sábado, 22 de outubro de 2016

"Tu és cheia de graça" - Elementos bíblicos da piedade mariana

[apologistascatolicos]
Escrito por Bento XVI




“De hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as nações” – estas palavras da mãe de Jesus que nos são transmitidas por Lucas (1,48) são simultaneamente profecia e missão dada à Igreja de todos os tempos. Assim, esta frase do Magnificat, da oração de louvor de Maria ao Deus vivo, inspirada pelo Espírito Santo, é um dos fundamentos essenciais da veneração cristã a Maria. A Igreja não inventou ela própria nada de novo quando começou a enaltecer Maria; não desceu do cume da adoração do Deus único para um mero louvor humano.
A Igreja faz o que deve fazer e o que lhe foi cometido desde o princípio. Quando Lucas escreveu este texto já se estava na segunda geração cristã e à “estirpe” dos judeus já se tinha juntado a dos pagãos, que se tinham tornado a Igreja de Jesus Cristo. A expressão “todas as gerações, todas as estirpes” começou a verificar-se com realidade histórica. O evangelista certamente não transmitiria a profecia de Maria, se ela lhe parecesse indiferente ou ultrapassada. No seu Evangelho pretendia registrar “cuidadosamente” o que haviam transmitido “os que desde o princípio foram testemunhas oculares e se tornaram ‘servidores da Palavra’” (1,2-3), para assim dar à fé do cristianismo, que fazia sua entrada na história mundial, uma orientação sólida.[1] A profecia de Maria pertencia a estes elementos que ele havia reunido “cuidadosamente” e considerava com importância suficiente para serem transmitidos como parte do Evangelho. Isto pressupõe que esta frase não deixava de ter expressão na realidade: os dois primeiros capítulos do Evangelho de Lucas tornam reconhecível um círculo da tradição em que a memória de Maria é recolhida, em que a mãe do Senhor é amada e louvada. Eles pressupõem que a exclamação ainda um pouco ingênua da mulher desconhecida “Bem-aventuradas as entranhas que te trouxeram” (Lc 11,27) não havia emudecido, mas, pelo contrário, numa expressão mais profunda de Jesus, havia ao mesmo tempo tomado uma forma mais pura e válida. Pressupõem que a saudação de Isabel: “Bendita és tu entre as mulheres” (1,42) que Lucas define como expressão preferida pelo Espírito Santo (1,41) não tinha permanecido com um episódio fortuito. O louvor de Maria, conservado, pelo menos, num dos ramos da tradição do cristianismo mais antigo, é o fundamento do Evangelho da infância de Lucas. O registro dessas palavras no Evangelho eleva esta veneração de Maria de um mero facto a uma tarefa da Igreja de todos os lugares e de todos os tempos.
A Igreja negligencia algo que lhe é comandado se não louva a Maria. Quando o louvor de Maria nela emudece, a Igreja afasta-se da palavra bíblica. Quando isto acontece também não louva a Deus de forma suficiente. Pois, por um lado, conhecemos Deus através de sua criação: “O que é invisível em Deus – o seu eterno poder e divindade – tornou-se visível à inteligência, desde a criação do mundo, nas suas obras” (Rm 1,20). Por outro lado, conhecemos Deus, de forma mais próxima, através da história que ele fez com os homens. Tal como a natureza de uma pessoa se manifesta na história da sua vida e nas relações que estabelece, assim Deus se torna visível numa história, em seres humanos através dos quais a sua verdadeira natureza transparece, de tal maneira que ele pode ser nomeado através deles e reconhecido através deles: o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob. Manifestou-se através da relação com pessoas, através do rosto de pessoas, e nelas revelou o seu rosto. Não podemos procurar nestes rostos só a ele, querer tê-lo apenas a ele de forma quimicamente pura. Isso seria um Deus auto-imaginado, em vez do verdadeiro Deus; um purismo orgulhoso, que considera mais importantes os próprios pensamentos que os feitos de Deus. O verso do Magnificat mostra-nos que Maria foi uma dessas pessoas que se inserem de forma muito especial no nome de Deus, tanto que não o louvamos suficientemente quando a pomos de parte. Nesse caso, esquecemos algo acerca dele, algo que não pode ser esquecido. Esquecemos o quê, precisamente? A sua maternidade, poderíamos responder num primeiro momento, maternidade que se mostra na mãe do Filho de forma mais pura e directa que em qualquer outra passagem. Mas isto é sem dúvida uma afirmação demasiado geral. Para louvarmos Maria corretamente a assim darmos corretamente glória a Deus, devemos escutar tudo o que a Escritura e a Tradição nos dizem acerca da mãe do Senhor e conservá-lo no nosso coração. A riqueza da perspectiva mariana tornou-se, entretanto, através do louvor “de todas as gerações”, praticamente imensa. Eu gostaria, nesta curta reflexão, de ajudar a pensar apenas alguns dos elementos que são Lucas nos pôs nas mãos deixando-nos o texto inesgotável do Evangelho da infância.

MARIA, FILHA DE SIÃO- A MÃE DOS CRENTES

Comecemos com a saudação do anjo a Maria. Para Lucas, esta é aquela célula primeira da mariologia, que Deus ele próprio nos quis transmitir através do seu mensageiro, o arcanjo Gabriel. Traduzida literalmente a saudação é assim: “Alegra-te, ó cheia de graça. O Senhor está contigo” (1,28). “Alegra-te” -  num primeiro momento isto parece nada mais ser do que uma fórmula de saudação usual no espaço da língua grega, e a Tradição ateve-se à tradução “Saúdo-te”. Mas, a partir do pano de fundo do Antigo Testamento, esta fórmula de saudação adquire um sentido mais profundo, se pensarmos que a mesma expressão desta passagem de Lucas surge quatro vezes na tradução grega do AT e sempre como anúncio da alegria messiânica (Sf 3,14; Jl 2,21; Zc 9,9; Lm 4,21).[2] Com esta saudação começa realmente o Evangelho, a sua primeira palavra é “alegria” – a nova alegria que provém de Deus e que rompe o velho e infindável luto do mundo. Maria não é apenas saudada de uma maneira qualquer; o fato de Deus a saudar e, nela, saudar o povo expectante de Israel, a humanidade inteira, é convite à alegria mais profunda. O fundamento da nossa tristeza é a caducidade do nosso amor, a supremacia da finitude, da morte, do sofrimento, da maldade, da mentira; é a nossa solidão num mundo contraditório, no qual os misteriosos e luminosos sinais da bondade de Deus, irrompendo elas frinchas do mundo, são postos em causa pelo poder das trevas, o qual ou faz com que se atribua o mal a Deus ou faz com que Deus pareça ausente.
“Alegra-te” – por que há-de Maria alegrar-se num mundo assim? A resposta é: “O Senhor está contigo”. Para compreender o sentido desta Anunciação, devemos de novo recorrer aos textos veterotestamentários que estão na sua base, especialmente os de Sofonias. Eles contêm sempre uma dupla promessa dirigida a Israel, à filha de Sião: Deus virá como salvador, e virá habitar nela. O diálogo do anjo com Maria retoma esta promessa e, ao retomá-la, realiza uma dupla concretização. O que é dito na profecia da filha de Sião, vale agora para Maria: ela é equiparada à filha de Sião, é a filha de Sião em pessoa. Paralelamente, Jesus, que Maria dará à luz, é equiparado a Jhavé, o Deus vivo. A vinda de Jesus é a vinda do próprio Deus e a sua habitação entre os homens. Ele é o Salvador – é esse o significado do nome Jesus, que assim se explica a partir do coração da promessa. René Laurentin mostrou, numa análise cuidada, que Lucas aprofundou o tema da habitação de Deus entre os homens através de finas sugestões linguísticas: logo nos textos mais antigos surge a habitação de Deus “no seio” de Israel – na arca da Aliança. Agora esta habitação “no seio” de Israel torna-se realidade em sentido literal na Virgem de Nazaré, que assim se torna a verdadeira arca da Aliança em Israel. Através dela, o símbolo da arca ganha uma força de realidade inaudita: Deus na carne de uma pessoa, carne que se torna o seu habitáculo no meio da criação...[3]
A saudação do anjo – centro da mariologia não pensado pelo homem – levou-nos ao seu fundamento teológico. Maria é identificada com a filha de Sião, com a Esposa que é o povo de Deus. Tudo o que é dito na Bíblia da ecclesia vale para Maria, e vice-versa: o que a Igreja é e deve ser, é por ela aprendido na contemplação de Maria. Esta é seu espelho, a verdadeira medida da sua natureza, porque existe à medida de Cristo e de Deus, “habitada” por ele. E para que existiria a Igreja senão para ser habitação de Deus no mundo? Deus não age com coisas abstratas. Ele é Pessoa, e a Igreja é pessoa. Quanto mais nós e cada um de nós nos tornamos pessoa, pessoa no sentido da inabitação de Deus em nós, filha de Sião, tanto mais seremos um e tanto mais seremos Igreja, e tanto mais a Igreja será ela própria.
Assim, a identificação tipológica entre Maria e Sião conduz a uma grande profundidade. Esta forma de pôr em relação o Antigo Testamento e o Novo Testamento é muito mais que uma construção histórica interessante, através da qual o evangelista liga promessa e cumprimento, reinterpretando a antiga Aliança à luz do acontecimento de Cristo. Maria é Sião em pessoa, o que significa o seguinte: Maria vive a totalidade do que é significado por “Sião”. Ela não edifica uma individualidade fechada, interessada na realidade do próprio “eu”. Ela não quer ser apenas essa pessoa que defende e acarinha o seu “eu”. Ela não vê a vida como um amontoado de coisas, de que se quer acumular o mais possível para o “eu” próprio. Ela vive de tal maneira que é permeável a Deus, habitável por ele. Ela vive de tal maneia que se torna um lugar para Deus. Ela vive ao ritmo da dimensão comunitária da história santa de tal forma que não nos aparece nela o estreito mesquinho “eu” de um indivíduo isolado, mas sim o todo verdadeiro Israel. Esta “identificação tipológica” é realidade espiritual, vida vivida a partir do espírito da Sagrada Escritura; é um estar radicada na fé dos patriarcas e simultaneamente dilatada pela altura e a amplidão das promessas vindouras. Compreende-se que a Bíblia compare uma e outra vez o justo à árvore cujas raízes bebem as águas vivas da eternidade e cuja ramagem capta e absorve a luz do céu.
Voltemos de novo à saudação do anjo. Maria é chamada a “cheia de graça”. A palavra grega para graça (charis) tem a mesma raiz que as palavras alegria, alegrar-se (chara, chairein).[4] Assim, de novo emerge aqui a mesma relação que encontramos na comparação com o Antigo Testamento. A alegria provém da graça. Pode alegrar-se com uma alegria profunda e duradoura quem está em graça. E vice-versa: a graça é alegria. Que é a graça? – esta pergunta emerge do nosso texto. No nosso pensamento religioso este conceito foi demasiadamente coisificado, a graça foi vista como algo sobrenatural que trazemos na alma. E como pouco ou nada sentimos dela, ela tornou-se para nós paulatinamente algo irrelevante, uma palavra vazia do vocabulário cristão, que deixou de ter relação com a realidade vivida no nosso quotidiano. Na realidade, a graça é um conceito de relação: não nos diz nada acerca de uma propriedade do eu, mas sim algo acerca da coordenação entre eu e tu, entre Deus e a pessoa... “És cheia de graça”, poderia, pois, ser traduzido como: estás cheia do Espírito Santo, vives em comunidade de vida com Deus. Pedro Lombardo, autor de um manual de Teologia universalmente utilizado na Idade Média durante cerca de trezentos anos, defendeu a tese de que a graça e o amor são a mesma coisa, mas que o amor “é o Espírito Santo”. A graça, no sentido próprio e mais profundo da palavra, não é uma coisa proveniente de Deus, mas sim o próprio Deus.[5]
A redenção significa que, no seu agir propriamente divino em relação a nós, Deus não dá menos do que ele próprio. O dom de Deus é Deus, que, enquanto Espírito Santo, é comunhão conosco. “És cheia de graça” – isto significa, portanto, também que Maria é uma pessoa totalmente aberta, que se dilatou completamente, que se entregou audaciosa e ilimitadamente, sem temor quanto ao seu próprio destino, nas mãos de Deus. Significa que vive inteiramente a partir da relação com Deus e no interior dessa relação. Maria é uma pessoa à escuta e em oração, cujo sentido e cuja alma estão despertos para os múltiplos apelos sussurrados pelo Deus vivo. É um ser orante, totalmente tenso para Deus e, por isso, um ser amante com a amplitude e a generosidade do verdadeiro amor, mas também com a sua capacidade infalível de discernimento e com a disponibilidade para o sofrimento que existe no amor.
Lucas também iluminou esta realidade a partir de motivos de um outro círculo: com a sua finura característica, esboça, na história de Maria, com uma série de pinceladas, um paralelo entre Abraão, o pai dos crentes, e Maria, a mãe dos crentes.[6] Estar em graça significa: ser crente. A fé inclui os elementos da fortaleza, da confiança, da dedicação, mas também o da obscuridade. Quando a relação do ser humano com Deus, a abertura da alma a ele é designada com a palavra “fé” isso implica dizer que na relação do “eu” humano com o “tu” divino não é abolida a distância infinita entre o Criador e a criatura. Significa que o modelo da “parceria” que se nos tornou tão querido, é inaplicável em relação a Deus, pois não se pode exprimir a soberania de Deus e o mistério de sua ação. O paralelo entre Maria e Abraão começa com a alegria da promessa do filho, mas continua até à hora sombria da subida ao monte Moriá, isto é, à crucifixão de Cristo e, naturalmente, até ao milagre da salvação de Isaac – até à ressurreição de Jesus Cristo. Abraão, pai dos crentes – com este título é descrita a posição excepcional deste patriarca na piedade de Israel e na fé da Igreja. Mas não é maravilhoso que – sem suprimir a posição de Abraão – se situe agora, no início do novo povo, uma “mãe dos crentes” e que a nossa fé receba sempre de novo a sua medida e o seu caminho desta sua imagem pura e alta?

MARIA, PROFETISA

Com este comentário meditativo da saudação do anjo a Maria chegamos À verificação, por assim dizer, do lugar teológico da mariologia; respondemos à questão: que significa a figura de Maria na estrutura da fé e da piedade? Gostaria agora de explicitar esta ideia fundamental ainda através de dois aspectos da figura de Maria que vêm ao nosso encontro também no Evangelho de Lucas. O primeiro aspecto diz respeito à oração de Maria, ao seu caráter meditativo; poderíamos também dizer: ao elemento místico na sua natureza, o qual os Padres aproximam estreitamente do elemento profético. Penso aqui em três textos em que este ponto de vista se torna claramente evidente. O primeiro encontra-se em relação com a cena da Anunciação: Maria assusta-se com a saudação do anjo – é o temor sagrado que invade o ser humano quando o toca a proximidade de Deus, o totalmente outro. Assustou-se e “inquiria de si própria o que significava tal saudação” (1,29). A palavra que o Evangelista usa para “inquirir” constrói-se a partir da raiz grega “diálogo”, quer dizer: Maria entra interiormente em diálogo com a Palavra. Entra em diálogo íntimo com a Palavra que lhe é dada, responde-lhe e deixa-se interpelar por ela, a fim de decifrar o seu sentido. O segundo texto em questão encontra-se após o relato da adoração de Jesus pelos pastores. Aí é dito que Maria “conservava” e “ponderava no seu coração” todas estas palavras ( = acontecimentos) (2,19). O evangelista atribui aqui a Maria aquela memória reflexiva e meditativa que, depois, no Evangelho de João, terá um papel tão grande no tempo da Igreja para o desenvolvimento, acionado pelo Espírito, da mensagem de Jesus. Maria vê nos acontecimentos “palavras”, um evento cheio de sentido pois provém da vontade de Deus, que imprime sentido. Ela traduz os acontecimentos em palavras e penetra nas palavras, na medida em que as aceita no seu “coração” – nesse espaço interior da compreensão em que sentido e espírito, entendimento e sentimento, olhar exterior e interior se interpenetram e assim, para além do episódico, a totalidade se torna visível e a sua mensagem se torna compreensível. Maria “associa” e “une” – articula cada elemento num todo, compara-o, contempla-o, e conserva-o. A palavra torna-se semente em boa terra. Não é assimilada de imediato, encerrada numa primeira compreensão superficial e depois esquecida mas, pelo contrário, o que se passa exteriormente adquire no coração o espaço da conservação e pode assim desvendar a par e passo a sua profundidade, sem que o caráter único do sucedido seja obliterado. O mesmo é dito mais uma vez, em relação com a cena de Jesus no Templo, aos doze anos. Primeiro afirma-se: “Eles não compreenderam as palavras que lhes disse” (2,50). Mesmo para as pessoas crentes, totalmente abertas a Deus, as palavras divinas não são à primeira vista compreensíveis e esclarecedoras. Quem pede à mensagem cristã a compreensão imediata do que é banal, fecha o caminho a Deus. Onde não há a humildade do mistério acolhido, a paciência que recebe em si, conserva e se deixa lentamente abrir ao que se não compreende, aí a semente da Palavra caiu sobre a pedra; não encontrou a boa terra. Mesmo a mãe, nessa ocasião, não compreendeu o Filho, mas de novo ela guarda “todas estas coisas no seu coração” (2,51). A palavra “guardar” não é textualmente a mesma que a usada no episódio dos pastores. Ao passo que neste último texto, se sublinhava sobretudo o aspecto unificador, o ponto de vista da associação do ocorrido, aqui é trazido a primeiro plano o aspecto da duração, o momento da perseverança e da conservação.
Por trás desta representação de Maria emerge a imagem do justo veterotestamentário, como os Salmos, em especial o grande salmo da Palavra de Deus, 119, o descrevem. Para a imagem aí visível do homem piedoso é característico o fato de amar a Palavra de Deus, trazê-la no coração, meditá-la dia e noite, deixar-se inteiramente penetrar e animar por ela. Os Padres sintetizaram isto numa bela e expressiva imagem, que vemos, por exemplo, assim formulada por Teodoto de Ancira: “A Virgem deu à luz... a profetisa deu à luz... Foi pela escuta que Maria, a profetisa, concebeu o Deus vivo. Pois acede-se por natureza à inteligência das palavras pela escuta”.[7] A maternidade divina e a permanente abertura à Palavra de Deus são aqui vistas em total interpenetração: escutando a saudação do anjo, Maria recebe em si o Espírito Santo. Tornada totalmente escuta, acolhe tão completamente a Palavra que esta se torna nela carne. Esta compreensão da escuta, da meditação, da concepção é entrelaçada com o conceito e a realidade do profetismo: Maria é profetisa como aquela que escuta a partir do mais íntimo do seu coração, aquela que se torna de tal forma uma só coisa com a Palavra que a pode dar por seu turno ao mundo. Alois Grillmeier comentou assim esta reflexão dos Padres: “Não vemos, por exemplo, na imagem de ‘Maria profetisa’ qualquer traço de uma mântica pagã. Maria não é uma pitonisa. Na medida em que a cena da Anunciação... e o encontro na casa de Zacarias são vistos em conjunto, dá-se uma deslocação do centro de gravidade do elemento profético, do aspecto extático para o aspecto interior e da graça... Se Maria tem um lugar merecido na história da mística, então a sua figura desloca da periferia para o essencial e íntimo”.[8] Nela se torna assim evidente a nova compreensão especificamente cristã do profeta: a vida na claridade da verdade, que é a verdadeira projeção no futuro e a única interpretação válida do presente, seja ele de que tempo for. Nela se torna visível a verdadeira grandeza e a profundíssima simplicidade da mística cristã: esta não consiste no extraordinário, nem no êxtase nem na visão, mas sim no intercâmbio permanente da existência criada com o criador, de tal forma que a criatura seja cada vez mais permeável a ele, realmente unida a ele num santo desponsório e numa maternidade santa.
Não se deve tentar psicologizar a Bíblia. Mas talvez possamos, todavia, tomar em consideração os vestígios discretos em que esta maneira de ser se concretiza na imagem bíblica de Maria. Para mim, por exemplo, a história das bodas de Caná é um deles. Maria é repelida. A hora do Senhor ainda não chegou, mas a hora dada, a hora do ministério público de Jesus exige que ela, Maria, se retraia e reduza ao silêncio. Parece estranho, quase contraditório, que, apesar disso, se dirija aos criados: “Fazei tudo o que ele vos disser” (Jo 2,5). Não será a disponibilidade interior para deixá-lo agir, a sensibilidade interior para o mistério escondido da hora? O segundo exemplo é o Pentecostes. O tempo do ministério público de Jesus tinha sido o tempo do retraimento de Maria, o tempo do seu silêncio. Mas a cena de Pentecostes reassume o início de tudo em Nazaré, e restabelece a correlação do todo. Tal como Cristo havia nascido do Espírito Santo, assim agora a Igreja nasce do Espírito Santo. Mas Maria está no meio dos que oram e esperam (At 1,14): essa união da oração, que reconhecemos como característica da sua natureza, torna-se de novo o espaço em que o Espírito Santo pode intervir e operar uma nova criação. Por fim gostaria de apontar para o Magnificat que me parece ser um condensado de todos estes pontos de vista. Nele os Padres reconheceram sobretudo Maria como a profetisa cheia do Espírito Santo, especialmente na predição do louvor de Maria por todas as gerações.[9] Mas esta oração profética é inteiramente tecida a partir dos elementos veterotestamentários. Em última análise é totalmente secundário saber em que medida houve para ela etapas pré-cristãs ou em que medida o evangelista tomou parte na sua elaboração. Lucas e a tradição que se perfila por trás dele ouvem nesta oração a voz de Maria, a mãe do Senhor. E sabem: ela falou assim.[10] Maria viveu tão profundamente a palavra da Antiga Aliança que esta se tornou inteiramente na sua própria palavra. A Bíblia foi de tal forma rezada e vivida por ela, de tal maneira “conservada” no seu coração, que via na sua palavra a sua própria vida e a vida do mundo; tornou-se de tal forma coisa sua que através dela soube responder à hora que foi sua. A palavra de Deus havia-se tornado a sua própria palavra, e a sua própria palavra surgia no interior da palavra de Deus: as fronteiras entre uma e outra haviam desaparecido, porque a sua existência no seio da Palavra era vida no território do Espírito Santo. “A minha alma engrandece o Senhor” – não que possamos acrescentar nada a Deus, comenta santo Ambrósio a este respeito, mas de tal forma que o deixemos ser grande em nós. Engrandecer o Senhor – isto significa não se engrandecer a si próprio, ao seu próprio nome, ao seu próprio “eu”, amplificar-se e reivindicar um lugar, mas dar-lhe espaço a ele para que se torne presente no mundo. Quer dizer: tornarmo-nos mais verdadeiramente o que somos, não uma mônada fechada que só se representa a si própria, mas imagem de Deus. Significa libertarmo-nos do pó e da fuligem que torna a imagem opaca e a recobre, e tornamo-nos verdadeiramente pessoas, inteiramente referidas a Deus.

MARIA NO MISTÉRIO DA CRUZ E DA RESSURREIÇÃO

Assim cheguei ao segundo aspecto da figura de Maria que queria ainda apontar. Engrandecer Deus – isto significa, como dissemos, tornarmo-nos livres para ele; significa esse verdadeiro êxodo, essa saída do ser humano de si próprio que Máximo o Confessor, na sua referência à Paixão de Cristo, descreveu de forma singular como “a passagem da oposição à união das duas vontades” que “passa pela cruz da obediência”.[11] O aspecto crucificante da graça, da profecia, da mística encontramo-lo referido em Lucas, no que respeita a Maria, em primeiro lugar no encontro com o velho Simeão. O ancião diz a Maria no seu discurso profético: “Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará a tua alma...” (2,34s). A este respeito penso na profecia de Natan a Davi após o seu pecado: Mataste Urias por meio da espada dos amonitas. “Por isso jamais se afastará a espada da tua casa” (2 Sm 12,9s). A espada que impende sobre a casa de Davi fere agora o coração de Maria. No verdadeiro Davi que é Cristo, e em sua mãe, a Virgem pura, a maldição é executada e superada.
A espada trespassará o seu coração – isto é referência à Paixão do Filho, que se tornará a sua própria Paixão. Esta paixão começa logo na sua visita seguinte ao Templo: ela deve aceitar a primazia do verdadeiro Pai e da sua casa, o Templo; tem que aprender a renunciar àquele a quem deu à luz. Tem que levar às últimas consequências o “sim” à vontade de Deus que a fez ser mãe, na medida em que se retrai e liberta o filho para a sua missão. Nos momentos em que é repelida durante a vida pública e neste retraimento dá-se um passo importante que se cumprirá na cruz com a palavra: “Eis o teu filho” – já não é Jesus, mas sim o discípulo que é o seu filho. A aceitação e a disponibilidade é o primeiro passo que lhe é pedido; o abandono e a renúncia é o segundo. Só assim a sua maternidade se torna perfeita: a bem-aventurança segundo a qual é dito “Felizes as entranhas que te trouxeram” só se torna verdade quando se torna na outra bem-aventurança: “Felizes os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 11,27s). Assim Maria é preparada para o mistério da cruz, que não termina simplesmente no Gólgota. O seu Filho permanece sinal de contradição e ela é mantida até o fim na dor da contradição, no sofrimento da maternidade messiânica.
Para a piedade cristã tornou-se especialmente cara a imagem da mãe sofredora, tornada compaixão profunda pelo filho morto repousando-lhe nos joelhos. Nesta mãe compadecida os sofredores de todos os tempos viram a imagem mais pura dessa compaixão divina que é a única verdadeira consolação. Pois toda a dor, todo o sofrimento é, na sua essência última, solidão, perda de amor, felicidade destruída pelo inaceitável. Só o “com” da com-paixão pode curar a dor.
Em Bernardo de Claraval encontra-se esta frase maravilhosa: Deus não padecer, mas pode compadecer-se.[12] Bernardo põe assim de certa forma um ponto final à discussão dos Padres sobre a novidade da noção cristã de Deus. Para o pensamento antigo fazia parte da natureza de Deus a impassibilidade da razão pura. Era difícil aos Padres da Igreja renunciar a esta ideia e pensar que havia “sofrimento” em Deus, mas era-lhes claro, a partir da Bíblia, que a “revelação bíblica... abala” tudo “o que o mundo pensou sobre Deus”. Eles viam que há uma paixão muito íntima em Deus, que até é a sua própria natureza: o amor. E porque Ele é amor, não lhe é estranho um sofrimento sob a forma de compaixão. “No seu amor pelo homem o Impassível sofreu a compaixão piedosa”, escreve Orígenes a respeito.[13] Poder-se-ia dizer: a cruz de Cristo é a compaixão de Deus pelo mundo. No Antigo Testamento hebraico a compaixão de Deus para com o ser humano não é expressa através de um termo hebraico tirado da esfera psicológica, mas, de acordo com a forma muito concreta do pensamento semítico, é indicada por um vocábulo que no seu significado fundamental designa um órgão físico, a saber rahamim, o que no singular quer dizer o corpo maternal, o seio materno. Tal como “coração” está por sentimento, tal como “rins” estão por desejo e dor, assim o seio materno torna-se a palavra para dizer o estar “com” o outro, a referência mais profunda à aptidão do ser humano a estar presente ao outro, a recebe-lo, a sustenta-lo e dar-lhe vida enquanto ser assumido. Com uma palavra da linguagem do corpo, o Antigo Testamento diz-nos como Deus nos acolhe, e nos sustenta com um amor compaixão.[14] As línguas através das quais o Evangelho penetrou  no mundo pagão não conheciam estas formas de expressão. Mas a imagem da pietá, a mãe que chora o filho morto, tornou-se na tradução viva desta palavra: nela se torna manifesto o sofrimento maternal de Deus. Nela este sofrimento se tornou visível, tangível. Ela é a compassio de Deus representada num ser humano que se deixou absorver inteiramente no mistério de Deus. Mas porque a vida humana é sempre sofrimento, a imagem da mãe lacrimosa, imagem da rahamim de Deus tornou-se tão importante no cristianismo. Só nela a imagem da cruz se cumpre inteiramente, porque é a cruz assumida, a cruz partilhada no amor que nos permite, na sua compaixão maternal, experimentar a compaixão de Deus. Assim, a dor de mãe é dor pascal que já opera a abertura da transformação da morte à presença salvífica do amor. Só aparentemente nos afastamos do “Alegra-te” com que se inicia a história de Maria. Pois a alegria que lhe é anunciada não é a alegria banal que radica no esquecimento das profundezas do nosso ser e assim está condenada a precipitar-se no vazio. É a verdadeira alegria que nos permite ousar o êxodo do amor até ao íntimo da santidade ardente de Deus. É essa alegria verdadeira que não é destruída pelo sofrimento, mas, pelo contrário, é levada por ele à maturidade. Só a alegria que resiste ao sofrimento e é mais forte que o sofrimento é a verdadeira alegria.
“Todas as gerações me chamarão bem-aventurada”. Nós louvamos Maria e chamamos-lhe bem-aventurada com palavras tiradas da saudação do anjo e da saudação de Isabel – com palavras, portanto, que não são inventadas pelo homem, pois a saudação de Isabel diz o evangelista que ela falou cheia do Espírito Santo. “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre” disse Isabel e nós dizemo-lo após ela. Bendita és tu – nesta saudação ressoa, no início da Nova Aliança, de novo a promessa a Abraão proferida por Deus: “Serás uma fonte de bênçãos... todas as famílias da terra serão em ti abençoadas” (Gn 12,2-3). Maria, que reassumiu a fé de Abraão e levou ao seu alvo, é agora a bendita. Tornou-se a mãe dos crentes, através da qual todas as nações da terra são abençoadas. Nesta bênção somos todos incluídos, quando a louvamos. Entramos nesta bênção quando, com Maria, nos tornamos crentes e engrandecemos Deus, de sorte que ele habite em nós como Deus conosco: Jesus Cristo, o verdadeiro e único Salvador do mundo.
REFERÊNCIAS

[1] Cf. F. Mußner, “Καθεξηϛ im Lukasprolog”, in: E. E. Ellis/E. Gräßler (eds.), Jesus und Paulus, FS W. G. Kümmel, Göttingen, 1975, 253-255.
[2] S. Lyonnet chamou para isto a atenção no artigo χαῖρε κεχαριτωμένη, in Biblica 20 (1939) 131-141. Estas indicações foram retomadas e desenvolvidas por R.Laurentin, Structures et Théologie de l’Evangile de Luc I-II, Paris, 1957. Sobre o estado atual do debate em torno da saudação angélica, cf. S. M. Iglesias, Los evangelios de la infância II, Madrid, 149-160.
[3] Cf. R. Laurentin, op. cit. 79-82; M. Iglesias, op cit. 183ss.
[4] Cf. H. Conzelmann, art. Χαριϛ κτλ, in Theologische Wörterbuch des Neuen Testaments IX, 363-366.
[5] Petrus Lombardus, Sententiae 1, dist. 17,1. Esta identificação direta de amor, graça e Espírito Santo foi no entanto depois – e com razão – rejeitada por todos os grandes mestres da escolástica, cf.por exemplo Boaventura, Comentário das Sentenças 1, d 17 a e q 1;Tomás de Aquino, S. Th. II-II, q. 23 a 2. Com efeito, a ideia de uma graça criada é indispensável: uma relação – sobretudo quando se trata da relação Deus-homem – não deixa imutável quem nela se implica. O fato de ela se dar no homem, de se tornar característica do seu ser, qualifica-a como verdadeira relação. Assim, o que se diz neste texto não deve ser entendido como um regresso a Pedro Lombardo, saltando por cima de S. Tomás e Boaventura, nem como uma aquiescência à polêmica dos reformadores contra a graça criada, mas sim como um sublinhar do caráter essencialmente relacional da graça. Sobre o estado atual da Teologia católica sobre esta questão cf. J. Auer Das Evangelium der Gnade, (KKD V), Ratisbona 1970, 156-159; H. Schauf, M. J. Sheeben, “De inhabitatione Spiritus Sancti”, in AAVV, M. J. Scheeben, teólogo católico d’ispirazione tomista, Vaticano, 1988, 237-249; referências breves também na nova edição francesa da Somme théologique de saint Thomas, V. III, Cerf, 1985, 159ss.
[6] Cf. R. Laurentin, op. cit. 98.
[7] Homilia 4 in Deiparam et Simeonem c 2 (Patrologia graeca 77, 1392 CD). Veja-se, a propósito, o importante contributo de A. Grillmeier, “Maria Prophetin”, in Id. Mit. Ihm und in ihm. Christologische Forschungen und Perspecktiven, Friburgo-em-B., 1975, 198-216, citação 207s.
[8] Ibid. 215s.
[9] Ibid. 207-213.
[10] Sobre a disputa acerca do Magnificat, cf. H. Schürmann, Das Lukasevangelium, Friburgo, 1969, 71-80; S. M. Iglesias, Los cânticos del Evangelio de la infância según San Lucas, Madrid, 1983, 61-117.
[11] Cf. Chr. Schönborn, Die Christikone, Schaffhouse, 1984, 121-135, especialmente 131 e 133.
[12] In Cant. V. 26 (PL 183,906): “impassibilis est Deus, sed non incompassibilis”. Cf. H. de Lubac, Histoire et Esprit, intelligence de l’Ecriture chez Origène, Aubier, 1950. Todo o texto sobre «Le Dieu d’Origene» é de grande interesse para esta questão. H. U. von Balthasar tomou várias vezes posição sobre esta questão do sofrimento de Deus, em último lugar in Theodramatik IV. Das Endspiel, Einsiedeln, 1983, 191-222.
[13] H. de Lubac, op. cit. 243.
[14] Importante a este respeito é a nota 52 da encíclica de João Paulo II, Dives in misericórdia; cf. também a nota 61. Cf. ainda H Köster, art. σπλαγχνον κτλ in Theologisches Wörterbuch des Neuen Testaments VII, 548-559. Interessante que Orígenes, na passage acima citada, usa para o “sofrimento de Deus” a palavra σπλαγχνισθηναι, caracterizando-o assim como compaixão, o que não está em contradição com a impassibilidade de Deus. Köster faz notar, ibid. 550, que na Septuaginta a tradução habitual para rahamim não é σπλαγχνα, mas sim οικτιρμοι, com o que a imagem, sentida como demasiado rude, é abandonada e substituída pelo seu conteúdo (compaixão).


FONTE

BALTHASAR, Hans Urs von; RATZINGER, Joseph Aloisius. Maria a primeira Igreja. Gráfica de Coimbra, 2004. p.59-78.

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