jbpsverdade: Belíssima matéria postada no ano de 2011 do blog ars-the de um discurso do Cardeal Ratzinger aos Bispos do Chile em 1988.
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Pax et bonum!
Um famoso texto, conhecido e citado em muitos idiomas. Passados mais de 20 anos o Discurso continua atual.
Os grifos e os textos entre colchetes são nossos.
Estimados e queridos irmãos!
Em primeiro lugar queria agradecer de
coração vosso convite tão amável para visitar vosso país e também por me
oferecerdes esta ocasião de encontro e de diálogo fraterno. Não tenho a
ilusão de que se possa conhecer um país com uma estadia de poucos dias,
entretanto, é muito importante para mim a oportunidade de poder ver os
lugares onde vós trabalhais e, em alguma medida, ter a experiência desse
ambiente da vida na Igreja nesta terra.A
finalidade das minhas palavras é fomentar o diálogo que devemos ter
mutuamente. De modo geral, devo aproveitar as ocasiões que me oferecem
estes encontros para expor brevemente algumas das questões de maior
importância do trabalho na Congregação para Doutrina da Fé. Entretanto, o
cisma que parece abrir-se com as ordenações episcopais do dia 30 de
junho leva-me a apartar-me, no momento, desse costume. Hoje queria
simplesmente comentar algumas coisas sobre o caso que diz respeito ao
Monsenhor Lefebvre [1]. Mais do que deter-se no ocorrido, parece-me que
se pode ter maior transcendência avaliando os ensinamentos que a Igreja pode tirar, para o hoje e para o amanhã, do conjunto dos acontecimentos.
Para isso, queria antecipar, em primeiro lugar, algumas observações
sobre a atitude da Santa Sé nas conversas com Mons. Lefebvre, e
continuar depois com uma reflexão sobre as causas gerais que originam esta situação e que, para além do caso particular, afetam a todos nós.
I. A atitude da Santa Sé nas conversas com Lefebvre
Nos últimos meses temos investido uma boa quantidade de trabalho no problema de Lefebvre, com um empenho sincero de criar para seu movimento um espaço vital adequado no interior da Igreja.
Criticou-se a Santa Sé de muitos lugares. Se há dito que havia cedido à
pressão do cisma, que não havia defendido com a força devida o Concílio
Vaticano II, que, enquanto atuava com grande dureza contra os
movimentos progressistas, mostrava demasiada compreensão com a rebelião restauradora.
O posterior desenrolar dos acontecimentos tem refutado suficientemente
estas declarações. O mito da dureza do Vaticano, face dos desvios
progressistas, tem resultado em uma elucubração vazia. Até o momento, se
há emitido, fundamentalmente, admoestações e, em nenhum caso, penas
canônicas no sentido próprio. O fato de Lefebvre ter denunciado ao final
o acordo firmado, mostra que a Santa Sé, apesar de ter feito concessões
verdadeiramente amplas, não lhe concedeu a licença global que desejava. Na parte fundamental dos acordos, Lefebvre
havia reconhecido que devia aceitar o Concílio Vaticano II e as
afirmações do Magistério pós-Conciliar, com a autoridade própria de
cada documento. É contraditório que sejam exatamente aqueles que não
deixaram passar nenhuma ocasião para gritar em todo o mundo a
desobediência [de Lefebvre] ao Papa e às declarações do Magistério nos
últimos 20 anos, os que julgam esta postura tíbia demais e pedem que se
lhe exija uma obediência absoluta para abraçar o Vaticano II.
Também se pretendia que o Vaticano havia concedido um direito a Lefebvre
para discordar, o que se nega persistentemente aos componentes de
tendência progressista. Na realidade, o único que se afirmava no acordo,
seguindo a Lumen Gentium em seu n. 25, era o simples fato de que nem todos os documentos do Concílio tem o mesmo alcance.
No acordo previa-se também explicitamente que se devia evitar a polêmica pública, e se solicitava uma atitude positiva de respeito
às medidas e declarações oficiais. Concedia-se, assim mesmo, que a
Fraternidade pudesse apresentar à Santa Sé – deixando intacto o direito
dessa decisão – suas dificuldades nas questões de interpretação e de reformas no âmbito jurídico e litúrgico.
Tudo isso certamente mostra suficientemente o quanto Roma tem unido,
neste difícil diálogo, a generosidade em tudo o que é negociável, com a
firmeza no que é essencial. É muito reveladora a explicação que o mesmo
Mons. Lefebvre deu sobre a retratação de seu assentimento. Declarou que
agora havia compreendido que o acordo assinado objetivava apenas
integrar sua fundação na “Igreja do Concílio”. A Igreja Católica em
comunhão com o Papa é, para ele, a “Igreja do Concílio”, que se
desprendeu de seu próprio passado. Parece que ele não consegue ver que
se trata simplesmente da Igreja Católica com a totalidade da Tradição, à qual também pertence o Concílio Vaticano II.
II. Reflexões sobre as causas mais profundas do caso Lefebvre
O problema apresentado por Lefebvre, no entanto, não termina com a ruptura do dia 30 de junho. Seria demasiado cômodo
deixar-se levar por uma espécie de triunfalismo, e pensar que isto
deixou de ser um problema desde o momento em que o movimento de Levebvre
se separou claramente da Igreja [2]. Um cristianismo nunca pode e
nem deve alegrar-se com uma desunião. Ainda que, com toda segurança,
não se possa achar a culpa na Santa Sé, é nossa obrigação perguntarmos
que erros temos cometido, que erros estamos cometendo. Os padrões que
avaliaram o passado, desde a aparição do decreto sobre o ecumenismo do
Vaticano II [3], devem, como é lógico, avaliar também o presente. Um dos
descobrimentos fundamentais da teologia do ecumenismo é que os cismas unicamente se podem produzir quando, na Igreja, já não se vivem e amam algumas verdades e alguns valores da fé cristã.
A
verdade marginalizada torna-se independente, fica arrancada da
totalidade da estrutura eclesial, e ao redor dela se forma então o novo
movimento. Deve-nos fazer refletir o fato de que não poucos homens, fora
do ambiente restrito dos membros da Fraternidade de Lefebvre, estão
vendo neste homem uma espécie de guia ou, pelo menos, um
instrutor útil. Não é suficiente remeter-se a motivos políticos, ou à
nostalgia e a outras razões secundárias de tipo cultural. Essas causas
não seriam suficientes para atrair também, e de modo especial, jovens de
países bem diversos, e sob condições políticas ou culturais
completamente diferentes. Certamente, a visão estreita, unilateral, se
nota em todas as partes; no entanto, o fenômeno, em seu conjunto, não
seria pensável se não estivessem também em jogo elementos positivos,
que geralmente não encontram suficiente espaço vital na Igreja de hoje. Por isso, deveríamos considerar esta situação primordialmente como uma ocasião de exame de consciência. Devemos deixar-nos perguntar seriamente sobre as deficiências
em nossa pastoral, que são denunciadas por todos estes acontecimentos.
Deste modo poderemos oferecer dentro da Igreja um lugar aos que estão
buscando e perguntando, e assim lograremos tornar o cisma supérfluo, a
partir do próprio interior da Igreja. Queria enumerar três aspectos que,
conforme a minha opinião, têm um papel importante a este respeito.
a) O Santo e o profano
Há muitas razões que podem ter motivado muitas pessoas a buscar um refúgio na liturgia antiga. Uma primeira e importante é que ali encontram salvaguardada a dignidade do sagrado.
Posterior ao Concílio, muitos elevaram intencionalmente a nível de
programa a “dessacralização”, explicando que o Novo Testamento tinha
abolido o culto do Templo: a cortina do Templo rasgada no momento da
morte de Cristo na cruz significaria – segundo eles – o fim do sagrado. A
morte de Jesus fora dos muros, isto é, no âmbito público, é agora o
culto verdadeiro. O culto, se é que existe, se dá na “não-sacralidade”
da vida cotidiana, no amor vivido. Empurrados por esses raciocínios,
desprezaram as vestimentas sagradas; livrou-se as igrejas, na maior
medida possível, do esplendor que recorda o sagrado; e se reduziu a
liturgia, o quanto puderam, à linguagem e gestos da vida comum, por meio de saudações, sinais comuns de amizade e coisas parecidas.
No
entanto, com tais teorias e uma tal práxis desconhecia-se completamente
a conexão real entre o Antigo e o Novo Testamento; se havia esquecido
que este mundo, todavia, não é o Reino de Deus e que “o Santo de
Deus” (Jo, 6,69) segue estando em contradição com o mundo; que
necessitamos da purificação para nos aproximarmos dEle; que o profano,
também depois da morte e ressurreição de Jesus, não chegou a ser santo. O
Ressuscitado apareceu só àqueles cujo coração se deixou abrir para Ele,
para o Santo: não se manifestou a todo o mundo. Deste mundo se abriu o
novo espaço do culto, ao qual agora nos referimos todos; a esse culto
que consiste em acercar-se da comunidade do Ressuscitado, a cujos pés
prostraram-se as mulheres e o adoraram (Mt 28,9). Não quero neste
momento desenvolver mais este tópico, mas tirar diretamente a conclusão:
devemos recuperar a dimensão do sagrado na liturgia. A liturgia não é
um festival [festa], não é uma reunião prazeirosa [divertida]. Não tem
importância, nem de longe, que o pároco consiga levar a cabo idéias
sugestivas ou elucubrações imaginativas. A liturgia é o Deus três vezes santo fazer-se presente entre nós,
é a sarça ardente, e é a Aliança de Deus com o homem em Jesus Cristo, o
Morto e Ressuscitado. A grandeza da liturgia não se fundamenta em
oferecer um entretenimento interessante, mas no Totalmente Outro
tocar-nos, a quem não poderíamos fazer vir. Ele vem porque quer. Dito de
outro modo, o essencial na liturgia é o mistério, que se realiza no rito comum da Igreja; tudo o mais a rebaixa [a liturgia]. Os homens o experimentam vivamente e sentem-se enganados quando o mistério se converte em diversão, quando o ator principal na liturgia já não é mais o Deus vivo, mas o sacerdote ou o animador litúrgico.
b) A não-arbitrariedade da fé e de sua continuidade
Defender o Concílio Vaticano II,
contra o Mons. Lefebvre, como válido e vinculativo na Igreja, é e vai
seguir sendo uma necessidade. No entanto, existe uma atitude de visão estreita que isola o Vaticano II e que tem provocado a oposição. Muitas exposições dão a impressão de que, depois
do Vaticano II, tudo foi mudado e o que passou já não pode ser válido,
ou no melhor dos casos, só o será à luz do Vaticano II. O Concílio Vaticano II não é considerado como parte da Totalidade da Tradição viva da Igreja, mas diretamente como o fim da Tradição e como um recomeçar inteiramente do zero. A
verdade é que o mesmo Concílio não definiu nenhum dogma e tem querido
de modo consciente expressar-se em um alcance mais modesto, meramente
como Concílio Pastoral; no entanto, muitos o interpretam como se fosse
quase o superdogma que tira a importância de todo o restante.
Esta impressão se reforça especialmente por fatos que acontecem na vida corrente. O
que antes era considerado o mais santo – a forma transmitida pela
liturgia –, de repente aparece como o mais proibido e o único que com
segurança se deve rechaçar [4]. Não se tolera a crítica às
medidas do tempo pós-conciliar; mas onde estão em jogo as antigas
regras, ou as grandes verdades da fé – por exemplo, a virgindade
corporal de Maria, a ressurreição corporal de Jesus, a imortalidade da
alma, etc. –, ou não há reação alguma, ou apenas de forma extremamente
atenuada. Eu mesmo pude ver, quando era professor, como o mesmo
bispo que antes do Concílio havia rejeitado a um professor
irrepreensível, por seu modo de falar um pouco bruto, não se via capaz,
depois do Concílio, de rejeitar a outro professor que negava abertamente
algumas verdades fundamentais da fé. Tudo isso leva muitas pessoas a
perguntarem se a Igreja de hoje é realmente a mesma de antes, ou
se a trocaram por outra sem lhes avisar. A única maneira de tornar
crível o Vaticano II é apresentá-lo claramente como o que ele é: uma parte da inteira e única Tradição da Igreja e de sua fé.
c) A unicidade da verdade
Deixando agora à parte a questão
litúrgica, os pontos centrais do conflito são, atualmente, o ataque
contra o decreto sobre a liberdade religiosa [5] e contra o pretendido espírito de Assis.
Neles, Lefebvre traça as fronteiras entre sua posição e a da Igreja
católica de hoje. Não é necessário acrescentar expressamente que não se
podem aceitar suas afirmações nesta área. Porém não vamos nos ocupar
aqui de seus erros, mas queremos perguntar-nos onde está a falta de clareza
em nós mesmos. Para Lefebvre, trata-se da luta contra o liberalismo
ideológico, contra a relativização da verdade. Evidentemente, não
estamos de acordo com ele de que o texto do Concílio sobre a liberdade
religiosa ou a oração de Assis, segundo as intenções queridas pelo Papa,
são relativizações. Entretanto, é verdade que, no movimento espiritual
do tempo pós-conciliar, se dava muitas vezes um esquecimento, incluindo
uma supressão da questão da verdade; talvez apontamos aqui o problema crucial da teologia e da pastoral de hoje.
A “verdade” apareceu de repente como uma pretensão muito alta, um “triunfalismo” que já não se podia permitir. Este processo verifica-se de modo claro na crise em que tem caído o ideal e a práxis missionária. Se
não apontamos para a verdade ao anunciar nossa fé, e se essa verdade já
não é essencial para a salvação do homem, então as missões perdem seu
sentido. Com efeito, deduzia-se e deduz-se a conclusão de que, no
futuro, se deve buscar somente que os cristãos sejam bons cristãos, os
muçulmanos, bons muçulmanos, os hindus, bons hindus, etc. Mas como se
pode saber quando alguém é “bom” cristão ou “bom” muçulmano? A ideia de
que todas as religiões são, falando com propriedade, somente símbolos do
incompreensível em última instância, ganha terreno rapidamente também
na teologia e já entra profundamente na práxis litúrgica. Ali, onde se
produz esse fenômeno, a fé como tal fica abandonada, pois consiste
precisamente em que eu me confio à verdade enquanto reconhecida.
Assim, certamente, temos todas as motivações para retornar ao bom
sentido também nisto. Se conseguirmos mostrar e viver de novo a totalidade do que é católico nestes pontos, então podemos esperar que o cisma de Lefebvre não venha a ser de longa duração.
Original em espanhol:
Versão em inglês:
***
[1] D. Marcel Lefebvre
(29/11/1905~25/03/1991), bispo francês, pertenceu aos Missionários do
Espírito Santo, missionário no Gabão e no Senegal (África), padre
conciliar do Concílio Vaticano II, fundador da Fraternidade Sacerdotal
São Pio X, em 1970, na Suíça.
[2]
Por ordenar sacerdotes contra a ordem do papa Paulo VI, foi suspenso em
24/07/1976. Em 30/06/1988 ordenou quatro bispos sem mandato pontifício,
o que lhe valeu a declaração de excomunhão latæ sententiæ no dia seguinte, por parte do Papa João Paulo II. A excomunhão aos quatro bispos ordenados foi revogada em 24/01/2009.
[3] Decreto Unitatis Redintegratio.
[4] Fato infelizmente presente ainda hoje, em desobediência ao Motu Proprio Summorum Pontificum e à Instrução Universæ Ecclesiæ.
[5] Declaração Dignitatis Humanæ.
***
Traduzido por Bruno Costa e revisado por Luís Augusto - membros da ARS
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