Por Felipe Magalhães Francisco*
Novidade da pregação de Jesus reside na orientação da prática do amor para além dos bem-quistos: Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem.
Detentos fabricam jalecos para centro cirúrgico em Divinópolis. (Marcelo SantAnna/ Imprensa MG) |
Nas redes sociais, encontramo-nos,
constantemente, em meio a falsos dilemas: se o vestido é azul ou
dourado; se escolhemos salvar o traficante gravemente ferido ou o
policial levemente ferido. A primeira questão, inútil; a segunda,
desnecessária, mas que nos revela que o lugar da ética em nossa
sociedade, de maioria que se professa cristã, não é de destaque.
É absurdamente assustador que uma sociedade, na qual a maioria se
reconhece como cristã, acredite que bandido bom seja o bandido morto.
Esse é um cristianismo sem Jesus, que daria a Nietzsche o gostinho de um
“eu tinha razão!” e que nos faz querer concordar com ele. Ao assumir,
cada vez mais, a dimensão de religião, o cristianismo foi rompendo com o
Evangelho de Jesus, no qual não há a instituição de uma religião, mas
de um modo de vida.
Se não há Jesus – com seu modo de vida orientado para o Reino de
justiça, solidariedade e fraternidade – não há, nesse cristianismo,
lugar para a ética trazida pelo Mestre e que os primeiros cristãos
tinham como pilar para esse jeito-de-ser-com-Jesus: o amor. A pregação
do amor, por parte de Jesus, não é novidade dentro do judaísmo, do qual
fazia parte. A grande novidade reside no fato de Jesus orientar esse
amor para além dos bem-quistos: esse é um amor que precisa alcançar,
sobretudo, aos inimigos. “Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que
vos perseguem” (Mt 5,43).
A discussão levantada no programa da Fátima Bernardes, sobre quem os
convidados escolheriam salvar, é desnecessária porque se torna um
desserviço para a compreensão profunda da questão ética que subjaz esse
assunto. Na situação de uma pessoa correndo o risco de morrer,
independentemente de sua moral e ficha criminal, ela deve ser primeiro
socorrida. Nas redes sociais, o que se seguiu foi um show de
justiçamento, que revelou não somente a onda estúpida na qual a
sociedade surfa, mas também o despreparo humano de uma população que se
diz cristã.
A constatação de Jesus, de que Deus faz nascer seu sol sobre maus e
bons, é consequência da mensagem fundamental da pregação do amor aos
inimigos, como podemos ver na sequência do texto de Mateus: “Assim [se
amardes vossos inimigos e orardes pelos que vos perseguem] vos tornareis
filhos do vosso Pai que está nos céus; pois ele faz nascer seu sol
sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos” (5,45).
Para os seguidores e seguidoras de Jesus, ao contrário do que faz uma
religião desvinculada do Evangelho, não se trata de pura escolha salvar
o mocinho e abandonar o bandido. Significa testemunhar aquilo que os
cristãos e cristãs insistem em rezar, infelizmente sem muitos
desdobramentos existenciais e vivenciais: “perdoai as nossas ofensas,
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido”. E mais: significa,
ainda, não abrir mão do imperativo ético fundamental: a vida humana tem
fim em si mesma e não pode ser usada para que se alcance outro fim.
Assumir-se cristão e cristã é se colocar, cotidianamente, diante do
exercício responsável de liberdade, lugar da vivência ética, que não dá
espaço para atitudes de justiçamento: “Cito hoje o céu e a terra como
testemunhas contra vós, de que vos propus a vida e a morte, a bênção e a
maldição. Escolhe, pois, a vida [...]” (Dt 30,19).
Felipe Magalhães Francisco é mestre em Teologia, pela Faculdade
Jesuíta de Filosofia e Teologia. Coordena a Comissão Arquidiocesana de
Publicações, da Arquidiocese de Belo Horizonte. Articula a Editoria de
Religião deste portal. É autor do livro de poemas Imprevisto (Penalux,
2015). Escreve às segundas-feiras. E-mail para contato:
felipe.mfrancisco.teologia@gmail.com.
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