Por Sinivaldo Silva Tavares*
Diante dos desafios do 'pluralismo cultural e religioso', a resposta da cultura ocidental tem sido caracterizada pela reafirmação de sua superioridade face às demais.
Diálogo inter-religioso é caminho para uma ética comum a todas as tradições religiosas. (assisiofm) |
Iniciamos há poucos dias um novo ano. E
todo início é recomeço. E recomeça-se sempre projetando e formulando
bons propósitos. Dentre os vários propósitos, emerge o da construção de
uma cultura de Paz. Vivemos, atualmente, uma situação de inédita e
surpreendente proximidade entre as várias culturas e as distintas
tradições religiosas do planeta. E isto repercute visivelmente nos mais
variados setores da vida humana. As constantes migrações e o conseqüente
deslocamento de numerosos grupos humanos têm fomentado a pluralidade de
culturas e de religiões num mesmo território geográfico. A agravar
ainda mais a presente situação é a entrada em cena dos novos
fundamentalismos, teóricos e práticos, e de seus eventuais riscos para a
convivência no Planeta.
Diante dos desafios lançados no contexto desta nova configuração,
denominada de “pluralismo cultural e religioso”, a resposta da cultura
ocidental tem sido caracterizada pela reafirmação de sua superioridade
face às demais. Esta empáfia se revela na imposição autoritária da
própria cultura mediante a sutil e subliminar ação dos Mass media
e a gradual e perversa eliminação das culturas minoritárias,
ideologicamente interpretadas como culturas ancestrais, antiquadas e
contrárias à lógica do mercado expansionista.
A resposta das grandes tradições religiosas, especialmente as
monoteístas, não tem sido diferente: visivelmente marcada pela
reafirmação rígida da própria identidade religiosa. Isso se torna claro
na acentuação exagerada de seus próprios aspectos dogmáticos,
disciplinares e morais. Parece-nos que o princípio “fora da própria
religião não há salvação” está ganhando cada vez mais força, sobretudo,
ao acordar reminiscências de um passado que julgávamos enfim superado. E
o que é pior, este mesmo princípio vem contribuindo para o despertar de
crassos fundamentalismos religiosos que trazem no próprio bojo uma fome
incontida de violência.Face à gravidade desta situação, nossa posição não pode ser a da
trincheira. É preciso abandonar de vez a pretensão de sermos a única
cultura legítima e a única religião verdadeira. É preciso potencializar
ao máximo esta inusitada proximidade entre as várias culturas e
religiões, acolhendo as repercussões que tal situação provoca. Em nosso
caso específico, de cristãos católicos, somos testemunhas de um
incipiente processo de revisão dos erros cometidos no passado em ternos
de desvalorização das outras religiões, consideradas geralmente como
superstições a serem debeladas ou como falsidades a serem desmascaradas.
O fato que o Concílio Vaticano II tenha reconhecido o princípio do
respeito à liberdade religiosa criou as condições para que surgisse na
Igreja uma atitude de tolerância e de respeito para com as outras
tradições religiosas.E o resultado direto deste empenho eclesial tem sido um conhecimento
maior das distintas tradições religiosas, o que tem propiciado uma maior
aceitação de ambas as partes. Cresce paulatinamente na Igreja Católica a
convicção de que, imprescindível se faz não repetir atitudes de
superioridade e de intolerância, pois, na verdade, a igualdade de
condições constitui pressuposto de base no processo de diálogo entre
tradições religiosas diferentes. Nesse sentido, o empenho em prol de um
autêntico diálogo inter-religioso parece ser o caminho privilegiado para
a construção de uma ética comum a todas as tradições religiosas que
possa, por um lado, resgatar o perfil mais genuíno de cada religião e,
por outro, contribuir eficazmente na construção de sociedades mais
justas e de um planeta habitável.Face à cultura em geral, não podemos nos entrincheirar numa espécie
de gueto, nem emitir condenações como se falássemos sempre a partir de
uma cidadela fortificada e imune a todo e qualquer influxo externo. De
distintas partes, chega até nós o apelo de aprofundar a intrínseca
cumplicidade entre cristianismo e cultural ocidental. E este apelo se
torna ainda mais insistente, sobretudo por parte daqueles que assumiram o
pesado fardo de pensar as raízes mesmas do ocidente enquanto fenômeno
cultural. E por incrível que pareça, esta cumplicidade se revela,
sobretudo naquelas posições, práticas e teóricas, que sentimos
espontaneamente o desejo de rechaçá-las.Trata-se de uma cumplicidade, para todos os efeitos, paradoxal,
porém, de uma estreita e íntima cumplicidade. Pois como gostava de
repetir o grande Yves Congar, se a Modernidade se nos afigura como “um
mundo sem Deus”, isso se deve, sobretudo ao fato da Igreja, durante
séculos, ter anunciado “um Deus sem o mundo”. Por esta razão, a estreita
cumplicidade que existe entre cultura ocidental e cristianismo é bem
mais complexa e intrincada do que julgamos. Se, de fato, as coisas são
assim, então o melhor é aprofundar ao máximo esta relação de
reciprocidade entre Cristianismo e cultura ocidental para poder extrair
dela suas próprias e intrínsecas virtualidades em vistas de um diálogo
fecundo e esclarecedor.De nada adiantaria a nós católicos, recolher-se numa trincheira
presumivelmente bem reparada, para daí disparar toda a artilharia contra
posições erroneamente consideradas alheias e exteriores. É preciso, ao
contrário, misturar-se com o mundo, assumindo com serenidade nossa
parcela de responsabilidade na produção do que aí se encontra.
Compartilhar a responsabilidade nos limites pode significar um primeiro e
imprescindível passo na construção engajada e militante das eventuais
alternativas. Não nos resta, portanto, que a inserção engajada no “nosso
tempo” predispondo-nos ao diálogo transparente e sem preconceitos. Ao
invés de repetir condenações do passado, é necessário valorizar, por
exemplo, as novas possibilidades de vida e de esperança para o ser
humano, propiciadas pelas recentes pesquisas científicas.A Igreja, portanto, jamais poderá se sentir “desobrigada” a
participar do amplo debate acerca das questões cruciais do “nosso
tempo”: a dignidade inalienável do ser humano, a justiça, participação e
inclusão sociais e, enfim, o destino de nosso planeta. Isso não
significa, de forma alguma, que ela se sinta autorizada a acordar sonhos
adormecidos de teocracias históricas ou de fundamentalismos religiosos
esclerosados. Pelo contrário, para a Igreja, esta situação parece se
configurar como a ocasião propícia, um verdadeiro Kairós, para
que ela possa recuperar a dinâmica própria do Mistério da Encarnação
como sua matriz constitutiva e, portanto, como seu diferencial, sem o
qual ela sequer pode ousar considerar-se como tal. É a partir desta
específica dinâmica encarnacionista que a Igreja poderá participar,
ousada e modestamente, eficaz e humildemente, da nova tessitura das
distintas singularidades, das identidades regionais, da história comum
da humanidade e do destino bom da vida do Planeta.
Resgatando o princípio caro aos pais da Igreja segundo o qual o que não foi assumido pelo Verbo de Deus também não foi salvo,
os cristãos deste século se empenharão num engajamento capilar
procurando “esperar contra toda esperança” (Rm 4,18) para poder, com
maior credibilidade, “dar as razões da própria esperança” (1Pd 3,15).
Esta atitude de inserção no mundo propiciará gestos e palavras que
brotem dos abismos mais profundos e sombrios desta mesma realidade. Sem
renunciar à Revelação como sua fonte primeira e vinculante, a comunidade
dos fiéis se esmerará na articulação daquela palavra responsável que,
justamente porque oriunda de Deus, emergirá dos sulcos mais profundos da
história da humanidade e das histórias pessoais bem como dos meandros
sutis do inteiro cosmos.
Recuperando, ademais, outro princípio constitutivo seu, o
pneumatológico, a Igreja se ocupará de assumir sua missão eminentemente
espiritual. Não se trata, aqui, de entender espiritual como uma região
da pessoa, da história e do cosmos, separada e contraposta a outra: de
caráter material ou profana. Importa, neste caso, recuperar o sentido
genuinamente cristão do “espiritual” concebido como interioridade,
intimidade. Neste sentido, a missão peculiar da Igreja, templo do
Espírito Santo, é inserir-se nas realidades pessoais, históricas e
cósmicas, para potencializar ao máximo suas intrínsecas virtualidades.E para que a Igreja possa assumir responsavelmente esta dúplice e
peculiar incumbência, ela deverá recuperar a dimensão intrínseca e
genuinamente religiosa do cristianismo. E isso por duas razões
fundamentais. Por ser, em primeiro lugar, a dimensão religiosa a única
talvez capaz de religar, como exprime a própria etimologia da palavra,
os fios rompidos desta complexa teia que é a vida. Se a incumbência
singular da fé cristã é reconstruir a partir das ruínas, coser de novo a
partir das dilacerações e fragmentações, então como fazê-lo senão
procurando resgatar simultaneamente sua dimensão intrinsecamente
religiosa.
Ademais, num contexto em que pululam formas religiosas com a pretensão de responder a verdadeiras questões com falsas soluções,
a Igreja não pode, de forma alguma, renegar sua intrínseca dimensão
religiosa. Sobretudo com o ressuscitar de antigos e esclerosados
fundamentalismos religiosos, teóricos e práticos, legitimando situações
de miséria e de sofrimento injusto bem como estratégias interesseiras e
políticas predatórias, as comunidades cristãs são chamadas a recuperar a
genuína significação da fé como autêntica experiência de Deus. E isso
contra toda forma de instrumentalização ideológica da fé por parte de
algumas expressões religiosas que acabam colocando em risco a dignidade
do ser humano, os valores responsáveis por uma convivência harmoniosa e
justa entre as pessoas e o próprio destino da história e do inteiro
planeta.
*Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM. Frade franciscano. Doutor
em Teologia Sistemática. Atualmente é professor desta mesma disciplina
na Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) e no Instituto São
Tomás de Aquino (ISTA), ambos situados em Belo Horizonte, MG.

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