Por Péricles Capanema
Cristandade, realidade esquecida, até vilipendiada. O progressismo a abomina, tantos católicos, mesmo de boa orientação, substituem o termo por outros, pelo temor de empregar anacronismo não mais aceito, nem sequer tolerado em certos círculos. Na Grécia antiga, pela pena do ostracismo, o cidadão era expulso do convívio de seus pares. A Cristandade parece tê-la sofrido.
Fale dela em seus círculos, qualquer que seja, vão torcer o nariz. Deveria ser o contrário.
No paganismo, as ordens espiritual e temporal se confundiam. Na Cristandade, realidade luminosa, elas eram distintas e harmônicas. Duas passagens do Evangelho de São João expressam tal realidade: “Meu reino não é desse mundo; se o meu reino fosse desse mundo, certamente que os meus ministros haviam de se esforçar para que eu não fosse entregue aos judeus”. Logo a seguir: “Tu o dizes, sou rei. Nasci e vim ao mundo para dar testemunho da verdade, todo o que está pela verdade, ouve a minha voz”.
A Cristandade ia imprimindo ao Velho Continente (excluo a Rússia cismática) um rumo de autêntica civilização, de liberdade e progresso, em que pese carências, erros e até crimes em muitos de seus propugnadores. A Europa tudo lhe deve. Mas dinamitaram-na e reduziram-na a cacos a Revolução Protestante, a Revolução Francesa e, finalmente, a Revolução Comunista. Dela ficou um imorredouro rastro de luz, de saudades em toda parte da doçura de vida, respeito e elevação que, tantas vezes apenas de modo germinativo, começavam a reger a Europa inteira.
Vitorioso, o laicismo proclamou a ruptura entre a ordem espiritual e a ordem temporal. No começo, blasonou liberdade, isenção, Igreja livre num Estado livre. Hoje, cada vez mais, revela a face intolerante, fundamentalista e totalitária. Quer encantoar as manifestações religiosas ao interior dos lares ou aos templos e às sacristias. À espera de sufocá-las por completo. Nada na vida do Estado, das empresas e das escolas poderia manifestar convicções cristãs. Nem um singelo crucifixo nas paredes.
Por que digo tudo isso? Porque me encantei com inesperados ecos de Cristandade. Pedro Pablo Kuczynski [foto acima], presidente do Peru, em 21 de outubro, diante de deputados, senadores, da Presidente do Congresso, de figuras representativas da economia e da educação, consagrou o País ao Sagrado Coração de Jesus e ao Imaculado Coração de Maria:
“Eu, Pedro Pablo Kuczynski, presidente da República do Peru, com a autoridade que me foi outorgada, faço um ato de consagração da minha pessoa, minha família, aqui presente minha esposa, da República do Peru ao amor e proteção de Deus Todo Poderoso pela intercessão do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria. Coloco em suas mãos amorosas meu governo com todos seus trabalhadores e cidadãos que estão sob minha responsabilidade. Ofereço a Deus Todo-poderoso meus pensamentos e decisões como presidente, para que os utilize para o bem de nosso País e quero sempre estar consciente dos Dez Mandamentos ao governá-lo. Pela intercessão do Sagrado Coração de Jesus e do Imaculado Coração de Maria peço a Deus que escute e aceite meu ato de consagração e cubra nosso País com sua proteção especial. Ao fazer esta oração, peço a Deus perdão por todas as transgressões que cometi no passado, todas que foram feitas no passado da República e por todas as decisões que foram tomadas contra seus mandamentos e Lhe peço ajuda para mudar tudo o que nos separa d’Ele. Eu, Pedro Pablo Kuczynski como presidente da República do Peru declaro este juramento solene diante de Deus e os cidadãos de nosso país hoje, 21 de outubro de 2016.”
Poucos dias antes, em 2 de outubro, Pedro Pablo Kuczynski havia condecorado uma freira carmelita de clausura, Madre María Soledad de Nuestra Señora de Guadalupe [foto ao lado], espanhola que vive há mais de 50 anos no Peru, com uma das distinções mais importantes do país, a Orden al Mérito por Servicios Distinguidos. Disse-lhe o Presidente: “Outorgo-lhe esta ordem ao mérito no grau de comendador por seus serviços à Cristandade, ao Peru, e por tudo o que por nós fez”.A freira respondeu: “Agradeço-lhe [...] para que o reino de Cristo avance”. A alta condecoração a uma humilde freira de clausura merece estar no mesmo olhar que analisa a consagração.
Tradición y Acción, valoroso e meritório movimento peruano, em análise bem fundamentada e corajosa, pediu ao Presidente coerência com seu ato. Tem razão, pois a consagração, para ter inteiro valor, precisa expressar a intenção reta do coração e o propósito firme de agir segundo ela. E admito que o Presidente, pelo menos em parte, foi movido em seu ato por uma efetiva exigência de setores da opinião do País, o que no povo revela vigoroso sintoma de fidelidade à Igreja.
Mas hoje eu queria falar de outra coisa. Atos assim, provenientes da mais alta autoridade, nunca aconteceram no Brasil, motivo de tristeza perene para nós. Décadas atrás, e em especial no século XIX, eles ocorreram em numerosos países, mas a pressão do ambiente moderno os eliminou. Por imposição do laicismo sulfúrico com a conivência satisfeita do progressismo católico, hoje inexistem. Sucederam no Peru, ecoaram, lembram Cristandade. Tudo o que lembra Cristandade merece registro.
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