De 24 a 26 de março foi realizada em Roma, a conferência nacional dos padres casados, convocada pela associação "Vocatio", intitulada: "Padres Casados para uma Igreja em movimento". Três foram os principais palestrantes: Adriana Valerio, Giovanni Cereti e Basilio Petrà, de quem publicamos o texto apresentado no evento: "Rumo a um presbiterado celibatário e uxorado em toda a Igreja Católica".
O texto de Basilio Petrà, padre e teólogo italiano, publicado por L’Indice del Sínodo, 29-03-2017. A tradução é de Luisa Rabolini.
Eis o texto.
O que vou falar hoje nasce de uma intenção precisa: demonstrar que
chegou momento teológico e eclesial para o reconhecimento formal de que o
Senhor chama tanto homens solteiros como casados para o exercício do ministério presbiteral em toda a Igreja católica e que cada Igreja da comunidade católica deveria por em prática com coerência esse reconhecimento.
Saliento de imediato o meu ponto de vista: a questão do clero casado não
é uma questão sociológica ou um problema de melhor utilização dos
recursos humanos na Igreja, é principalmente, uma questão teológica.
Isto significa: o Senhor também chama homens casados para o exercício do
ministério ordenado na Igreja, ou não? Porque, se o Senhor de fato faz
isso, então a Igreja só pode aceitar este dom de Deus e não rejeitá-lo.
A fim de provar que isto é correto, no entanto, preciso inicialmente
recordar a todos vocês uma verdade elementar tão regularmente
negligenciada.
A Igreja Católica é uma comunhão de aproximadamente
vinte e duas igrejas, todas com direitos próprios (sui iuris). Uma deles
é a Igreja de rito latino; existem também outras do rito oriental e as
que são originárias da tradição alexandrina, antioquina, armênia,
caldeia e constantinopolitana.
A estrutura da comunhão da Igreja católica torna-se evidente quando se verifica que não existe apenas um código de direito canônico, mas dois, um para a Igreja de rito latino (CIC) e um para as Igrejas Orientais (CCEO),
ambos dotados de igual dignidade e sancionados pela mesma autoridade. A
dualidade dos códigos decorre da existência, apesar da unidade da fé
entre as diferentes Igrejas em comunhão, de diversidades disciplinares,
litúrgicas, espirituais e teológicas.
Essa estrutura peculiar de comunhão determina um
aspecto muito importante: uma afirmação pode ser considerada
representativa da comunhão católica somente se expressa uma realidade
compartilhada por toda a experiência das Igrejas da comunhão católica, e
pode ser chamada de interesse católico apenas quando diz respeito à
inteira comunhão católica. Caso contrário, não pode ser apropriadamente
chamada católica, mas apenas própria de uma Igreja sui iuris, ou
relativa apenas a uma ou mais das suas Igrejas autônomas. Obviamente, o
pressuposto essencial dessa comunhão entre as Igrejas é que não pode
haver contradição teológica entre as características particulares
individuais dessas Igrejas.
A Igreja Católica, como sabemos, tem um centro
visível da unidade. É o centro composto pelo ministério petrino exercido
pelo Bispo de Roma, que no exercício do diaconato apostólico é apoiado
por congregações e organizações da Cúria. O princípio que mencionamos
acima se aplica de forma similar tanto ao ministério petrino como para a
Cúria. Quando se fala sobre algo que não diz respeito a toda a Igreja
católica, está se falando em relação a uma Igreja sui iuris, que eventualmente pode ser a latina.
Peço que guardem bem este princípio, porque nas seguintes
considerações mencionarei algumas circunstâncias em que fica claro que
as congregações romanas ainda continuam a agir como se Igreja latina e Igreja católica simplesmente se identificassem, embora pequenos sinais de mudança estejam começando a surgir.
Uma aceitação oficial, mas não na prática
A Igreja Católica na sua catolicidade tem duas formas de clero, uma celibatária e uma uxorada,
sua existência é plenamente aceita e considerada completamente
legítima. É um fato objetivo evidente. Não estou falando aqui do
diaconato – a respeito do qual não há contestação (praticamente nenhuma)
- mas apenas do sacerdócio.
Na verdade, todas as Igrejas católicas orientais
(excluindo as duas Igrejas indianas: siro-malancar e siro-malabar, pelo
menos na atual disciplina) têm as duas formas do clero, casado e
celibatário. A grande maioria do clero paroquial nessas igrejas é
uxorado.
Além disso, a própria Igreja latina tem as duas formas do clero. Sabemos que, em casos excepcionais (mas não raros) são acolhidos ministros casados oriundos de outras confissões cristãs e que, na eventualidade de não serem validamente ordenados são novamente ordenados ex novo por bispos católicos, permanecendo casados e sem qualquer mudança na disciplina de sua vida conjugal.
Além disso, a própria Igreja latina tem as duas formas do clero. Sabemos que, em casos excepcionais (mas não raros) são acolhidos ministros casados oriundos de outras confissões cristãs e que, na eventualidade de não serem validamente ordenados são novamente ordenados ex novo por bispos católicos, permanecendo casados e sem qualquer mudança na disciplina de sua vida conjugal.
Portanto, os dois tipos de clero hoje são catolicamente aceitos como formas de clero verdadeiras, legítimas e válidas.
Insisto, a aceitação oficial é inquestionável. Contudo, isso não
impede que ainda seja, de fato, contradita no âmbito da concreta prática
eclesial católica e também no exercício efetivo da atividade pastoral
universal da Igreja. Em outras palavras, todos os órgãos que articulam
um serviço católico na Igreja ainda parecem mover-se prioritariamente
sobre uma linha que contradiz tal consciência católica.
Há coisas que todos nós sabemos, como as grandes dificuldades
enfrentadas pelas Igrejas orientais católicas para conseguir que seus
fiéis fossem seguidos na diáspora por ministros uxorados das suas
Igrejas ou a dificuldade de colocar o clero uxorado nos sistemas de remuneração do clero em vários países, incluindo a Itália.
O clímax da contradição, em minha opinião, foi alcançado nos dois
Sínodos sobre a família de 2014 e 2015. Não foram levadas em
consideração as famílias sacerdotais católicas, nem o clero uxorado
oriental. O único padre oriental chamado a participar dos sínodos foi um padre celibatário católico da Igreja copta.
Foi realmente o auge da contradição.
Talvez, apenas talvez, possa estar começando um caminho diferente. Digo isto porque no final do segundo Sínodo houve algumas reações vindas do lado oriental, especialmente depois de meu post no blog L’Indice del Sinodo (Famiglie dimenticate, sposi assenti ‘Famílias esquecidas, cônjuges ausentes’ em trad. livre) e, talvez, seja por causa dessas reações que Amoris laetitia se
tornou o primeiro documento católico de altíssimo nível magisterial e
pastoral que convida catolicamente a valorizar algumas competências dos "padres casados". Acredito que vocês já conhecem bem esse trecho, mas é oportuno relembrá-lo.
Está localizado no n. 202 da Amoris laetitia e
explica: “’A principal contribuição para a pastoral das famílias é
oferecido pela paróquia, que é uma família de famílias, onde se
harmonizam as contribuições das pequenas comunidades, movimentos e
associações eclesiais’. A par de uma pastoral especificamente voltada
para as famílias, há necessidade duma ‘formação mais adequada para
presbíteros, diáconos, religiosos e religiosas, catequistas e restantes
agentes pastorais’. Nas respostas às consultações promovidas em todo o
mundo, ressaltou-se que os ministros ordenados carecem, habitualmente,
de formação adequada para tratar dos complexos problemas atuais das
famílias; pode ser útil também a experiência da longa tradição oriental
dos sacerdotes casados”.
A referência foi claramente acrescentada a posteriori, uma vez que não fica claro se significa que inclusive os padres casados
tiveram que receber ou recebem formação adequada, ou se indica que eles
podem ajudar os celibatários e os demais para ter uma formação
adequada, com a sua experiência, ou seja, como especialistas da vida
familiar. Provavelmente a segunda interpretação é a mais plausível.
Claro, não é muito.
No entanto, implicitamente menciona alguns elementos significativos:
primeiro, que eles são verdadeiros sacerdotes (de fato, são assim
chamados); segundo, que a própria experiência de vida lhes permite
compreender melhor a condição conjugal e familiar; em terceiro lugar, a
sua disciplina tem como base uma tradição de longa data. Poderia ter
sido valorizado mais o papel das famílias presbiterais, mas isso seria pedir demais. Um pequeno sinal de mudança, mas talvez um real sinal de avanço.
Com base no Concílio
A atual aceitação católica oficial da dupla forma do clero não é
fruto do acaso ou das dinâmicas de políticas eclesiásticas, mas é antes o
resultado de uma tradição bem estabelecida, inclusive latina, sobre a
relação entre o casamento e ministério ordenado, portanto, de algumas
decisões disciplinares pré-conciliares assumidas pelo diaconato pastoral
petrino na Igreja católica, e, finalmente, da doutrina conciliar do Concílio Vaticano II.
Não será possível aqui analisar formal e totalmente esse discurso; só vou mencionar algumas afirmações fundamentadas no Concílio a respeito das quais ofereço evidências em meus livros:
1) Não é mais legítimo insistir em uma visão pré-conciliar do sacerdócio uxorado,
como "condição juridicamente tolerada". Essa visão é pré-conciliar no
sentido preciso que não corresponde mais à autoconsciência da Igreja
neste momento e sua autoprojeção para o futuro. Para isso, consultar as
palavras do próprio cardeal Sandri,
prefeito da Congregação para as Igrejas orientais, na conferência
realizada no Pontifício Colégio Pio Romeno, em 18 de abril de 2013,
sobre o tema: "O Concílio e os orientais".
2) Para o Concílio, o sacerdócio uxorado
é verdadeiro sacerdócio igual ao celibatário; para um e para o outro se
aplica tudo o que vale para o verdadeiro sacerdócio em geral. Tudo o
que se fala do sacerdócio como tal, como essência e funções, vale par
ambas as formas de sacerdócio. O sacerdócio ministerial,
de fato, não está ligado por sua natureza, nem com o celibato e nem com
casamento, mas pode se associar a uma ou outra condição, de acordo com a
vontade do Senhor e o discernimento da Igreja.
3) Para o Concílio, precisamente porque é verdadeiro sacerdócio ministerial, o sacerdócio uxorado nasce de um chamado divino confirmado pela Igreja, ao par do chamado ao sacerdócio celibatário. É também uma ‘santa vocação’. Uso a expressão "santa vocação" para indicar a vocação ministerial, porque Presbiterorum ordinis,
no n.16 usa-a formalmente com referência ao clero uxorado, bem como,
claramente, diz que o sacerdócio uxorado é uma forma de plena dedicação
da vida ao rebanho.
Lê-se no primeiro parágrafo do número 16:
"A continência perfeita e perpétua por amor do reino dos céus,
recomendada por Cristo Senhor, generosamente aceita e louvavelmente
observada através dos séculos e mesmo em nossos dias por não poucos
fiéis, foi sempre tida em grande estima pela Igreja, especialmente na
vida sacerdotal. É na verdade sinal e estímulo da caridade pastoral e
fonte singular de fecundidade espiritual no mundo. De si, não é exigida
pela própria natureza do sacerdócio, como se deixa ver pela prática da
Igreja primitiva e pela tradição das Igrejas orientais, onde, além
daqueles que, com todos os Bispos, escolhem, pelo dom da graça, a
observância do celibato, existem meritíssimos presbíteros casados.
Recomendando o celibato eclesiástico, este sagrado Concílio de forma
nenhuma deseja mudar a disciplina contrária, legìtimamente vigente nas
Igrejas orientais, e exorta amorosamente a todos os que receberam o
presbiterado já no matrimônio, a que, perseverando na sua santa vocação,
continuem a dispensar generosa e plenamente a sua vida pelo rebanho que
lhes foi confiado (negrito do autor)".
4) Em termos de Concílio, a distinção entre as duas
formas do único sacerdócio não reside no ministério sacerdotal como tal
(ou seja, na natureza do sacerdócio), mas na condição existencial
diferente em que são chamados a viver o sacerdócio aqueles que recebem a
santa vocação.
Tudo isso é parte de aquisições do Concílio, plenamente retomadas mais tarde no CCEO.
O silêncio nos textos oficiais
Justamente porque o ministério uxorado nasce de uma
santa vocação, ou seja, de uma vocação divina reconhecida pelo
discernimento da Igreja, catolicamente vale a afirmação de que o
ministério ordenado uxorado é uma das condições de vida a que o Senhor
pode chamar.
Este ponto pode ser melhor ilustrado pela leitura em um recente artigo ligado a um próximo evento da Igreja, o Sínodo sobre os jovens, a fé e o discernimento vocacional de 2018.
Na verdade, quando consultamos o Documento preparatório e o
questionário publicado em janeiro deste ano no item II, 2 onde se trata
do discernimento vocacional, lemos: "Com isto em mente, vamos nos
concentrar aqui no discernimento vocacional, isto é, no
processo pelo qual a pessoa executa, em diálogo com o Senhor e na
escuta a voz do Espírito, as escolhas fundamentais, começando pelo
estado de vida. Se a questão sobre como não desperdiçar as oportunidades
de autorrealização afeta todos os homens e mulheres, para o crente a
pergunta torna-se ainda mais intensa e profunda. Como viver a boa nova
do Evangelho e responder ao chamado que o Senhor dirige a todos aqueles
de quem se aproxima: através do casamento, do ministério ordenado, da
vida consagrada? E qual é o campo no qual podem se empenhar os próprios
talentos: a vida profissional, o trabalho voluntário, o serviço aos
necessitados, o engajamento na política?".
Os três estados de vida (casamento, ministério ordenado, consagração
religiosa) são apresentados em paralelo e separados entre si como
estados de vida. Isso não corresponde à realidade eclesial católica.
O pressuposto é que não se possa chamar o ministério ordenado uxorado:
esse pressuposto não é correto do ponto de vista católico exatamente
pelas razões que mencionamos acima. Uma vez que, de fato, as duas formas
de ministério, uxorado e celibatário, são verdadeiras, legítimas,
divinas vocações plenamente aceitas na Igreja católica, ambas devem ser
levadas em consideração em todos os documentos de valor católico.
Isto é tanto mais necessário neste momento em que surgem comunidades
católicas de rito oriental em muitos países nos quais tradicionalmente
não existiam. Tanto a pastoral vocacional como o cuidado das vocações -
em sua forma católica - deve levar em consideração essa dualidade de
formas existenciais do próprio sacerdócio ministerial, se quiserem ser
consistentemente católicas.
Um limite análogo aparece também em um documento tão importante como a Ratio fundamentalis institutionis sacerdotalis, publicado em 08 de dezembro de 2016, pela Congregação para o Clero, sob a presidência do Cardeal Beniamino Stella, com o título "O dom da vocação sacerdotal".
Pois bem, o documento afirma explicitamente que seu conteúdo não se aplica às igrejas orientais católicas
que em matéria "devem preparar as seus normas, a partir de sua próprio
patrimônio litúrgico, teológico, espiritual e disciplinar" (O dom da
vocação presbiteral, Normas gerais, 1) e quando examina o caso em que há
seminários latinos com presença simultânea de seminaristas orientais,
no n. 110, deixa claro: "Nos casos em que sejam admitidos nos Seminários
latinos seminaristas das Igrejas orientais católicas, no que diz
respeito à sua formação ao celibato ou ao matrimônio, sejam observadas
as normas e os costumes das respectivas Igrejas orientais".
Não pode ser ignorado que essa forma de aparente conformidade com as
tradições orientais seja, de fato, invertida para uma espécie de
colocação de tais tradições em reservas do tipo indiano, como se a visão
católica fosse outro mundo.
Assim, no mesmo número – o 110 - em que com as poucas palavras
mencionadas acima (nem mesmo uma linha nas 29 do texto; uma linha de
nota das 19 de notas) acena-se a seminaristas católicos
que são formados ao matrimônio e que podem estar no mesmo seminário com
seminaristas formados ao celibato, ao contrário dedicam-se muitas
palavras e muitas citações para falar de significado espiritual e
pastoral do celibato latino e nenhuma palavra ao significado espiritual e
pastoral do ministério uxorado.
Veja-se bem: trata-se de é um documento católico no qual há ciência de que existem seminaristas católicos
formados ao celibato e seminaristas católicos que são formados ao
matrimônio. No entanto, enquanto para os orientais há uma referência a
suas Igrejas sem dizer catolicamente nada, insiste-se bastante em
legitimar a disciplina da Igreja latina - explicitamente lembrada como
"Igreja latina" - afirmando a conveniência especial da "continência
perfeita no celibato" como um "sinal [desta] dedicação total a Deus e ao
próximo".
Poder-se-ia perguntar por que uma Congregação católica dedique tanto espaço para enfatizar o valor especial da prática celibatária latina
que é praticada apenas em algumas igrejas católicas, e porque nada
coloca sobre o valor do sinal de dedicação a Deus e à Igreja próprio do sacerdócio uxorado na maior parte das Igrejas pertencentes à comunhão católica?
Talvez se considere tão óbvio tal valor teológico ordinário e geral do sacerdócio uxorado,
a ponto de não ser necessária nenhuma ênfase específica, e acredite-se
que no chamado celibatário só exista uma ênfase especial daquele traço
de dedicação à Igreja que é próprio de cada sacerdócio católico; ou, por
outro lado, considere-se que apenas o chamado ao sacerdócio no celibato tenha uma verdadeira e adequada dedicação à Igreja.
Se for correta a primeira interpretação, então que seja dito
formalmente, e que se diga também que cada ministério ordenado católico é
um sinal de dedicação plena a Deus e à Igreja, seja uxorado ou
celibatário; se for a segunda, assume-se uma posição que não corresponde
ao Concílio e a prática de uma grande parte das Igrejas católicas, por não incluir o testemunho das Igrejas ortodoxas.
Surge a legítima suspeita que as Congregações romanas ainda estejam
muito acostumadas a operar com uma mentalidade unicamente latina, ou
seja, ainda não se tornaram adequadamente católicas. Parecem continuar a
atuar identificando naturalmente tradição católica com tradição latina,
ou seja, conservando ainda o sentimento de praestantia ou superioridade pré-conciliar do rito latino, como se apenas o rito latino possuísse a ‘plena’ verdade do ministério ordenado.
Esse posicionamento tem ultimamente efeitos negativos sobre a
capacidade da própria Igreja latina de responder aos dons de Deus em
relação à sua própria vida. Para esclarecer este ponto, gostaria de
apresentar uma quarta consideração.
Uma Igreja católica
A história da Igreja latina demonstra que, embora
tenha havido muitas tentativas nesse sentido, nunca a condição conjugal
foi definida como impedimento intrinsecamente impeditivo da validade da
ordenação ministerial. Lembre-se que no próprio CIC (Código de Direito
Canônico) de 1983, can. 1042, 1 fala-se que o casado "está simplesmente
impedido de receber as ordens" (assim também no CJC de 1917, can. 987,
2º).
Por essa base amplamente tradicional Pio XII tomou algumas decisões que permitiram à Igreja latina
abrir-se ao acolhimento de ministros não católicos, reconhecendo nisso
uma precisa vontade divina. A mesma sabedoria foi mostrada pelos padres
conciliares ao aceitar o diaconato uxorado. Paulo VI e os papas subsequentes - em continuidade com Pio XII e à luz do claro ensinamento do Concílio
- têm operado um discernimento pelo qual reconhecem que o Senhor pedia à
Igreja latina aceitar ministros uxorados ou, inclusive, ordenava-os, em
caso de conversão de confissões não católicas.
Ressalto esse ponto: esses atos de acolhimento e ordenação não foram e
não são atos de política eclesiástica, mas atos de discernimento
eclesial pelos quais se toma conhecimento de uma vontade divina para a
Igreja latina. Poder-se-ia, por exemplo, pedir a esses ministros ou
comunidades para se associar a Igrejas orientais católicas, mas não foi
feito.
Esses atos de discernimento, tornados possíveis pela tradição e doutrina do Concílio, são a clara prova de que a Igreja latina conhece e reconhece que Deus pode chamar as pessoas ao exercício do ministério uxorado
também na Igreja latina, e que nisso não há conflito algum com a
afirmação de um significado simbólico especial da continência no
celibato sacerdotal, uma vez que o próprio Senhor não vê nisso qualquer
conflito e continua a chamar ao ministério tanto homens solteiros como
casados na Igreja católica.
O discernimento que desde Pio XII
vem sendo aplicado nos confrontos das vocações ministeriais dos
ministros em conversão, também deveria ser possível nos confrontos de
homens casados que mostrem sinais positivos de vocação divina ao
ministério.
Trata-se de passar de uma prática evidentemente ocasional e
excepcional, mas fundamentada em um princípio teológico, para uma
prática que assume explicitamente e formalmente o mesmo princípio,
tomando plenamente ato dele.
Isso também permitiria à Igreja latina articular melhor as formas de
exercício do ministério e oferecer condições para prover às necessidades
sacramentais e ministeriais das comunidades (como, por exemplo,
instituindo os presbíteros da comunidade).
Não há razão pela qual deveria ser escandaloso ter uma Igreja latina
que, como no início do segundo milênio, aceite comunidades de
presbíteros que vivam juntos sob uma regra, presbíteros casados,
reitores de comunidade e monges ordenados. Isso poderia conviver, eu
acredito, também com uma preferência latina tradicional para o clero celibatário e com o celibato recomendado, mas não obrigatório.
Lex continentiae?
A partir do momento que um dos motivos que levaram à normativa latina do celibato obrigatório foi a prática da lex continentiae
e a visão subjacente da sexualidade e do casamento, precisa ser
mencionado algo sobre a importância que este princípio hoje usufrui.
Por lex continentiae entende-se a lei pela qual a grosso
modo no primeiro milênio os homens casados que recebiam as ordens
maiores comprometiam-se à suspensão das relações sexuais. Sobre a
origem, a extensão e a aceitação desta lei há vários registros de longos
debates históricos.
Independentemente dos acontecimentos do ponto de vista histórico, é preciso dizer claramente que a visão do Concílio e pós-Concílio da sexualidade e casamento é muito diferente daquele do primeiro milênio e de grande parte do segundo.
A sexualidade é parte do projeto divino do amor
conjugal; os próprios atos conjugais revestem-se de plena dignidade e
significado como escreve exemplarmente Gaudium et Spes,
n. 49: " Este amor [conjugal] tem a sua expressão e realização peculiar
no ato próprio do matrimônio. São, portanto, honestos e dignos os atos
pelos quais os esposos se unem em intimidade e pureza; realizados de
modo autenticamente humano, exprimem e alimentam a mútua entrega pela
qual se enriquecem um ao outro na alegria e gratidão".
Amoris laetitia, posteriormente, considera também a paixão como uma forma assumida pela caridade conjugal. Basta consultar o seu n. 120.
A teologia atual da sexualidade e do casamento nos permite dizer
muito claramente que a condição de vida conjugal não contradiz a ordenação presbiteral
do homem, aliás, podemos mesmo dizer que a ordenação oferece a
possibilidade de um cumprimento do próprio significado sacramental do
matrimônio e da família.
O casamento, de fato, na doutrina atual da Igreja, expressa na Familiaris Consortio e Amoris laetitia,
não é simplesmente uma instituição natural que recebe a bênção de Deus
para a procriação e educação da prole. É muito mais: é um lugar onde se
expressa a própria Igreja, é uma manifestação da igreja, é a igreja
doméstica. Os cônjuges são ministros de um sacramento que os coloca,
através de seu próprio amor, ao serviço de Deus e da Igreja,
precisamente porque são Igreja que se realiza na e através da comunhão
conjugal e familiar.
A comunhão conjugal simboliza a totalidade da
relação entre Cristo e a Igreja e exprime-a experimentando as dimensões
do amor conjugal em sua plenitude; a comunhão familiar – que nasce da
conjugal - é também um símbolo vivo do amor trinitário, chamado para ser
uma comunhão de vida e amor que se abre para com os outros, a
comunidade eclesial e o mundo. Ela participa do ministério profético,
sacerdotal e majestoso da igreja; é, e deve ser, família aberta,
acolhedora, missionária.
Hoje é entregue o crucifixo às famílias missionárias que saem em
missões ao serviço da Igreja e que deixam suas terras, levando consigo
seus filhos. Hoje, existem casais que gerem centros pastorais e estão ao
pleno serviço da comunidade. E poderíamos continuar.
Hoje, mais do que nunca, torna-se possível entender como o casamento e
a vida familiar não só não contradizem o ministério sacerdotal, mas
podem encontrar nele uma maneira com que implementar o sentido cristão
do matrimônio e da família, a realidade de um casamento aberto ao
serviço da Igreja e do Evangelho.
Em outras palavras, é dada uma possível continuidade sacramental
entre o casamento cristão e o ministério sacerdotal uxorado,
precisamente porque este último pode ser visto como uma forma peculiar
pela qual o casal/família coloca em prática a missão profética,
sacerdotal e majestosa que é própria de cada casal/família cristã e
sobre ela se alicerça.
Utilizei bastante até aqui a linguagem da Familiaris consortio, articulada nos tria munera Christi, mas algo similar pode muito bem ser dito com a linguagem da Amoris laetitia,
que utiliza prioritariamente a da "igreja doméstica". A perspectiva de
fato é semelhante e permite perceber de forma igual que não há
contradição entre casamento/família e ministério ordenado. Limito-me a
citar um texto de Amoris laetitia, o n. 324:
"Sob o impulso do Espírito, o núcleo familiar não só acolhe a vida
gerando-a no próprio seio, mas abre-se também, sai de si para derramar o
seu bem nos outros, para cuidar deles e procurar a sua felicidade. Esta
abertura exprime-se particularmente na hospitalidade, que a Palavra de
Deus encoraja de forma sugestiva: «Não vos esqueçais da hospitalidade,
pois, graças a ela, alguns, sem o saberem, hospedaram anjos» (Heb 13,
2). Quando a família acolhe e sai ao encontro dos outros, especialmente
dos pobres e abandonados, é «símbolo, testemunho, participação da
maternidade da Igreja ». Na realidade, o amor social, reflexo da
Trindade, é o que unifica o sentido espiritual da família e a sua missão
fora de si mesma, porque torna presente o querigma com todas as suas
exigências comunitárias. A família vive a sua espiritualidade própria,
sendo ao mesmo tempo uma igreja doméstica e uma célula viva para
transformar o mundo”.
Amoris laetitia também insiste muito no que se pode
chamar de a estrutura familiar da comunidade paroquial e da vida
eclesial. Basta ver, por exemplo, Amoris laetitia, n. 202 onde é
formalmente dito que a paróquia é "família de famílias".
A responsabilidade da teologia
Todas essas considerações levam a uma conclusão precisa: a Igreja
católica sabe que Deus chama tanto os homens solteiros como os homens
casados para o serviço ministerial. Cada chamado tem a sua dignidade e
sua maneira de expressar a dedicação plena ao serviço da Igreja.
As Igrejas orientais católicas sempre agiram com base nesse conhecimento; a Igreja latina
nos últimos cinco séculos decidiu operar de uma maneira diferente, até o
século XX, quando se lembrou cada vez mais claramente que o Senhor
também chama homens casados
à ordem não só como diáconos, mas também como presbíteros. Hoje chegou a
hora de assumir esta consciência plenamente, e simplesmente seguir –
com esta mesma consciência - a vontade do Senhor.
A teologia tem neste momento uma grande responsabilidade,
especialmente a teologia do sacerdócio. Precisa deixar de ser uma
teologia que, de fato, transforma uma grande parte do ministério
ordenado da Igreja em uma inexplicável profissão útil de forma prática
para a Igreja e, portanto, tolerada para salvar a beleza do sacerdócio
celibatário para, finalmente, tornar-se uma teologia fiel à vida da
catolicidade da Igreja, mostrando a beleza diferente e complementar em
que se articula o divino chamado ao ministério ordenado na Igreja.
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