Paulo Roberto Campos
Executados em Cunhaú e Uruaçu por ódio à fé católica, eles são considerados protomártires — os primeiros santos mártires do Brasil.
Em duas pequenas vilas do Nordeste foram escritas com sangue
gloriosas páginas da História pátria — páginas hoje censuradas ou pouco
referidas nos livros didáticos.
Em meados do século XVII, parte do Nordeste brasileiro sofrera a
invasão holandesa de discípulos de Lutero e Calvino. Estes, além de se
aproveitarem das nossas terras para se enriquecerem com o comércio,
saqueavam o que encontravam de mais precioso nas regiões que dominavam.
Mais grave: profanavam nossas igrejas, praticavam atos sacrílegos,
destroçando o que nelas havia de sagrado: imagens preciosas, sacrários,
paramentos, objetos litúrgicos. Não se contentando com tais profanações,
incendiavam templos católicos, torturavam, encarceravam sacerdotes,
violentavam mulheres.
Atos praticados para mostrar poder e aterrorizar as populações
nordestinas que resistissem em se perverter ao protestantismo — cujo
fundador, o heresiarca Lutero, por ocasião dos 500 anos de sua revolta,
está sendo paradoxalmente comemorado até por altas autoridades da Igreja
Católica, instituição que ele tanto odiou e quis inutilmente destruir.
Cerimônia de canonização na Praça de São Pedro
Foram canonizados os chamados “mártires de Cunhaú e Uruaçu” — nomes
de duas localidades que hoje correspondem aos municípios de Canguaretama
e São Gonçalo do Amarante, no interior do Rio Grande do Norte.
Aproximadamente 20 mil pessoas acompanharam no dia 15 de outubro
último a cerimônia de canonização presidida pelo Papa Francisco na Praça
de São Pedro [foto acima], contando entre os
assistentes cerca de 400 peregrinos brasileiros, a maioria do Nordeste.
Esses mártires, massacrados por invasores protestantes da Holanda — como
narraremos abaixo —, podem ser agora venerados pelos católicos do mundo
inteiro.
Na mesma cerimônia foram também canonizados dois meninos martirizados
em 1527 no México; um sacerdote espanhol, falecido em 1925; e um frade
capuchinho da Itália, morto em 1739.
Martírio: morte violenta, por ódio à fé católica, aceita livremente
Os 30 brasileiros heróis da fé (dois sacerdotes e 28 leigos) haviam
sido beatificados no dia 3 de março de 2000 pelo Papa João Paulo II.
Agora, com a canonização, 372 anos depois do martírio, foram elevados
oficialmente à glória dos altares.
Eles são considerados mártires porque seus algozes calvinistas
queriam que apostatassem — renegando a Religião católica e adotando a
seita protestante, para, em seguida, ajudarem os invasores holandeses —,
contudo preferiram morrer a renegar o catolicismo.
Três condições são necessárias ao martírio: morte violenta, “in odium fidei” (por ódio à fé católica) e livremente aceita. “A
atitude resignada dos fiéis ao suportar tantos suplícios, confissões
explícitas de fé, orações e penitências feitas pelos moradores momentos
antes do martírio, são sinais mais do que evidentes de que, do ponto de
vista das vítimas, foram preenchidos todos os requisitos teológicos para
o martírio” — afirmou o Mons. Francisco de Assis Pereira (1935-2011), postulador da causa dos mártires de Cunhaú e Uruaçu.
Os fatos são comprovados por documentos disponíveis na Torre do Tombo
(Portugal), no Museu de Ajax (Holanda) e em arquivos nacionais. Segundo
os documentos, somente nas duas mencionadas vilas, mais de 150 heroicos
nordestinos derramaram o sangue em defesa da fé católica, embora apenas
30 deles — fidedignamente identificados e reconhecidos por
historiadores — tenham sido canonizados.
“Protomártires do Brasil”
Esses
30 santos são também considerados “protomártires do Brasil”, por terem
sido os primeiros brasileiros a alcançarem a palma do martírio em nossas
terras. O que se poderia objetar dizendo que quase um século antes
havia ocorrido o martírio dos 40 religiosos da Companhia de Jesus, que
viajavam em uma nau proveniente da Europa para esta “Terra de Santa
Cruz”. Conhecidos como os “40 Mártires do Brasil”, eles foram mortos num
assalto, ocorrido no dia 15 de julho de 1570 próximo às Ilhas Canárias,
perpetrado por navios de calvinistas franceses comandados pelo
huguenote Jacques Sourie. Esses sequazes de Calvino, ao tomarem
conhecimento que se tratava de missionários católicos, executaram-nos.
Todos foram lançados ao mar, alguns já mortos, outros feridos.
Respondendo à objeção acima, podemos dizer que esses 40 mártires não
eram brasileiros, pois 32 nasceram em Portugal e oito na Espanha. Eram
jovens entre 20 e 30 anos, pertencentes à Companhia de Jesus, que os
destinara em 1570 às missões no Brasil. Lideravam-nos o Pe. Inácio de
Azevedo, S.J., e se compunham de dois sacerdotes, um diácono, 14 irmãos e
23 estudantes. Eles foram beatificados em 11 de maio de 1854 pelo
Bem-aventurado Papa Pio IX.1
Como foi o martírio dos heróis da fé em Cunhaú e Uruaçu?
O
dia 16 de julho de 1645, festividade de Nossa Senhora do Carmo,
transcorria normalmente no vilarejo de Cunhaú, até o momento em que um
judeu-alemão de nome Jacob Rabbi, atuando a serviço dos hereges
holandeses, espalhou a notícia de que, após a Missa, os habitantes
seriam informados de assuntos de importância para eles e para o Estado.
Então, a fim de assistirem à Missa de preceito e depois se inteirarem
daquilo que seria anunciado, 70 fiéis se reuniram na capela de Nossa
Senhora das Candeias, do Engenho de Cunhaú. No meio da celebração,
contudo, soldados e comerciantes holandeses, auxiliados por índios
tapuias do Potengi pervertidos à religião de Lutero, trancaram as portas
da capela e iniciaram um massacre. O celebrante, Pe. André de Soveral —
paulista de São Vicente e discípulo do Pe. Anchieta —, exortou os fiéis
a se arrependerem de seus pecados, numa breve preparação para a morte e
salvação das almas. Os invasores trucidaram o idoso sacerdote e, em
seguida, os demais foram passados à espada, com exceção de três homens
que fugiram. Um dos fiéis, Mateus Moreira [imagem acima], foi apunhalado e morreu testemunhando sua fé ao exclamar “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”. Seu coração foi arrancado pelas costas.
Dois meses e meio depois, em 2 de outubro de 1645, aproximadamente 80
católicos nordestinos foram torturados até a morte às margens do Rio
Uruaçu, por não renunciarem a fé católica. A crueldade foi ainda maior
do que no massacre de Cunhaú. Os fiéis foram cortados em pedaços,
degolados, muitos tiveram olhos e línguas arrancados. Os seguidores de
Lutero, também contando com ajuda de índios tapuias, não pouparam sequer
as crianças nos braços de suas mães, nem mesmo um bebê. Nesse mesmo
massacre foi torturado e morto o Pe. Ambrósio Francisco Ferro.
A gloriosa epopeia da “Insurreição Pernambucana”
Nas
regiões nordestinas, à medida que recrudesciam as perseguições aos
católicos, com o intento de arrancar-lhes a fé e obter-lhes a perversão
ao protestantismo, cresciam as indignações contra os intrusos
holandeses.
Começou-se a organizar as reações para dar um basta ao plano de
conquista de uma parte do Brasil pela heresia protestante. Nascia uma
verdadeira cruzada — a “Insurreição Pernambucana” — para expulsar os
invasores e impedir a implantação da “Nova Holanda” no Nordeste
brasileiro.
Pernambuco, então capitania governada por Mathias de Albuquerque
(1580–1647), já estava sendo dominado pela Holanda, que ali estabeleceu a
“Companhia das Índias Ocidentais”. Seu objetivo era explorar e
comercializar as riquezas de nosso território, então pouco povoado,
valendo-se para isso de poderosa esquadra e milhares de soldados. O
exército holandês no século XVII era considerado moderno, numeroso e com
muito poder de fogo. Por seu lado, não contando os heroicos
pernambucanos com um exército, deviam contentar-se em fazer apenas
escaramuças contra os soldados batavos — assim chamados, pois
originários da Batávia, antigo nome dos Países Baixos.
No entanto, pouco a pouco, católicos resistentes do Nordeste foram se
organizando, sobretudo com a liderança de João Fernandes Vieira
(1610-1681), rico senhor de engenho. Juntaram-se a este heroico líder o
paraibano André Vidal de Negreiros, o índio potiguara Antonio Felipe
Camarão, o líder negro Henrique Dias, bem como outros senhores de
engenho, que representavam a aristocracia da terra.
Unindo providencialmente brancos, negros e índios, representando as
três raças constitutivas do autêntico Brasil, forjava-se a grandeza da
nacionalidade de um país nascido católico e que passou a lutar para
expulsar o invasor herege do solo pátrio.
Vitória sobrenatural alcançada no Monte das Tabocas
Após algumas escaramuças contra os hereges holandeses, em 3 de agosto
de 1645 travou-se a memorável batalha do Monte das Tabocas, atualmente
Vila da Vitória de Santo Antão. A luta foi árdua, sobretudo devido à
escassez de recursos dos resistentes nordestinos, com suas espadas
enferrujadas, contra o poderio formidável das armas dos batavos, além da
enorme diferença numérica entre os combatentes. Num momento em que tudo
parecia perdido, por iniciativa de um sacerdote, rezaram pedindo a
intervenção da Santíssima Virgem, tendo Fernandes Vieira prometido
construir duas igrejas: uma dedicada a Nossa Senhora de Nazaré, e outra a
Nossa Senhora do Desterro.
Afinal, a vitória foi alcançada graças a uma intervenção
sobrenatural! Insurgentes católicos testemunharam ter ouvido soldados
hereges presos confessarem que viram aparecer do céu “uma mulher
muito formosa com um menino nos braços, e junto a ela um velho
venerando, vestido de branco, os quais davam armas, pólvora e balas aos
nossos soldados, e que era tanto o resplendor que a mulher e o menino
lançavam, que lhes cegava os olhos e não podiam olhar para eles de fito a
fito. E que esta visão lhes fez logo virar as costas e retirar-se
descompostamente”.2
As duas vitórias obtidas nos Montes Guararapes
Quase três anos depois da batalha do Monte das Tabocas, travou-se a
primeira batalha dos Montes Guararapes (19 de abril de 1648), também
comandada por João Fernandes Vieira. Este, no período entre as duas
mencionadas batalhas, continuou treinando os insurgentes católicos e
realizando escaramuças para atormentar e enfraquecer os calvinistas.
Na primeira batalha de Guararapes, apesar da desproporção numérica —
2.200 brasileiros contra 7.400 holandeses —, nossos insurgentes saíram
vitoriosos, mas não foi suficiente para quebrar o ânimo batavo.
Entretanto, na segunda batalha de Guararapes, travada em 19 de
fevereiro de 1649, os hereges holandeses perceberam que o fim de sua
permanência no Brasil estava chegando. Somente nesse combate eles
tiveram cerca de 2.000 baixas, enquanto apenas 47 brasileiros perderam a
vida — entre os quais, infelizmente, o líder negro Henrique Dias, que
morreu lutando heroicamente.
Mesmo enfraquecidos pela grande perda de soldados, armas e munições,
apreendidas pelos católicos insurgentes nessas batalhas, os calvinistas
conseguiram permanecer no Nordeste até 1654.
Nesse ano, a resistência católica conseguiu reconquistar dos batavos
alguns fortes importantes. Percebendo estes que chegara seu fim,
capitularam. Assinaram a rendição no dia 27 de janeiro de 1654 e
retornaram para onde não deveriam ter saído.
Com o triunfo dos heróis da “Insurreição Pernambucana”, João
Fernandes Vieira foi aclamado “governador da independência” e tomou
posse da capital naquele histórico dia. Também nascia, sob o patrocínio
dele, de Felipe Camarão e de Henrique Dias, o glorioso Exército
brasileiro, para proteção de nosso território.
Escandaloso silêncio, revelador das intenções de muitos
Chama a atenção o fato de a grande mídia, mesmo publicando matérias
sobre a canonização dos mártires de Cunhaú e Uruaçu, não as tenha
relacionado com a epopeia da “Insurreição Pernambucana”, uma vez que
esta nasceu da indignação contra as perseguições perpetradas pelos
protestantes holandeses. Nos dias posteriores à canonização acompanhei
de perto os grandes jornais do País, não encontrei neles uma linha
sequer estabelecendo essa correlação. Por que esse silêncio?
A mesma pergunta poder-se-ia fazer às nossas autoridades
eclesiásticas que, mesmo falando da canonização, também não fizeram tal
vinculação dos fatos. Refletindo nesse silêncio, julguei-o mais triste
do que a “censura” da mídia, pois os eclesiásticos, mais do que ninguém,
têm a missão de ressaltar a beleza da resistência católica contra a
heresia. Por que silenciar tão belas e gloriosas páginas da História do
Brasil e da Igreja?
Nova resistência católica no Brasil de hoje
Rezemos aos nossos santos-mártires pedindo-lhes que, assim como do
sangue que verteram venceu a “Insurreição Pernambucana” contra o herege
invasor do território nordestino, suscitem também no Brasil de hoje nova
“insurreição” — no sentido de uma autêntica cruzada em defesa da
verdadeira fé — para não se permitir que a Religião católica, em nosso
País ou em qualquer parte do mundo, seja perseguida e aviltada como tem
sido ultimamente em muitos lugares. Por exemplo, através de exposições
blasfemas, sacrílegas e pornográficas. Para citar apenas um caso
recente: à guisa de “apresentação teatral”, um homem inteiramente nu
ralou uma imagem de Nossa Senhora Aparecida e lançou seu pó sobre a
plateia!
Em face de tais agressões anticatólicas, convidamos nossos leitores a
oporem uma resistência pacífica, mas firme. Outro convite que
poderíamos acrescentar: fazermos o propósito de sempre que mencionarmos
os novos santos-mártires de Cunhaú e Uruaçu, estabelecermos a vinculação
deles com a gloriosa “Insurreição Pernambucana” contra a dominação
protestante. Tema de suma importância nestes dias em que se comemoram os
500 anos de Lutero — o heresiarca em face de cuja religião os
santos-mártires potiguares preferiram morrer a se perverterem.
____________
Matéria publicada na Revista Catolicismo, Nº 803, Novembro/2017.
Fontes consultadas:
Robert Southey, História do Brasil
(Traduzido do inglês pelo Dr. Luiz Joaquim de Oliveira e Castro, com
anotações do Cônego Dr. Fernandes Pinheiro), Livraria B. L. Garnier, Rio
de Janeiro, 1862, tomo III.
Pedro Calmon, História da Civilização Brasileira, Companhia Editora Nacional, São Paulo, 1958, 6ª edição (aumentada), vol. 14.
Notas:
- A respeito, para melhor conhecimento, recomendamos a edição de Catolicismo de julho/2014, p. 36.
- Diogo Lopes Santiago, História da Guerra de Pernambuco, Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco, Recife, 1984, p. 258.
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