sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

A Papisa que não vai desaparecer

Por Prof. Felipe Aquino

Tomemos posse de uma lenda urbana católica com uma deformação. Esta data de antes da Reforma Protestante e as suas fontes são, portanto, inteiramente católicas. E finalizando a deformação, a primeira refutação amplamente aceita veio de um estudioso calvinista.

 


É a lenda da Papisa Joana, supostamente a primeira e única mulher eleita papisa. De acordo com o conto, ela foi papisa no século IX durante a chamada “Idade das Trevas” até que a sua identidade feminina fosse revelada. Tão antigo quanto o século XIII e tão recente quanto um “especial” da ABC News de 2005 será a Papisa Joana por toda a parte, contanto que ela tenha um propósito anticatólico. Ela começou como uma fábula antipapista mantida como propaganda nativista anticatólica e se desabrochou num ícone feminista do século XXI.
De muitas maneiras, a Papisa Joana se adapta à tradicional lenda urbana católica. Tome qualquer período histórico e ela pode ser moldada em um nicho solidamente anticatólico. No século XVI, os dissidentes protestantes a usaram para ilustrar o nadir de um papado sempre corrupto. No século XIX, ela foi retratada como uma mulher violada e arruinada pelo clericalismo lascivo, símbolo da perversidade na qual Roma tinha se afundado. No século XXI, ela representa a mulher com poderes que lutou contra o sexismo intransigente da Igreja Católica e que, portanto, teve de ser destruído.

Lenda Não Tão Piedosa

O que é a lenda da papisa? Histórias são abundantes, mas vamos com a edição mais recente, um relatório “especial” de televisão da ABC News em Dezembro de 2005.
Narrada ofegantemente por Diane Sawyer, a capitulação da ABC News começa na cidade de Mainz, Alemanha, no século IX, onde uma jovem garota brilhante trata de se deslocar para um mosteiro disfarçada de garoto. Ela se torna uma estudante adepta e ao final faz o seu caminho para Atenas, ainda disfarçada de garoto. Mas nessa altura ela também tinha tomado um amante que compartilhava o seu segredo.
De Atenas, a mocinha se dirige a Roma do século IX, descrita pela Sra. Sawyer como a casa dos “monges devassos, cardeais maquinadores, santos travestis, intriga, melodrama, corrupção e violência.” Agora conhecida como “João Inglês”, a garota se torna uma secretária curial respeitada e, em seguida, um cardeal feminino, e – rufem os tambores, por favor – “a escolha de todos para Papa no ano de 855”.
Mas não devia haver um final feliz. “A Papisa Joana estava no meio de uma procissão papal… quando… ela sentiu fortes dores em seu estômago… O impensável aconteceu: A papisa estava tendo um bebê”.
Embora reconhecendo que a história termine de maneira diferente conforme o ditado, Sawyer relatou que a Papisa Joana foi ou apedrejada ou arrastada da cauda de um cavalo até à sua morte. E, em seguida, engatando a lenda em alta marcha, Sawyer afirmou que o constrangimento sobre a Papisa Joana resultou no celibato sacerdotal obrigatório (“uma exigência que ainda hoje é controvertida”), uma repressão aos místicos femininos poderosos que alegaram que eles podiam se comunicar diretamente com Deus e que não precisavam da Igreja dominada pelos homens e “mulheres mártires donas de casa… que eram torturadas por suas crenças religiosas”.
Um monte de lendas urbanas católicas enroladas umas nas outras.

O mito do “João Inglês”

A moral do século XXI sobre a lenda da Papisa Joana é clara: a Igreja teme mulheres poderosas, a Igreja tem propositadamente posto fora de forma literária qualquer menção a mulheres poderosas de sua história, e a tradição persistente do celibato sacerdotal resultou do ódio às mulheres.
O fato de que o celibato sacerdotal existia na Igreja Ocidental séculos antes desta fábula e que as mulheres poderosas eram parte da história da Igreja bem antes que a sociedade secular permitisse tal coisa é irrelevante para a propaganda. A coisa surpreendente – ou talvez não tão surpreendente – é que ninguém na ABC News considerou que isso poderia ser devaneio anticatólico contemporâneo ao invés de qualquer tipo de apresentação objetiva. Tudo é apenas o “pensamento normativo e parte da bagagem cultural da mente progressiva” para citar-me.
Então, qual é a história sobre a Papisa Joana? Em suma, como descrito por um historiador recente sobre o papado, John-Peter Pham em Heirs of the Fisherman (Herdeiros do Pescador – Oxford University Press), a Papisa Joana é “uma papisa lendária que nunca existiu” (253). Ainda, “de meados do século XIII até meados do século XVII, a história de que tinha sido uma papisa… em algum momento no século nono, décimo e décimo primeiro foi quase universalmente aceita como fato histórico.”(Pham, Heirs, 253).
De acordo com Pham, a primeira vez que a “Papisa Joana” foi mencionada em qualquer registro histórico conhecido foi em “Universal History of Metz” (História Universal de Metz) em torno de 1250. O trabalho foi atribuído a Jean de Mailly, um padre dominicano que deu o traçado básico da fábula. Ele escreveu que o Papa Vítor III (1087), que teve um pontificado de apenas quatro meses, foi sucedido por uma mulher disfarçada de homem, que morreu após o parto durante uma procissão papal.
Um outro padre dominicano e um frade franciscano repetiram o conto em suas próprias obras, mas mudaram o “papado” feminino para 1100, em seguida para 915. Foi então incluída em “Chronicle of Popes and Emperors” (Crônica de Papas e Imperadores) de Martin de Troppau no final do século XIII. Martin deu à história a sua estrutura essencial, com Joana sendo eleita como “João Ânglico” após a morte do Papa Leão IV (847-855). Cavalgando em procissão da Basílica de São Pedro à Basílica Lateranense, ela supostamente deu à luz em uma rua estreita entre o Coliseu e a Basílica de São Clemente. Ela morreu de parto e foi sepultada no local. As gerações posteriores juntaram à história os detalhes sangrentos de uma multidão irada matando o bebê e ela.

Um Mito Ganha, Perde, Evapora-se

O mito de Joana teria sido esquecido como a invenção que era se não fosse pego pelo poeta italiano Boccaccio no século XIV que o usou para sua própria propaganda antipapista. Outros humanistas seguiram o exemplo, tentando estabelecer uma pontuação italiana contra os papas para seus patrocinadores que pagavam bem. A Catedral de Siena tinha um busto de Joana, um sinal, menos de sua historicidade do que de sua contenda com o Vaticano. Pham assinala que a história de Joana foi mais tarde usada pelo dissidente de Boêmia João Hus (m. 1415) como parte da sua lista de supostos crimes do papado.
Já no século XV, quando começaram as primeiras agitações daquilo que poderia ser chamado de uma abordagem mais disciplinada da história, a história de Joana foi posta em questão. Quando a fábula foi usada como forragem anticatólica durante a Reforma Protestante, historiadores católicos começaram a questionar a sua historicidade. E logo, por estranho que pareça, a sua perspectiva foi confirmada por um historiador francês calvinista.
David Blondel (1590-1655), que viveu na Holanda, foi um protestante que efetivamente usou as primeiras ferramentas de estudo histórico para desmantelar o mito da Papisa Joana. Seguindo a história dos Papas durante esse período e a falta de qualquer menção contemporânea de Joana que haveria, seria um evento espantoso para ser explorado pelos inimigos papais, se fosse verdadeiro. Ele repudiou a lenda. Os companheiros protestantes dele da época recusavam Blondel porque, como disse Pierre Bayle, “o interesse protestante requer que a história de Joana seja verdadeira”.
E por isso a lenda da Papisa Joana persistiu. Ela fez boa polêmica na Reforma. A história da Papisa Joana não foi inventada na Reforma, assim como foram muitas lendas urbanas católicas. Mas a Reforma lhe deu o ímpeto para saltar ao pensamento moderno – e por fim aparecer em um especial da ABC News no século XXI.

A Lacuna Faltando

A falha fundamental na lenda da Papisa Joana e o motivo de qualquer historiador sério reijeitá-la é que não há “lacuna” no registro histórico real rastreável onde a “Papisa Joana” teria se adequado se a lenda fosse verdadeira. A lenda coloca a Papisa Joana no papado de 855 a 857, eleita como “João Ânglico”. Mas o Papa Leão IV, que morreu em junho de 855, foi imediatamente sucedido pelo Papa Bento III. Sabemos disso porque a eleição de Bento não foi sem controvérsia. O imperador bizantino tentou fazer com que seu filho se instalasse como Papa em seu lugar. Roma foi invadida e Bento, preso. Quando os romanos se opuseram a isso, Bento foi libertado da prisão em setembro. Simplesmente não havia espaço de tempo histórico em que um Papa imaginário pudesse ter tomado lugar.
De igual importância para os historiadores é a ausência de qualquer registro, menção ou referência a uma “Papisa Joana” até quase 400 anos depois de sua eleição. Como Blondel percebeu, teria sido impossível que um evento como esse acontecesse ou que um papado tivesse existido por aproximadamente três anos sem algum registro contemporâneo daqueles anos. E mesmo quando algumas versões avançam a data, uma lacuna de séculos antes de ela ser mencionada pela primeira vez permanece, e o registro histórico dos papas existentes naqueles tempos é irrefutável.
Então, logicamente, não houve Papisa Joana.

Duas questões permanecem: Onde a lenda surgiu pela primeira vez e por que nós ainda lidamos com ela hoje?

Quanto a de onde veio a lenda, os historiadores só podem conjecturar. Pham afirma que “o cerne da história geralmente é considerado como sendo um antigo conto popular romano” (Heirs 254). Outros veem uma possível fonte saindo de alegações de que o Papa João VIII (872-882) fosse efeminado, mesmo que essa acusação pareça ter carência substancial. Ainda outros sugerem que a história possa ter vindo do papado do Papa Sérgio (904-911), a quem os romanos viam como fraco e dominado por mulheres poderosas e corruptas. Alguns historiadores acreditam que a lenda possa ter vindo do Império Bizantino do Oriente como um meio para desacreditar o papado “ocidental”.
Qualquer que seja a fonte, a história é repleta de lendas de mulheres disfarçadas de homens subindo até grandes posições. A Grécia e a Roma Antigas as tinham. Mas o propósito de tais lendas geralmente era satírico: pretendia-se mostrar quão fracos ou corruptos tinham se tornado os homens do tempo e do lugar. A moral do conto foi que os homens eram tão sem coragem que uma mulher podia assumir a liderança. E isso significa que a lenda da Papisa Joana é dificilmente uma hagiografia feminista. Isso reflete, no mínimo, um ânimo degradante e persistente com respeito às mulheres que tardou desde a cultura pagã.
Por que ainda estamos lidando com a Papisa Joana hoje quando milhares de lendas medievais parecidas desapareceram? Pesquise “Papisa Joana” no Google e você vai encontrar milhões de referências na internet. A lenda persiste pela mesma razão que todas as lendas urbanas católicas persistem – elas se encaixam com a propaganda anticatólica contemporânea. Joana sobreviveu – apesar das primeiras formas de crítica histórica mostrando-a ser um mito – porque ela se adapta uma ordem do dia.
Como Bayle poderia dizer a Blondel: “O interesse secular requer que a história de Joana seja verdadeira.”

Robert P. Lockwood
Traduzido para o Veritatis Splendor por Marcos Zamith.
 

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