorável de
Cristo” (Pio XII, Rádio Mensagem de 23 de março de 1952, por ocasião do Dia da Família).
Prepara-se, portanto, uma revolução pastoral no sentido relativista e permissivo. É uma revolução no sentido relativista,
porque o diagnóstico das situações familiares se baseia não na
avaliação moral objetiva delas, mas em detectar a experiência
psicológica subjetiva e prever as consequências práticas, com o perigo
de fazer a consciência perder o sentido de pecado, já tão obnubilado.
Com efeito, não se fala mais de “situações imorais” (como o
concubinato), nem tampouco de “situações irregulares”, mas apenas de
“situações complexas” ou “difíceis”. É também uma revolução no sentido permissivo,
porque a terapia para tratar dessas situações se reduz ao uso de
paliativos e anestésicos que, longe de eliminar as causas do mal,
aliviam-lhe apenas os sintomas, ou seja, as consequências dolorosas, com
o resultado de eludir o restabelecimento e tornar crônico o vício.
Desta forma, a pastoral familiar é reduzida a uma psicologia ou
sociologia da família semelhante à laicista.
Catolicismo — Há também motivos de uma esperança não sentimental, mas racional, quanto ao futuro da família?
Guido Vignelli — Não obstante a mesma análise sinodal admitir
que a atual situação familiar global é totalmente desastrosa, pesquisas
sociológicas e estatísticas também revelam alguns sinais de esperança
quanto ao futuro. Na verdade, apesar de as autoridades tornarem cada vez
mais difícil para os jovens constituir família, opondo obstáculos
culturais, políticos e econômicos inimigos da castidade, da estabilidade
e da procriação, o desejo de família está crescendo precisamente entre
as últimas gerações; isto também se aplica à nobre nação brasileira.
Talvez seja até para perverter essa saudável tendência juvenil que a
propaganda revolucionária tenta distorcer o conceito de família,
tornando-a “pluralista”, ou seja, introduzindo nela todas as formas
possíveis de convivência (inclusive a homossexual). Mais uma razão para
impelir os cristãos a defender a verdadeira identidade e definição de
família. Trata-se da própria sobrevivência da humanidade, como também da
Igreja.
Nenhum comentário:
Postar um comentário