Como temos notado, apesar de a pseudo-reforma protestante ter provocado gravíssimos danos à Igreja e ao mundo, a “esquerda católica” insiste em seus festejos comemorando os 500 anos da revolta de Lutero. Em defesa da doutrina católica negada pelo heresiarca e refutando erros do protestantismo, o Monsenhor José Luiz Villac, em resposta a objeções, publicou na revista Catolicismo (edição de novembro/2017) uma matéria muito interessante que certamente será apreciada também pelos nossos leitores.
Pergunta — Lutero foi um
homem de Deus! Acreditem, ele nunca quis criar uma religião nova.
Surpreende-me como a ignorância escraviza as pessoas: Jesus não fundou
religião alguma. Ele era judeu e dele derivou-se o cristianismo. Não foi
o catolicismo que o Grande Mestre fundou! Deus não nos convida para uma
religião. Ele deseja estabelecer um relacionamento conosco.
Resposta — Transcorreu há pouco, em
31 de outubro, o quinto centenário do dia em que Martinho Lutero afixou
suas 95 teses heréticas na porta da igreja do castelo de Wittenberg,
dando início ao Protestantismo, a maior cisão havida no cristianismo
ocidental.
Uma das tantas heresias de Lutero é aquela posta em destaque pelo
nosso missivista de maneira um tanto desajeitada. Ou seja, a ideia de
que a Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo — a Igreja Católica —
não é uma instituição visível, mas apenas uma comunidade espiritual
daqueles que têm fé no poder salvífico da Cruz (aliás, sem a cooperação
do homem nem a necessidade de obras, que é outra heresia luterana). A
consequência tirada por nosso missivista desse erro de Lutero é coerente
com este heresiarca, isto é, se “só a fé salva”, como dizem os
protestantes, então Deus desejaria de fato apenas estabelecer um
relacionamento pessoal conosco e não nos convidaria para uma religião
específica.
“A religião nos une ao único Deus Todo-poderoso”
Para responder convenientemente à questão, cumpre remontar aos
princípios e perguntar: “O que é a religião?”. Porque só assim poderemos
saber se Deus desejou ligar-Se a nós não somente através de um
relacionamento pessoal, mas também no seio de uma religião.
Segundo o escritor latino e apologista cristão Lactâncio, que viveu no fim do século III e começo do IV, o termo religio deriva de religare (atar): “Estamos ligados a Deus e unidos a Ele [religati] pelo vínculo da piedade e é a partir disso que a religião recebeu seu nome” (Divinae Institutes, 4, 28). Santo Agostinho adotou a mesma interpretação no seu tratado sobre a verdadeira religião, no qual escreve: “A religião nos une [religat] ao único Deus Todo-poderoso”.
Dessa acepção deriva o fato de se chamar por analogia de “religiosos”
as pessoas unidas mais estreitamente a Deus pelos votos de pobreza,
obediência e castidade.
Portanto, em termos gerais, religião significa a sujeição voluntária
de si mesmo a Deus. Ela existe na sua mais alta expressão no Céu, onde
os anjos e os santos amam, louvam e adoram a Deus e vivem em absoluta
conformidade com sua santa vontade. Mas não existe em absoluto no
inferno, onde a sujeição dos demônios e dos precitos a Deus não é
voluntária, mas imposta. Na Terra — pelo menos até meados do século
XVIII, quando o ceticismo e o ateísmo que hoje grassam no mundo inteiro
começaram a difundir-se nos ambientes deletérios do Iluminismo —, a
religião era um fenômeno universal. Praticamente todos os povos
reconheciam a existência de uma personalidade divina por trás das forças
da natureza: o Senhor e Soberano do universo, Deus, o qual exerce o
controle sobre a vida e o destino dos homens, de onde o reconhecimento
da dependência da divina vontade e a necessidade obter sua benevolência.
Essa atitude serviçal era acompanhada de uma aspiração, ora mais, ora
menos difusa, a uma comunhão com a divindade para alcançar a perfeição e
a felicidade.
O coração humano procura naturalmente Deus
Enquanto sujeição voluntária de si mesmo a Deus, a religião é um ato
da vontade e, portanto, uma virtude, porquanto inclina o homem a
observar a justa ordem das coisas, que provém de sua dependência de
Deus. Santo Tomás define a religião como “a virtude que inclina o homem a render a Deus o culto e a reverência que Lhe pertencem por direito”
(II-II, q. 81, a. 1). Portanto, a religião tem um aspecto interior,
subjetivo — a disposição a reconhecer nossa dependência de Deus —, e um
aspecto exterior, objetivo — os atos de homenagem que manifestam dito
reconhecimento.
A religião responde a uma necessidade profunda do coração humano e
procura atender não somente às necessidades pessoais de cada um, mas
também àquelas dos nossos próximos, em círculos concêntricos que começam
por nossa família e se estendem a toda a sociedade, uma vez que o
bem-estar individual depende muitíssimo do bem-estar de toda a
comunidade (basta pensar nos sofrimentos acarretados pelas guerras!).
Por isso, a religião, no seu culto exterior, é em grande medida uma
função social. Os seus ritos principais são realizados em público, em
nome e em benefício de toda a comunidade. Ademais, é o caráter
comunitário da religião que permite a conservação e o enriquecimento do
culto religioso ao longo das gerações.
Religião sobrenatural e sujeição a Deus
O que temos dito até aqui corresponde à reta religião natural, cujo
conhecimento e obrigações podem ser adquiridos e deduzidos pelo próprio
engenho da mente humana sem ajuda superior. Mas dita religião natural
não exclui as teofanias — manifestações sensíveis da divindade —
para confirmar, por meio das revelações divinas, a religião natural;
ou, melhor ainda, para convidar o homem a participar da própria vida
divina por meio da graça.
A religião passa então a ser sobrenatural e implica uma Revelação
especial, por meio da qual o homem conhece seu fim sobrenatural — a
visão e a posse de Deus no Céu —, assim como os meios divinamente
estabelecidos para alcançá-lo. A religião sobrenatural é, então, a
sujeição de si mesmo a Deus, baseada não mais na luz da razão e nas
forças naturais, mas nesse conhecimento sobrenatural fornecido pela fé
na Revelação e que produz bons frutos pela ação da graça divina.
Cristianismo e o Corpo Místico de Cristo
Posto que Deus, por meio da Encarnação e da Redenção de Nosso Senhor
Jesus Cristo, trouxe ao alcance da humanidade as verdades e as práticas
necessárias à consecução de sua finalidade sobrenatural, é no
cristianismo que, com a garantia da autoridade divina, se encontra
absolutamente tudo aquilo que é preciso crer e fazer para se salvar
eternamente. O cristianismo é, pois, a religião perfeita, da qual Jesus
Cristo é o Fundador e para a qual Ele prometeu Sua assistência e a
presença do Espírito da verdade até o fim dos tempos.
Ora, querendo Nosso Senhor que o cristianismo tivesse uma expressão
visível, atraiu para isso muitos discípulos e escolheu 12 Apóstolos, que
colocou à frente de uma assembleia, de uma congregação (ekklesia, em grego; qahal,
em hebreu) com o mandato de evangelizar todos os povos, a fim de formar
o novo Povo de Deus da Nova Aliança com aqueles que crerem e receberem o
batismo.
Que os primeiros cristãos formavam uma pequena sociedade visível
deixam-no manifesto muitas passagens dos Atos dos Apóstolos, e isso já
logo depois do discurso de São Pedro no dia de Pentecostes, quando mais
ou menos três mil receberam o batismo e “perseveraram na doutrina
dos apóstolos, na reunião em comum, na fração do pão e nas orações […]
Todos os fiéis viviam unidos e tinham todo em comum” (At 2, 42 e
44). Nessa pequena sociedade os Apóstolos tinham não somente um poder de
jurisdição, tanto legislativo como judiciário (cujas sentenças eram até
corroboradas por milagres!), mas também um poder de ensino, do qual os
fiéis não podiam se afastar, ainda que um anjo viesse ensinar o
contrário (Gal 1, 8).
Assim, São Roberto Belarmino pôde definir a Igreja militante com uma
fórmula sintética, aceita depois por toda a teologia tradicional: “É
o corpo dos homens unidos pela profissão da mesma fé cristã, pela
participação nos mesmos sacramentos, sob o governo dos legítimos
pastores, especialmente do Romano Pontífice, único Vigário de Cristo na
Terra” (De Ecclesia, 3, 2, 9).
Essa Igreja militante obviamente tem uma realidade espiritual, e,
através da comunhão dos santos, forma o Corpo Místico de Cristo
juntamente com aqueles que no Céu “nos precederam com o sinal da fé e dormem o sono da paz” (Igreja gloriosa) e com os que ainda purificam suas almas purgando suas faltas no Purgatório (Igreja padecente).
Deus estabeleceu soberanamente a Igreja Católica
Portanto,
mesmo quando as almas atingem seu fim sobrenatural e gozam da visão
beatífica, esse encontro pessoal com Deus, de que fala nosso missivista,
tem uma dimensão religiosa comunitária, na medida em que todos os
bem-aventurados são células vivas de um único Corpo Místico de Cristo.
Mas essa inserção sobrenatural em Jesus Cristo, tronco da videira da
qual o cristão é um ramo, começa já nesta Terra por meio da fé, da
recepção dos sacramentos, especialmente da Comunhão, e da obediência aos
legítimos pastores, sucessores dos Apóstolos.
Sim, não há dúvida de que Deus deseja estabelecer um relacionamento
íntimo com cada alma, mas Ele próprio estabeleceu soberanamente os meios
e os depositou nas mãos da Igreja Católica, que possuirá até o fim dos
tempos a fé que deve ser crida, os sacramentos que devem ser recebidos e
os pastores que devem conduzir Seu rebanho até as pradarias verdejantes
do Céu. A prova dessa unicidade da Igreja Católica são seus numerosos
santos, que deixaram na História uma marca indelével e o perfume de suas
virtudes heroicas.
A necessidade e a unicidade da Igreja para obter a salvação e a
eterna amizade com Deus é uma verdade consoladora negada por Martinho
Lutero, a qual é preciso mais uma vez relembrar no quinto centenário de
sua revolta. E isso tanto mais quanto têm proliferado nos meios
católicos as celebrações conjuntas com os protestantes para glorificar o
heresiarca e festejar sua ruptura, com grande escândalo dos fiéis.
Longe de nos associarmos a tais celebrações ominosas, peçamos a Nossa
Senhora, Medianeira universal de todas as graças, um amor entranhado à
Santa Igreja, una, santa, católica e apostólica, Corpo Místico de seu
Filho, única religião verdadeira do único Deus verdadeiro.
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