Por Roque Frangiotti
Esquema e conteúdo da obra
O tratado se divide em duas grandes partes: os caps. 1-11 formam a
primeira parte e respondem às objeções tradicionais a respeito da
ressurreição dos corpos como impossível de se realizar e indigna de
Deus; os caps. 12-25 formam a segunda parte e estabelecem a conveniência
e a necessidade da ressurreição.
O argumento fundamental, entre outros,
é que sendo o homem composto de corpo e alma, as duas partes devem ser
recompensadas ou punidas juntas. Quatro argumentos vêm reforçar esta
fundamentação: nos caps. 12-13, o argumento é o destino do homem criado
para viver eternamente. Ora, se não houver ressurreição, não haverá vida
eterna. Nos caps. 14-17, usa-se como argumento a natureza humana que
compreende dois elementos unidos, a alma e o corpo. Nos caps. 18-23,
trata-se do julgamento que deve ser aplicado tanto ao corpo quanto à
alma, porque tanto um como o outro deve ser premiado ou castigado. Seria
injusto, por exemplo, não premiar o corpo pelas obras boas que o homem
realizou com sua colaboração. Finalmente, nos caps. 24-25, Atenágoras
emprega o argumento do fim último que não é atingido nesta existência. O
homem foi destinado à felicidade eterna, mas esta não é alcançada nesta
vida. Logo, tem que haver ressurreição para que esta felicidade possa
acontecer. Como se vê, Atenágoras tenta demonstrar a possibilidade e a
conveniência da ressurreição fundamentalmente ao nível filosófico sem
recorrer às Escrituras e nem mesmo alude à ressurreição de Cristo.
Deve-se
observar ainda que a antropologia de Atenágoras é dependente do
platonismo. O homem é composto de corpo mortal e alma imortal, embora
criada. Na ressurreição, o corpo se conjuga novamente com a alma, que no
período que vai entre a morte e a ressurreição, estivera num estado de
torpor. A ressurreição reconstrói, portanto, aquela unidade que
constitui o verdadeiro homem.
A Obra.
Por Atenágoras de Atenas (Bispo. Séc II).
I PARTE: A POSSIBILIDADE DA RESSURREIÇÃO
Dois tipos de raciocínio
1.
Em todo dogma ou doutrina que se atenha à verdade nesses assuntos
nasce, como rebento, alguma mentira. E nasce não porque, de princípio,
saia algo inerente por natureza ou como causa essencial de cada coisa,
mas porque é procurado com afinco que honram o germe adúltero que
corrompe a verdade. Pode-se comprovar isso primeiramente que há muito
tempo especularam sobre esses assuntos e na divergência com seus
predecessores ou mesmo com seus contemporâneos, e igualmente através da
própria confusão em que se encontram os assuntos discutidos. Com
efeito, é certo que essa laia de pessoas não deixou nenhuma verdade sem
calúnia: nem a essência de Deus, nem seu conhecimento e sua operação,
nem o seguimento encadeado dessas coisas que nos aponta a doutrina da
piedade. Assim, existem alguns que, completamente e de uma vez para
sempre, renunciam a encontrar a verdade sobre esses assuntos; outros a
distorcem em vista de suas próprias opiniões; outros, por fim, fazem
profissão de dúvida até sobre o evidente. Na minha opinião, aqueles que
se preocupam com isso necessitam de duplos raciocínios: uns para
defender a verdade, outros a respeito da verdade. Os raciocínios para
defender a verdade se dirigem aos que não crêem ou duvidam; os
raciocínios a respeito da verdade para os que têm sentimentos nobres e
recebem com benevolência a verdade. Portanto, é preciso que aqueles que
desejam examinar estas questões considerem o que lhes seja útil em cada
caso e, de acordo com o caso, meçam seus raciocínios e ajustem
convenientemente à sua ordem, e não descuidem do conveniente e do lugar
que corresponde a cada coisa, acreditando que se deva conservar sempre o
mesmo princípio. Com efeito, se se olha para a força demonstrativa e
para a ordem natural, os raciocínios a respeito da verdade têm a
primazia sobre os raciocínios em defesa da verdade; ao contrário, se
olhamos, porém, a utilidade, os raciocínios em defesa da verdade são
anteriores aos raciocínios a respeito da verdade. Assim é que o lavrador
não pode convenientemente lançar as sementes na terra, se antes não
arrancar todo o mato e o que pode prejudicar a boa semente; o médico
também não pode aplicar medicamentos de saúde ao enfermo, se não limpa
antes o mal interno ou não detém o mal que procura infiltrar-se; assim
quem procura ensinar a verdade não poderá, por mais que fale dela,
persuadir a ninguém, enquanto uma falsa opinião esteja agarrada à mente
dos ouvintes e se oponha aos raciocínios. Nós também, visando justamente
à utilidade, por vezes antepomos os raciocínios em defesa da verdade
aos raciocínios a respeito da verdade. E para quem considera o que é
conveniente, não lhe parecerá inútil que procedamos agora do mesmo modo,
neste tratado sobre a ressurreição. De fato, também neste assunto,
encontramos alguns que não crêem absolutamente, outros que duvidam e,
entre os que aceitam nossos primeiros princípios, existem os que são tão
perplexos como os que duvidam abertamente. O mais absurdo é que eles
não têm o menor pretexto para fundamentar sua incredulidade na
realidade, nem podem encontrar uma única causa racional para não crerem
ou duvidarem.
O conhecimento que Deus tem das coisas é garantia da ressurreição
2.
Passemos à consideração. Toda incredulidade, se não é gerada
temerariamente ou por alguma opinião irreflexiva, mas por forte causa e
com verdadeira segurança, então detém a razão conveniente, pois a
própria coisa para a qual se nega a fé não parece oferecer nenhuma
garantia de verdade. De fato, não crer naquilo que não é inacreditável é
próprio de homens que não têm dela julgamento sadio sobre a verdade.
Portanto, os que não crêem na ressurreição ou duvidam dela, não devem
dar sua opinião sobre ela a partir do que lhes pareça irrefletidamente,
nem por aquilo que poderia ser grato às pessoas intemperantes; devem
dizer que a origem do homem não depende de nenhuma causa (e isso é fácil
de refutar) ou, se atribuem a Deus a causa de todos os seres, devem
olhar este dogma como princípio e por ele devem demonstrar que a
ressurreição não tem nenhuma garantia de verdade. Conseguirão isso se
demonstrarem que Deus não pode ou não quer unir e juntar de novo os
corpos mortos e até completamente desfeitos, para constituir os mesmos
homens. E se não podem demonstrá-lo, parem com essa incredulidade atéia e
não blasfemem contra o que não é lícito blasfemar. Que não dizem a
verdade ao falar que Deus não pode ou não quer, ficará claro pelo que
vamos dizer.
Sabe-se realmente que algo é impossível para alguém,
quando este não sabe o que fazer ou porque não tem força suficiente para
fazer bem o que sabe. Com efeito, aquele que não conhece o que se tem
que fazer, não pode de jeito nenhum tentar, sequer realizar o que
desconhece; aquele que conhece bem o que se tem que fazer, quais os
meios e de que modo, mas não tem nenhuma força para isso ou não a tem
suficientemente, esse, se é sensato e sabe medir as próprias forças, em
princípio não começará a obra; se a começa de modo desconsiderado, não
poderá levar o cabo o seu propósito. Pois bem! Não é possível que Deus
desconheça, em cada parte e membro, a natureza dos corpos que
ressuscitarão, nem que ignore o paradeiro de cada parte desfeita, nem
qual parte de elemento recebeu o desfeito e dissolvido em seus afins,
por mais difícil que pareça aos homens discernir aquilo que identificou
novamente de modo natural com o todo. De fato, quem, antes da própria
constituição de cada um, não desconhecia a natureza dos elementos que
deveriam existir e dos que deveriam formar os corpos dos homens, nem as
partes daqueles que lhe pareceu melhor tomar para a constituição do
corpo, é evidente que, depois de completamente dissolvido, também não
desconhecerá onde foi parar cada uma das partes que tomou para completar
o todo. Segundo a ordem dominante das coisas entre nós e o julgamento
de cada caso, certamente é superior conhecer antecipadamente o que não
é; no entanto, para a dignidade e sabedoria de Deus, ambas as coisas são
naturais e igualmente fáceis: conhecer antecipadamente o que não é e
reconhecer o que se desfez.
Quem criou pode recriar
3.
Que o poder de Deus seja suficiente para ressuscitar os corpos, o
próprio fato de sua criação o prova. Se Deus fez os corpos dos homens,
que não existiam, conforme a primeira constituição e princípios deles,
com a mesma facilidade ressuscitará os que, seja como for, se
desfizeram, pois isso é igualmente possível para ele. Este raciocínio
em nada falha pelo fato de que alguns suponham que os primeiros
princípios derivam da matéria, ou que os corpos dos homens têm como
princípios os elementos ou os espermas. De fato, o mesmo poder usado
para dar forma ao que eles consideram matéria informe, adornar com
diferentes espécies a que não tem espécie nem adorno, reunir em um só
composto as partes dos elementos, dividir na variedade de membros o
sêmen que é um e simples, articular o inarticulado, e dar vida ao não
vivente, o mesmo é usado para reunir o dissolvido, levantar o que jaz
por terra, vivificar o morto e transformar em incorrupto o corrompido.
Corresponde ao mesmo e é obra do mesmo poder e sabedoria distinguir e
reunir em suas próprias partes e membros aquele que, despedaçado, foi
parar numa multidão de animais de toda espécie, que costumam atacar tais
corpos e saciar-se deles, tenham ido pararem um só desses animais ou em
muitos, e destes em outros e, dissolvido juntamente com eles, tenha
voltado, conforme a natural dissolução, aos primeiros princípios. Parece
ser isso o que mais perturba alguns, entre aqueles cuja sabedoria é
admirável; não sei porque consideram tão grandes as dificuldades
correntes entre o vulgo.
Dificuldades para admitir a ressurreição
4.
Com efeito, o vulgo costuma objetar que muitos corpos, mortos
miseravelmente em naufrágios e rios, serviram de alimento aos peixes, e
muitos que morreram nas guerras, ou em outra causa mais áspera, ou em
qualquere acidente das coisas, não receberam as honras da sepultura e
ficaram expostos como pasto de numerosas feras. Desse modo, consumidos
os corpos e espalhadas suas partes e membros, de que se compunham, entre
muitos animais e assimilados, através do alimento, com os corpos
daqueles que os comeram, eles dizem primeiramente que a separação é
impossível. A essa dificuldade acrescentam outra ainda maior: se os
corpos de animais que se alimentaram de carne humana são, por sua vez,
aptos para alimento de homens, passando pelo ventre destes e assimilados
aos corpos de quem os comeram, resultará necessariamente que as partes
dos homens que serviram de alimento aos animais passarão para os corpos
de outros homens, pois os animais que se alimentaram deles os
transportam, por sua vez, para aqueles homens que se alimentam deles. A
tudo isso, acrescentam as tragédias daqueles que comeram seus próprios
filhos em momentos de fome ou em arroubos de loucura, ou dos filhos que,
por armadilha dos inimigos, foram alimento de seus próprios pais;
formam assim uma cadeia de calamidades acontecidas entre os gregos e os
bárbaros: a famosa mesa de Medéia, os trágicos convites de Tiestes e
outras semelhantes. A partir de tudo isso, estabelecem, conforme
pensam, que a ressurreição é impossível, pois os mesmos membros não
podem ressuscitar em diferentes corpos; ou não podem ressuscitar os
corpos dos primeiros, admitindo que as partes que o compunham passaram
para outro; ou, se estas são devolvidas para os primeiros, os outros
ficarão defeituosos.
Argumentações para eliminar as objeções
5.
Parece-me, porém, que aqueles que assim falam, em primeiro lugar,
desconhecem o poder e a sabedoria daquele que criou e governa todo este
universo. Ele adapta o natural e conveniente alimento para cada natureza
e espécie de animal, não permite que qualquer natureza seja unida a
qualquer corpo e assimilada por este; e não lhe seria difícil nem mesmo a
separação do unido. Ele consente, porém, que cada coisa criada faça e
suporte o que condiz com sua natureza e proíbe o que não condiz; e ele
consente ou se opõe a tudo o que quer e para a finalidade que quer. Além
disso, parece-me que não levaram em consideração a própria força e
natureza de cada um dos que se alimentam ou são alimentados. Caso
contrário, ter-se-iam dado conta de que nem tudo que se ingere, cedendo à
necessidade exterior, converte-se, sem mais nem menos, em alimento
natural para o animal, mas que existem coisas que, apenas tendo chegado
às partes dobradas do ventre, naturalmente se corrompem e que, por
vômito, secreção ou por outro modo, são expelidas, de modo que por breve
tempo toleram a primeira e natural cocção e muito menos a assimilação
com o corpo que se quer alimentar. Além disso, tudo o que foi cozido e
recebeu a primeira transformação não se incorpora absolutamente às
partes alimentadas, porque parte perde sua força nutritiva no próprio
ventre, parte na segunda transformação, são segregados na cocção que se
realiza no fígado e executam outra função alheia à virtude nutritiva.
Mesmo a transformação que se realiza no fígado não passa a ser
inteiramente alimento dos homens, mas é segregada para as naturais
superfluidades. Por fim, o que sobra se transforma por vezes em outra
coisa nas mesmas partes e membros alimentados, conforme o predomínio do
que abunda ou sobra e que costuma, de algum modo, corromper ou assimilar
em si o que se lhe aproxima.
6. Portanto, como é tão grande a
variedade natural em todos os animais e o próprio alimento natural muda
para cada espécie animal e para cada corpo alimentado, e o alimento de
cada animal, tendo que sofrer tríplice purificação e segregação, é
totalmente necessário que ele corrompa naturalmente, elimine ou
transforme em outra coisa tudo o que é alheio à nutrição do animal, por
não poder ser assimilado, e que a força do corpo alimentício se ajeite e
esteja conforme à natureza e força do corpo alimentado pelas
segregações naturais e, purificado com os meios de purificação da
própria natureza, se transforme em autêntico aumento da substância.
Falando conforme a verdade das coisas, somente este se deveria chamar
alimento, pois rejeita tudo o que é alheio e daninho à constituição do
corpo alimentado e aquele grande peso que provém de ventre cheio e da
satisfação do apetite. Ninguém duvidará que este é o alimento que se une
ao corpo alimentado, implicando-se e incorporando-se às suas partes e
membros; mas o que não é assim e é contrário à natureza, corrompe-se
logo ao se encontrar com uma força maior; todavia, se é ele que
predomina, corrompe com facilidade o organismo e se transforma em maus
humores e qualidades venenosas, como o que não traz nada próprio ou
favorável ao corpo alimentado. A prova maior disso reside em que para
muitos animais seguem-se dores, perigo ou morte se, impelidos por
veemente apetite, ingerem, misturado à comida, algo venenoso e contrário
à natureza. Isso pode corromper o animal alimentado, pois o que se
alimenta, se alimenta somente com o apropriado e conforme à sua
natureza, e se corrompe com o contrário. Ora, se o alimento conforme à
natureza se diversifica pela diferença dos animais também diferentes por
natureza, e ainda assim nem tudo o que o animal ingere, nem qualquer
parte dele, recebe a assimilação com o corpo alimentado, mas somente o
purificado por todas as cocções e de fato transformado para a união
segundo a qualidade do corpo, e que se adapta finalmente às partes
alimentadas, é evidente que nada que seja contra a natureza pode unir-se
a corpos para os quais não é alimento natural e conveniente; ao
contrário, ou é eliminado no próprio ventre, antes de gerar algum outro
humor, cru ou corrompido, ou, se se mantém por muito tempo, produz
sofrimento e doença de difícil cura, que corrompe o alimento natural e
até a própria carne que necessita de alimento. Mesmo quando é expelido,
seja por medicamentos, seja por comidas melhores, ou vencido pelas
forças naturais, não é eliminado sem grande prejuízo, pois não leva nada
de pacífico aos elementos naturais, porque não se assimila naturalmente
com eles.
7. Mesmo concedendo que um alimento em tais condições
(chamemo-lo assim por costume) entre no organismo, embora sendo contra a
natureza, e se transforme num dos elementos úmidos ou secos, frios ou
quentes, essa concessão absolutamente de nada adiantará para nossos
opositores, porque os corpos ressuscitados constarão novamente de suas
próprias partes e nada do que foi dito é parte, nem tem função ou ordem
de parte. Ainda mais: essas coisas nem sempre permanecem com as partes
do corpo alimentado, nem ressuscitarão juntamente com os corpos
ressuscitados, pois daí para frente de nada lhes servirão o sangue, a
pituíta, a bílis, a respiração, porque não terão mais necessidade
daquilo que os corpos alimentados necessitavam antes, uma vez que, junto
com a necessidade e a corrupção, ser-lhes-á tirado o uso das coisas de
que se alimentavam.
Por
fim, suponhamos que a transformação desse alimento chegue até a
fazer-se carne. Nem mesmo assim haverá necessidade de que essa carne
recém-formada de tal alimento e que aderiu ao corpo de outro homem tenha
novamente de servir como parte para a composição desse homem, pois nem
sempre a carne que assimila conserva a que tomou, nem é constante a que
com ela se uniu, nem permanece com aquela com a qual se agregou. Com
efeito, são muitas as mudanças que pode sofrer de um ou de outro modo;
ora arrastada e levada por trabalhos e preocupações, ora consumida pelas
tristezas, fadigas e enfermidades, ou porque, produzindo-se
destemperanças por causa do calor ou frio, as partes que receberam o
alimento, por permanecerem no que são, não se transformam com a carne e a
gordura. Com tantos acidentes que sobrevêm a toda carne, é mais cabível
entender que isso passa àquela que se nutre de alimentos que lhe são
impróprios, ora ganhando em peso e engordando com o que come, ora
rejeitando-o de alguma maneira e emagrecendo, seja por causa de uma só
das causas mencionadas, seja por muitas. Permanece nas partes somente
aquilo que tem por função unir, proteger e aquecer, isto é, o alimento
que foi selecionado pela natureza e que se assimila às partes cuja vida e
cujos trabalhos na vida se comportem conforme a própria natureza. No
entanto, (nem julgando como se deve o que foi examinado por nós, nem
concedendo ao que os opositores nos objetam pode-se demonstrar a verdade
do que eles dizem) não é possível que os corpos dos homens se assimilem
aos de sua própria natureza, seja por ignorância, seja por artifício de
outro, quando alguém come sem dar-se conta de tal corpo, seja quando,
conscientemente, por necessidade ou por loucura, se manche com corpo de
sua própria espécie, caso nos tenhamos esquecido de que existem certas
feras com forma humana ou natureza mista de homem e fera, tal como
alguns poetas mais audazes costumam fantasiar.
8. Para que falar
dos corpos que não são destinados a ser alimento de nenhum animal e aos
quais resta apenas a sepultura na terra, para honra da natureza, se o
Criador não destinou nenhum animal como alimento dos de sua própria
espécie, embora possam transformar-se em alimento natural para outros de
espécie diferente?
Ora, se se pode demonstrar que as carnes
humanas estão destinadas a servir de alimento para os homens, nada se
oporá a que a antropofagia esteja de acordo com a natureza, como
qualquer outra das coisas que a natureza permite, e os que se atrevem a
dizer tais atrocidades poderão saciar-se com os corpos de seus mais
queridos, como mais apropriados para si, ou dar seus banquetes com estes
para seus melhores amigos. Todavia, se apenas falar isso é uma
impiedade e os homens comerem os homens é coisa horrorosa e abominável, e
não há comida ou ação contra a lei e a natureza mais sacrílega do que
esta; e como o que é contra a natureza não pode se transformarem
alimento para as partes que dele necessitam, e se não se transforma em
alimento também não pode se assimilar ao que naturalmente não pode
alimentar, segue-se de tudo isso que os corpos dos homens jamais podem
assimilar corpos de sua mesma espécie, por ser alimento contra a
natureza, embora passasse muitas vezes por seu ventre para uma amarga
desgraça; ao contrário, separados da força nutritiva e espalhados entre
aqueles elementos, dos quais receberam sua primeira composição,
identificam-se com estes pelo tempo que tocar a cada um. Depois, daí
separados novamente por sabedoria e poder de quem compôs toda a natureza
do animal, com suas próprias potências, cada um se une naturalmente com
cada um, embora tivesse sido queimado pelo fogo, ou apodrecido na água,
ou devorado pelas feras ou por quaisquer animais, ou ainda cortado do
conjunto do corpo, tenha-se dissolvido de suas outras partes. Membros e
membros, unidos novamente, ocuparão o mesmo lugar, para a harmonia e
constituição do mesmo corpo e para a ressurreição e vida do que fora
antes morto ou totalmente dissolvido. Não me parece oportuno demorar
mais sobre este assunto, pois ao menos para aqueles que não sejam meio
feras, a decisão é manifesta.
A ressurreição só depende do querer de Deus.
9.
Embora haja muitos outros pontos úteis para a presente questão, no
momento não quero falar daqueles que se refugiam nas obras humanas e nos
homens que as fazem, mas não são capazes de refazer aquelas que se
quebram, ou com o tempo envelhecem, ou se destroem de outro modo, e com a
comparação dos oleiros e carpinteiros procuram demonstrar que também
Deus não quer ou, embora quisesse, não pode ressuscitar os corpos mortos
ou já dissolvidos. Contudo, não percebem que com tais raciocínios
ofendem a Deus como os mais perversos, colocando no mesmo nível os
poderes daqueles que são completamente diferentes, isto é, igualando as
substâncias com os que delas usam e as obras de arte com as naturais.
Ora, dar importância a tais objeções não careceria de repreensão, pois
de fato é idiotice deter-se para refutar o que é superficial e vão.
Muito mais glorioso e verdadeiro é dizer que o que é impossível para os
homens, é possível para Deus. Se a razão, através deste único argumento
glorioso e por tudo o que anteriormente foi examinado, demonstra a
ressurreição como possível, evidentemente ela não é impossível. Além
disso, também não é certo que Deus não a queira.
Não há nenhuma injustiça na ressurreição
10.
,Com efeito, o que não se quer não é desejado porque é injusto ou
indigno. Por sua vez, a injustiça se considera ou em relação à própria
pessoa que ressuscita ou em relação a outro fora dela. Mas é evidente
que com a ressurreição não se causa prejuízo aos que estão fora do
homem, nem a nada daquilo que se inscreve no rol dos seres. De fato, nem
as naturezas inteligíveis podem receber algum prejuízo da ressurreição
dos homens, pois esta, para existir, não supõe impedimento ou prejuízo
ou injúria de qualquer tipo; também não pode receber prejuízo a natureza
dos seres irracionais ou a dos inanimados, porque, depois da
ressurreição, não mais existirão. Quanto ao que não existe, não há
injustiça. Todavia, mesmo supondo que existissem para sempre, também não
se cometeria injustiça com eles pelo fato de os corpos humanos serem
renovados. Com efeito, se agora estas coisas estão submetidas à natureza
dos homens que necessitam de seus serviços, e postas sob o jugo e toda
servidão, não se comete contra elas nenhuma injustiça e também não se
cometerá quando os homens, tornados incorruptíveis e já sem necessidade
de servir-se das coisas, estão se verão livres de toda escravidão. Se
elas tivessem voz, também não poderiam queixar-se ao Criador por terem
sido rebaixadas mais do que o justo em relação ao homem e por não
alcançarem também a ressurreição, pois aquele que é justo não pode
atribuir o mesmo fim àqueles que possuem natureza distinta. Além disso
tudo, onde não existe julgamento sobre o justo, também não cabe
discussão sobre injustiça. Finalmente, também não é possível dizer
alguma injustiça em relação ao próprio homem que ressuscita. Este, de
fato, é constituído de alma e corpo, e não sofre injustiça nem na alma,
nem no corpo. Com efeito, ninguém de bom senso dirá que sofre injustiça
na alma. Caso contrário, sem perceber, desse modo também condenaria a
presente vida. De fato, se agora, habitando em corpo corruptível e
passível, não se lhe faz nenhuma injustiça, muito menos se lhe fará,
convivendo com outro incorruptível e impassível. Contudo, também não se
agrava em nada o corpo. Com efeito, se agora o corruptível acompanha o
incorruptível e não é agravado, evidentemente também não o será quando,
incorruptível, acompanhará o incorruptível. Também não se pode dizer que
seja de algum modo obra indigna de Deus ressuscitar e novamente reunir
um corpo desfeito. Se o menos, isto é, fazer um corpo corruptível e
passível não foi indigno, com maior razão o mais não o será, isto é,
formá-lo incorruptível e impassível.
Resumo da I parte
11.
Portanto, se pelos princípios, que são naturalmente primeiros e pelo
que deles se segue, ficam demonstradas cada uma das questões propostas, é
evidente que a ressurreição dos corpos desfeitos é obra possível,
desejada e digna do Criador. Por aí também se demonstrou a mentira que
se opõe a esta verdade e o absurdo da incredulidade de alguns. Que
necessidade há de ressaltar a correspondência de uma coisa com outra e
sua mútua conexão? Se é que se deva falar de conexão, como se houvesse
entre elas alguma diferença que as separassem, e não seja melhor dizer
que o possível é também desejado e que o que Deus deseja é absolutamente
possível e conforme com a dignidade de quem o deseja.
Antes
dissemos de modo suficiente que existe um raciocínio a respeito da
verdade e outro para defender a verdade e qual a diferença entre um e
outro, assim como a ocasião e para quem eles são úteis. Mas talvez não
haja inconveniente, depois de ter atendido à utilidade comum e à conexão
do que foi dito com o que resta por dizer, que novamente tomemos aqui o
nosso ponto de partida. Ora, a um convém por natureza ser primeiro e a
outro escoltar o primeiro, abrir-lhe o caminho e afastar tudo que se lhe
opõe e dificulta a sua marcha. O raciocínio a respeito da verdade,
necessário a todos os homens para sua segurança e salvação, tem a
primazia por sua natureza, por sua ordem e por sua utilidade. Por sua
natureza, porque nos proporciona o conhecimento das coisas; por sua
ordem, pois existe naquilo e junto com aquilo do qual é indicador; por
sua utilidade, enfim, porque é guia de segurança e salvação para os que
conhecem. Em troca, o raciocínio para defender a verdade é inferior,
tanto por sua natureza como por sua força, pois é menos refutar a
mentira do que afirmar a verdade. Também é secundário por sua ordem,pois
tem força apenas contra as falsas opiniões, e uma falsa opinião nasce
de uma semeadura em cima da outra e de corrupção. Todavia, mesmo que
isso seja assim, antepõe-se algumas vezes e acaba sendo mais útil, pois é
ele que tira e limpa de antemão a incredulidade que aflige alguns e a
dúvida ou falsa opinião dos que se aproximam pela primeira vez. Um e
outro tendem ao mesmo fim, pois tanto aquele que refuta a mentira, como
aquele que afirma a verdade se referem à piedade; isso, porém, não quer
dizer que ambos são uma mesma coisa, mas que um, como disse, é
necessário a todos os que crêem e a todos os que se preocupam com a
verdade e a salvação; quanto ao outro, por vezes torna-se mais útil para
alguns.
Seja dito isso, em resumo, só para recordar o que foi
anteriormente exposto. Prossigamos com o nosso propósito, e demonstremos
que é verdadeira a doutrina da ressurreição pela própria causa pela
qual foi criado o primeiro homem, e os outros depois dele, embora não do
mesmo modo; pela natureza comum dos homens como homens e, por fim, pelo
julgamento que o Criador fará sobre os mesmos, conforme o tempo que
viveram e as leis que observaram; julgamento que ninguém duvidará que
será justo.
II PARTE: A CONVENIÊNCIA E A NECESSIDADE DA RESSURREIÇÃO
prova da ressurreição: o destino do homem criado para a eternidade
12.
O raciocínio pela causa apóia-se em considerar se o homem foi feito ao
acaso e despropositadamente ou se foi feito por algum motivo. Se foi
feito por algum motivo, ou teria sido para viver ele próprio depois de
feito e permanecer segundo a sua natureza, ou feito para a utilidade de
alguém. Se foi feito para utilidade, é a do próprio Criador ou de alguma
coisa relacionada a ele e que merece a sua maior preocupação. Ora, se
consideramos a questão de modo mais geral, encontramos que nenhum ser
sensato e que se move para fazer algo por juízo de razão, fazem vão
alguma coisa de tudo o que realiza de propósito. Ao contrário, ele é
movido a agir, ou para sua própria utilidade, ou para a utilidade de
alguém com o qual se preocupa, ou pela própria coisa realizada, para
cuja produção é arrastado por um impulso natural e pelo amor. Vamos dar
um exemplo, para que fique mais claro o que dissemos. O homem faz uma
casa para a sua própria utilidade; contudo, para seus bois, camelos e
outros animais de que necessita constrói como casa uma morada que lhe
convém. Aparentemente não para a sua própria utilidade; mas, em última
análise, é para isso, embora imediatamente faça isso pelo cuidado com
aqueles animais com os quais ele se preocupa. Também procria filhos, não
para a sua própria utilidade, nem olhando para qualquer coisa que lhe
toca, mas para que aqueles que foram gerados por ele existam e
permaneçam o quanto possível, consolando-se do seu próprio fim com a
sucessão de seus filhos e descendentes e pensando que desse modo
imortaliza o que é mortal. Isso quanto aos homens. Deus, porém, não fez o
homem em vão, pois Deus é sábio, e na sabedoria não cabe obra vã;
também não é para a sua própria utilidade, pois ele de nada necessita, e
quem absolutamente de nada necessita, nenhuma coisa do que ele faz lhe
pode servir de qualquer utilidade; mas também não o fez por motivo de
qualquer obra das que ele criou, pois nenhuma das criaturas dotadas de
razão e juízo, maiores ou menores, nem foi nem é feita para a utilidade
de outro, mas para a própria vida e permanência dessas criaturas. Com
efeito, nem a própria razão pode encontrar alguma utilidade como causa
da criação do homem, pois os seres imortais de nada necessitam e nenhuma
utilidade pode lhes advir dos homens; e os irracionais são naturalmente
comandados e alguma necessidade dos próprios homens preenche cada um, e
não são eles que, pela lei da natureza, irão servir-se destes. De fato,
nunca foi e nem é lícito rebaixar aquele que comanda e guia à utilidade
do inferior, submetendo o racional ao irracional, que não é apto para
comandar. Portanto, se o homem não foi criado sem motivo e em vão, pois
nada daquilo que Deus faz pode serem vão, ao menos segundo a intenção de
quem o faz; se não foi criado para a utilidade daquele que o faz, nem
de alguma outra coisa criada por Deus, é evidente que, quanto à razão
primeira e mais geral, Deus fez o homem por motivo do próprio homem e
pela sua bondade e sabedoria, que se contempla em toda a criação. Quanto
à razão mais imediata das coisas criadas, para a vida dos próprios
homens criados, e essa não para acender-se por um momento e extinguir-se
totalmente logo depois. De fato, para os répteis, aves, peixes e,
dizendo de um modo geral, para todos os irracionais, Deus lhes concedeu
vida semelhante; mas para aqueles que levam em si mesmos a imagem do seu
Criador, são dotados de inteligência e participam do juízo racional, a
estes o Criador destinou uma permanência para sempre, a fim de que,
conhecendo o seu Criador e o seu poder e sabedoria, seguindo a lei e a
justiça, vivam eternamente sem trabalhar naquelas coisas com que
afirmaram a sua vida anterior, apesar de estarem em corpos corruptíveis e
terrenos. De fato, o que foi feito por motivo de outra coisa, é natural
que também deixe de ser, quando cessa aquilo para o qual foi feito e
não pode permanecerem vão, pois nada do que é vão tem lugar nas obras de
Deus. Mas o que foi feito em razão do próprio ser e da vida conforme a
sua natureza, como a própria causa está ligada à natureza e é olhada
apenas quanto ao próprio ser, jamais poderia receber uma causa que
destruísse totalmente o seu ser. Todavia, sendo esta considerada sempre
no ser, é absolutamente preciso que também se salve o animal criado,
realizando e sofrendo o que por natureza lhe convém e contribuindo cada
uma das partes de que se compõe naquilo que lhe toca: a alma, sendo e
permanecendo uniformemente na natureza em que foi criada e trabalhando
naquilo que naturalmente lhe corresponde (e corresponde a ela presidir e
comandar os impulsos do corpo e julgar e medir tudo o que ocorre em
qualquer momento, servindo-se de critérios e medidas convenientes);
quanto ao corpo, movendo-se conforme a natureza do que naturalmente lhe
corresponde e recebendo as transformações para as quais está destinado e
todas as outras de idade, forma e tamanho, também lhe cabe a
ressurreição. Com efeito, a ressurreição é uma espécie de transformação,
a última de todas, e transformação para melhor entre aquelas que já se
realizaram.
13. Confiando nessas coisas, não menos nas que já
aconteceram, e considerando a nossa própria natureza, não só aceitamos
com amor a vida de necessidades e corrupção, como convém ao tempo
presente, mas esperamos também firmemente a permanência na incorrupção. E
esta não a tomamos de modo vão, da fantasia dos homens, iludido-nos com
esperanças mentirosas, mas cremos em quem nôla garante de modo
absolutamente infalível no desígnio de nosso Criador, segundo o qual fez
o homem de alma imortal e de corpo, dotou-o de inteligência e lei
ingênita para a sua salvação e para a guarda dos preceitos que ele lhe
dera, convenientes com uma vida moderada e razoável. Sabemos muito bem
que ele jamais teria feito um animal assim, nem o teria adornado com
tudo o que é necessário para a sua permanência, caso não fosse sua
vontade que efetivamente permanecesse. Portanto, se o Criador de todo
este universo fez o homem para participar da vida racional e, feito
contemplador de sua magnificência e sabedoria que em tudo brilham,
permanecer sempre nessa contemplação, segundo o seu desígnio e conforme a
natureza que lhe coube como sorte, a causa da criação nos garante a
permanência para sempre e a permanência garante a ressurreição, pois sem
ela não seria possível ao homem permanecer para sempre.
Do
que foi dito, fica evidente que, por causa da criação assim como pelo
desígnio de seu Criador, a ressurreição fica claramente demonstrada.
Sendo tal a causa pela qual o homem foi trazido a este mundo, seria
conseqüente considerar agora a razão que a ela se segue naturalmente ou
por encadeamento lógico. Segue-se, portanto, o exame da causa da
criação, a própria natureza dos homens criados, e a julgamento justo que
o Criador fará deles, e a tudo isso, o próprio fim de vida. Como já
investigamos o que ocupa o primeiro lugar, passemos agora à natureza do
homem.
2ª prova: o desígnio do Criador e a natureza do homem composto de alma e corpo
14.
Se a demonstração dos dogmas da verdade ou de quaisquer outros
problemas que se propõem à investigação deve trazer evidência infalível
às conclusões, ela não toma seu ponto de partida de nenhum exterior ou
do que para alguns possa parecer ou lhes tenha parecido, mas da
inteligência comum e natural, ou da conexão entre os primeiros
princípios e suas conseqüências. Com efeito, ou se trata dos princípios
primeiros, e nesse caso basta uma simples advertência para mover a
inteligência natural; ou se trata daquilo que por lei natural se segue
dos primeiros princípios e da conexão natural. Então deve-se estabelecer
uma ordem mostrando o que é aquilo que se segue conforme a verdade do
primeiro e principal, a fim de não cometer uma negligência com a verdade
ou com a segurança da verdade, nem confundir o que por natureza está
ordenado e tem seus próprios limites, tampouco romper o seu encadeamento
natural. Disso, parece-me necessário que aqueles que põem um justo
empenho na questão proposta e queiram julgar com prudência se existe ou
não a ressurreição dos corpos humanos, antes de tudo considerem bem a
força dos argumentos que servem para a sua demonstração, que lugar cada
um ocupa, qual deles é o primeiro, qual o segundo, qual o terceiro e
qual o último. Portanto, se tratamos de estabelecer nisso uma ordem, é
preciso em primeiro lugar a causa da criação do homem, isto é, o
desígnio segundo o qual o Criador fez o homem; a esta deve-se unir
naturalmente a natureza dos próprios homens criados, não porque ocupe o
segundo lugar na ordem, mas porque não é possível julgar ambas de uma só
vez, por mais que em sumo grau coexistam uma com a outra e ambas tenham
a mesma força para a questão presente. Demonstrada claramente por esses
argumentos como sendo primeiros e que tomam seu princípio da própria
criação, a ressurreição da carne não pode ser menos confirmada pelas
razões da providência, isto é, pelo prêmio ou castigo que se deve a cada
homem, conforme o julgamento justo, e pelo fim da vida do homem. Com
efeito, muitos que discutiram a doutrina da ressurreição apoiaram toda a
causa na terceira ordem dos argumentos, crendo que acontecerá apenas
por causa do julgamento; isto, porém, que se demonstra com toda a
clareza como falso, pelo fato de que todos os homens que morrem
ressuscitarão, mas nem todos os ressuscitados serão julgados. Se apenas a
justiça do julgamento fosse a causa da ressurreição, aqueles que não
cometeram pecado, nem fizeram algum bem, não ressuscitariam, isto é, as
crianças muito pequenas; mas como todos ressuscitarão e, entre outros,
também os que morreram em tenra idade, estes mesmos justificam que não
será por meio do julgamento, como razão primeira, que se dará a
ressurreição, mas pelo desígnio do Criador e pela natureza das obras
criadas.
15. Mesmo quando a causa que vemos na criação dos homens
basta por si só para demonstrar que a ressurreição se seguirá por
natural conseqüência aos corpos desfeitos, é justo, todavia, não
desprezar nenhum dos argumentos anteriormente propostos e, coerentes com
o que dissemos, frisar, para os que não podem vê-los por si próprios,
quais conseqüências se seguem de cada um deles. Antes de tudo, a
natureza dos homens, que nos leva à mesma conclusão e tem a mesma força
para esta estabelecer a fé na ressurreição. Agora, como universalmente
toda a natureza consta de alma imortal e de corpo que foi adaptado a
essa alma no momento da criação; como Deus não destinou tal criação, tal
vida e toda a existência à alma por si só ou ao corpo separadamente,
mas aos homens, compostos de alma e corpo, a fim de que pelos mesmos
elementos dos quais se geram e vivem, cheguem, terminada a sua vida, a
um só e comum termo; como de corpo e alma se forma um só animal que
sofre o mesmo que alma e corpo sofrem, que age e realiza tanto o que se
refere à vida sensível como ao juízo racional, é inteiramente necessário
que todo esse conjunto se refira a um só fim e, desse modo, em tudo
concorra a uma só harmonia e à mesma união de sentimentos no homem: seu
nascimento, sua natureza, sua própria vida, suas ações, suas paixões,
sua existência e o fim conveniente à sua natureza. Mas se deve haver uma
só harmonia de todo o animal e uma união de sentimento entre o que
procede da alma e o que é realizado pelo corpo, é preciso que haja um só
fim para todos esses elementos. Haverá um só fim, se o animal, de cujo
fim se trata, é de fato o mesmo, segundo a sua constituição; e será
claramente o mesmo, se se dão os mesmos elementos de que se compunha
como partes; e os elementos serão os mesmos segundo sua própria conexão,
se os que se dissolveram se unirem novamente para a constituição do
animal. A constituição dos próprios homens demonstra que a ressurreição
dos corpos mortos e desfeitos necessariamente se seguirá; caso ela não
houvesse, não seria possível que as partes se unissem naturalmente umas
com as outras, nem a natureza se comporia dos mesmos homens.
Além
disso, se foram dadas aos homens inteligência e razão para discernir o
inteligível, e não só as substâncias, mas também a bondade, sabedoria e
justiça do Doador, permanecendo aquilo pelo qual lhe foi dado o juízo
racional, necessariamente deve também permanecer o juízo que foi dado
para o seu discernimento. E não é possível que este permaneça se não
permanecer a natureza que o recebe e na qual ele está. Ora, quem recebe a
inteligência e a razão é o homem e não a alma por si só; logo, o homem,
que consta de alma e corpo, deve permanecer para sempre. E impossível,
porém, que ele permaneça se não ressuscita. De fato, se a ressurreição
não se verifica, a natureza dos homens como homens não pode permanecer
e, se a natureza dos homens não permanece, a alma se ajustou em vão às
necessidades e sofrimentos do corpo, em vão foram postas peias ao corpo,
impedindo-o de satisfazer seus instintos, sendo obediente às rédeas e
ao freio da alma; são vãos a inteligência, o pensamento, a observância
da justiça, a prática de qualquer virtude, a promulgação e ordenação das
leis, em uma palavra, é vão tudo o que há de belo nos homens e para os
homens; ainda mais: a própria criação e a natureza dos homens são vãs.
Se, porém, ser vão está excluído de todas as obras de Deus e seus dons
em todas as partes, é absolutamente necessário que, junta mente com a
alma imorredoura, a permanência do corpo perdure eternamente conforme a
sua própria natureza.
16. Ninguém se surpreenda por chamarmos de
permanência uma vida interrompida pela morte e corrupção, mas considere
que não existe apenas uma razão para essa denominação, nem há apenas uma
medida da permanência, pois a natureza dos que permanecem também não é
apenas uma. Com efeito, se cada coisa que permanece tem a permanência
segundo a sua própria natureza, não é possível encontrar permanência
equiparável nos seres puramente incorruptíveis e imortais, pelo fato de
que as substâncias superiores não podem ser comparadas às inferiores,
nem se deve buscar nos homens uma permanência simples e imutável, pois
aqueles foram, desde o princípio, criados imortais e permanecem
imorredouros pelo único desígnio de quem assim os fez. Quanto ao corpo,
os homens recebem a incorruptibilidade pela transformação exigida pela
razão da ressurreição, embora quanto à alma gozem da permanência
imutável desde a criação. Visando à ressurreição, aguardamos por um lado
a dissolução do corpo que se seguirá à vida de necessidades e
corrupção; depois desta vida, porém, esperamos confiantemente na
permanência da incorruptibilidade, pela qual não igualamos o nosso fim
com o fim dos irracionais, nem a permanência dos homens com a
permanência dos seres imortais, a não ser que, inadvertidamente,
equiparemos desse modo a natureza e a vida dos homens com o que não
convém equipará-Ias. Assim, não nos devemos preocupar se notamos alguma
desigualdade na permanência dos homens, nem nos devemos desesperar da
ressurreição porque a separação da alma do corpo e a dissolução de suas
partes e membros corte a continuidade da vida. Com efeito, não recusamos
dizer que há uma mesma vida só porque os relaxamentos das sensações e
potências naturais, que naturalmente acontecem no sono, pareçam
interromper a vida consciente e obriguem o homem a dormir em períodos
regulares de tempo e, de certo modo, a reviver novamente. Por isso,
creio que alguns chamam o sono de irmão da morte, não porque queiram
explicar a genealogia deles através de mesmos pais ou antepassados, mas
por causa da semelhança de situação dos que morrem e dos que dormem:
quanto à sua tranqüilidade, que tanto uns como outros não se dão conta
do que os rodeia ou do que lhes acontece e, ainda mais, nem mesmo de sua
própria existência e vida. Portanto, se não recusamos dizer que a vida
dos homens é a mesma vida, embora cheia de tanta desigualdade desde que
nascemos até a nossa dissolução e interrompida por tudo o que dissemos,
também não nos desesperaremos da vida após a dissolução, que traz
consigo a ressurreição, por mais que, durante um pouco de tempo, seja
interrompida pela separação da alma e do corpo.
17. A mesma
natureza humana que, segundo o desígnio do seu Criador, desde sua origem
tem a desigualdade por herança, ‘tem também de forma desigual a vida e a
permanência, interrompida ora pelo sono, ora pela morte, ora pelas
transformações de cada idade, sem que apareça claramente nas primeiras
aquelas que acontecerão depois. Quem poderia crer, se a experiência não o
ensinasse, que numa gota de esperma, uniforme e diluído, está contido o
princípio de tantas e tão grandes faculdades, ou que tanta diferença de
massas estão aí reunidas e contraídas, isto é, os ossos, os nervos, as
cartilagens, além dos músculos, carnes, entranhas e todas as partes do
corpo? De fato, não se pode ver nada disso no sêmen úmido, nem se vê nas
crianças o que serão os homens feitos, nem nos homens feitos o que
serão os homens maduros, nem nos maduros o que serão os velhos.
Entretanto, apesar de algumas coisas ditas não manifestarem
absolutamente e outras indicarem apenas de maneira obscura o que será o
ulterior desenvolvimento natural, nem manifestarem as transformações que
sobrevêm à natureza humana, todos aqueles que não tem o juízo cego,
pela maldade e a preguiça, a respeito dessas coisas sabem que antes de
tudo se deve lançar o sêmen e, articulando-se as partes e membros do
corpo e dado à luz o concebido, acontece o crescimento e, depois do
crescimento, a maturidade; após a maturidade, o relaxamento das
faculdades físicas até a velhice e, finalmente, esgotado o corpo, a
dissolução. Desse modo, nesta ordem das coisas, sem que o sêmen tenha
inscritas em si mesmo a vida e a forma dos homens, nem a vida a
dissolução nos primeiros princípios, o encadeamento dos fatos naturais
nos garante a fé do que acontecerá, mesmo não podendo vê-lo claramente;
muito mais a razão, que segue o rastro da verdade por conexão natural,
nos garante a fé na ressurreição, visto que ela é mais segura e superior
do que a experiência para confirmar a verdade.
3ª prova: tanto o corpo quanto a alma devem ser premiados ou punidos
18.
As razões que, há pouco, nos propusemos examinar e que demonstram a
ressurreição, são todas da mesma espécie, pois nascem do mesmo princípio
e este princípio é a origem, por criação, dos primeiros homens.
Contudo, umas se afirmam pelo mesmo primeiro princípio de que nascem;
outras, ao seguir a natureza e a vida dos homens, adquirem sua força
demonstrativa a partir da providência de Deus para conosco. Com efeito, a
causa por que e para que foram criados os homens, unida à natureza
deles, adquire sua força a partir da própria criação. Contudo, a razão
da justiça, segundo a qual Deus julga os que vivem bem ou mal, é tomada a
partir do fim destes. De fato, nascem daí, porém dependem mais da
providência.
Na medida de nossas possibilidades, provada a nossa
tese através das primeiras razões, será bom também procurarmos prová-la
por estas últimas, isto é, o prêmio ou castigo que, por um julgamento
justo, é devido a cada homem, e, segundo a finalidade da vida humana e
destas mesmas colocar por primeiro aquela que é principal e considerar
antes de tudo o motivo do julgamento. Por causa da nossa preocupação de
princípio e de ordem que convém à nossa tese, temos que fazer uma única
advertência: aqueles que admitem Deus como Criador de todo este
universo, devem também atribuir à sua sabedoria e justiça a guarda e
providência de todo o criado, se desejam permanecer fiéis a seus
próprios princípios. Se assim pensam sobre isso, não podem considerar
que algo seja alheio ao governo e providência de Deus, mas reconhecer
que o cuidado do Criador se estende a tudo, tanto ao invisível como ao
visível, ao grande e ao pequeno. Com efeito, todo o criado necessita do
cuidado do Criador, e, particularmente, cada coisa, segundo foi criada e
para que foi criada. Não julgo oportuno descer a pormenores ou dividir
agora por seus gêneros e querer fazer um longo catálogo do que é
conveniente para cada natureza. Quanto ao homem, do qual agora nos
propomos falar, como necessitado, ele necessita de alimento; como
mortal, de sucessão; como racional, de julgamento. Ora, se cada uma das
coisas ditas são naturais ao homem, e ele necessita de alimento para a
vida, de sucessão para a permanência da espécie e de justiça para o que
de legítimo têm o alimento e a sucessão, é forçoso que a justiça se
refira também ao composto humano, pois a este se referem o alimento e a
sucessão. Chamo de composto o homem com seu corpo e alma, e digo que
esse homem é o responsável por todas as suas ações e receberá o prêmio
ou castigo por elas. Ora, se um julgamento justo dará sobre o composto a
sentença das obras, nem a alma sozinha receberá a recompensa do que
realizou junto com o corpo, pois por si mesma ela é insensível aos
pecados que possam ser cometidos pelos prazeres, alimentos ou cuidados
corporais, nem o corpo sozinho, pois por si mesmo ele é incapaz de
discernir a lei e a justiça. Ao contrário, é o homem, composto de alma e
corpo, que recebe o julgamento de cada uma das obras por ele feitas; a
razão, porém, não vê que isso se realize na vida presente, onde não se
dá a cada um o que merece, pois vemos que muitos ateus e pessoas
entregues a toda iniqüidade e maldade, chegam ao fim de sua vida sem
experimentar nenhum mal e, por outro lado, outros que levam uma vida
exercitada em toda virtude vivem entre dores, injúrias, calúnias,
tormentos e todo tipo de calamidades; depois da morte isso acontece, uma
vez que não existe mais o composto humano, pois a alma está separada do
corpo e este disperso novamente naqueles elementos de que foi composto,
sem conservar mais nada do seu primeiro tamanho e forma, e muito menos
memória de suas obras. Portanto, permanece apenas evidentemente o que
diz o Apóstolo: é preciso que este corpo corruptível e disperso se
revista de incorruptibilidade, para que, vivificados pela ressurreição,
seus membros mortos e novamente unidos os que se haviam separado e até
totalmente dissolvido, cada um receba justamente o que realizou por meio
do seu corpo, bem ou mal.
19.
Portanto, contra os que confessam a providência e admitem os mesmos
princípios que nós, mas depois, não se sabe como, abandonam seus
próprios supostos, essas razões e muitas outras devem servir, caso se
queira ampliar o que aqui foi dito de modo breve e rápido. Mas contra os
que diferem de nós nos primeiros princípios, seria bom propor-lhes
antes outro ponto de partida, discutindo com eles as suas opiniões e
propor-lhes a seguinte questão: Relega-se a vida e a existência inteira
dos homens e profundas trevas se derramam pela terra, ocultando na
ignorância e silêncio os próprios homens e suas ações, ou não será mais
seguro opinar que o Criador preside às suas próprias obras e vigia sobre
tudo o que existe ou acontece, e é juiz de tudo o que se faz ou que se
quer? Com efeito, se não existe nenhum julgamento de nenhuma das ações
dos homens, estes não terão nenhuma vantagem sobre os irracionais, ou
melhor, serão mais miseráveis do que eles, pois refreiam suas paixões e
se preocupam com a piedade, a justiça e as outras virtudes. A vida do
animal e da fera é a melhor; a virtude é uma insensatez; a ameaça da
justiça é pura piada; o bem supremo é gozar de todos os prazeres. O
dogma universal e a única lei de todos eles é aquele dito dos
intemperantes e dissolutos: “Comamos e bebamos, pois amanhã morreremos”.
Com efeito, a finalidade de tal vida, segundo alguns, não é sequer o
prazer, mas a insensibilidade absoluta.
Todavia, se o Criador dos
homens tem algum cuidado com suas próprias criaturas, e em algum lugar
se guarda a justa distinção entre os que viveram bem e os que viveram
mal, isso acontecerá ou na vida presente, quando ainda vivem os que
vivem conforme a virtude ou a maldade, ou depois da morte, na separação
da alma e do corpo e dissolução deste. Ora, em nenhum dos dois casos é
possível achar que se guarde o julgamento justo. Com efeito, nem os bons
recebem na vida presente a recompensa de sua virtude, nem os maus o
castigo de sua maldade. E omito dizer que, subsistindo a natureza em que
agora estamos, a natureza mortal não é capaz de sofrer o castigo
adequado a muitos delitos ou a delitos extraordinariais-zo mente graves.
De fato, aquele que matou milhares e milhares, seja ladrão, seja
príncipe ou tirano, não pode pagar com uma só morte o castigo de tantos.
E aquele que não teve jamais opinião verdadeira sobre Deus, mas viveu
entre insolências e blasfêmias de toda espécie, que desprezou o divino,
violou as leis, ultrajou tanto crianças como mulheres, assolou
injustamente cidades, incendiou casas junto com seus moradores, devastou
comarcas, destruiu multidões, povos e até uma nação inteira, como essa
pessoa bastará em seu corpo corruptível para o castigo adequado de
tantos crimes, pois a morte se antecipa àquilo que merece e a natureza
mortal não é suficiente nem para um só deles? Portanto, nem na vida
presente se mostra =julgamento segundo o merecido, nem depois da morte.
Necessidade da ressurreição do corpo para que haja julgamento justo
20.
Com efeito, ou a morte é a extinção completa da vida, com a alma se
dissolvendo e corrompendo juntamente com o corpo; ou a alma permanece
por si mesma, como indissolúvel, indissipável e incorruptível, enquanto o
corpo se corrompe e se desfaz, sem guardar memória de qualquer de suas
obras ou consciência do que nela sofrera. De fato, extinguida totalmente
a vida dos homens, de nada servirá o cuidado de homens que não vivem,
nem o julgamento sobre aqueles que viveram conforme a virtude ou
conforme a maldade. Nessa hipótese, porém, ficaremos de novo rodeados
por todos os absurdos da vida sem lei e o enxame de aberrações que a
esta seguem e a impiedade do ateísmo que é o total e o resumo dessa
iniqüidade.
Na hipótese de que seja apenas o corpo que se corrompa
e cada uma de suas partes desfeitas se juntem com as de sua espécie e a
alma permaneça por si mesma como incorruptível, também assim não haverá
lugar para o julgamento sobre ela, pois nela não haveria justiça, pois
não é lícito supor que haja em Deus ou por Deus qualquer julgamento em
que não haja justiça, e não há justiça no julgamento se não se conserva
aquele que praticou a justiça ou a iniqüidade. De fato, aquele que
praticou cada uma das ações da vida sobre as quais versa o julgamento
foi o homem e não a alma por si mesma. Dizendo numa palavra: esse
raciocínio não salva a justiça em nenhuma das duas hipóteses.
21.
Se se trata de premiar as boas obras, cometer-se-á patente injustiça com
o corpo, porque depois de ter tomado sua parte com a alma nos trabalhos
da virtude, ele não a terá no prêmio; e enquanto a alma, em muitos
casos, irá gozar de certa indulgência por certos pecados, aos quais foi
arrastada pela debilidade e necessidade do corpo, este não entra na
parte das obras boas, pelas quais suportou trabalhos na vida. Se, pelo
contrário, se trata de julgar os pecadores, não se mantém a justiça para
com a alma, se somente ela tivesse que sofrer o castigo do que pecou
por incômodo do corpo e arrastada pelos instintos e movimentos próprios
do corpo, algumas vezes como que arrebatada e seqüestrada, outras levada
por ímpeto demasiadamente violento, outras por certa concomitância, por
dar-lhe satisfação e atender ao cuidado de sua constituição. Como não
considerar injustiça que se julgue a alma sozinha por aquilo que não lhe
é próprio segundo a sua natureza, pois não sente instinto, nem
inclinação, nem impulso, por exemplo, para a lascívia, a violência, a
avareza, a injustiça e tudo o que nessas matérias se possa cometer de
pecado? Com efeito, se é certo que a maior parte de tais males procedem
do fato de os homens não dominarem as paixões que os atacam – e são
atacados pelas necessidades e exigências do corpo, pois por meio delas
se busca a posse e, melhor ainda, o uso das coisas; daí o casamento e
todas as ações, por fim, da vida sobre a qual possa acontecer o que é
pecaminoso e o que não é – onde estará a justiça, se se julga a alma
sozinha em coisas em que o corpo sente primeiro a paixão e é este que
arrasta a alma à participação da paixão e comunicação de ações que
satisfazem suas necessidades? Então os instintos e prazeres, temores e
tristezas, em cuja desordem se enraíza a responsabilidade, teriam seu
movimento proveniente do corpo; em troca, os pecados que procedem de
tudo isso e os castigos que acompanham os pecados seriam atribuídos
unicamente à alma, sendo que esta não tem nenhuma necessidade disso,
pois não sente instinto nem temor e não sofre por si mesma nada
semelhante do que o homem naturalmente sofre. Mesmo quando sentimos que
as paixões não pertencem somente ao corpo, mas ao homem, e nisso dizemos
bem, pois corpo e alma constituem uma única vida, nem por isso diremos
que tais paixões convêm à alma, se considerarmos simplesmente a sua
natureza própria. Se ela não tem nenhuma necessidade de alimento, nunca
pode desejar aquilo de que não tem nenhuma necessidade para existir, nem
poderia lançar-se na consecução de algo que por natureza não pode usar
de maneira nenhuma. Não pode também entristecer-se pela falta de
dinheiro e riquezas, que nada têm a ver com ela. Se é superior a
qualquer corrupção, não teme absolutamente nada que possa corrompê-la.
Com efeito, não se espanta com a fome, a enfermidade, a mutilação, o
ultraje, o fogo, o ferro, porque não é possível que tais coisas lhes
causem algum dano; nem a dor, pois tanto os corpos como os poderes
corporais não podem tocá-lo de maneira alguma. Se é absurdo atribuir as
paixões como coisa própria das almas, seria o cúmulo da injustiça e algo
indigno do julgamento Deus imputar unicamente às almas os pecados que
nascem das paixões e os castigos que estes merecem.
22. Além do
que foi dito, não seria absurdo que a virtude e a maldade não possam ser
concebidas na alma separadamente do corpo – de fato, as virtudes que
conhecemos são virtudes do homem e também a maldade que a elas se opõe, e
não da alma separada do corpo e por si mesma – e, em troca, o prêmio ou
castigo por elas recaísse unicamente sobre a alma? Poderia alguém
compreender o valor e a constância unicamente na alma, que não sente
medo da morte ou ferimento, da mutilação, de dano, de tormento, nem das
dores que a isso se seguem, nem da calamidade que daí provém? Ou a
temperança e castidade, quando nenhum desejo a arrasta para a comida,
para a união sexual ou para outros prazeres e deleites, nem qualquer
outra coisa a perturba por dentro ou a provoca e irrita de fora? Ou a
prudência, se ela não tem diante de si o que deve fazer ou não fazer,
escolher ou fugir, ou melhor, se ela não tem nenhum movimento ou impulso
para nenhuma ação? Onde encontrar justiça conveniente para as almas,
seja entre si mesmas, seja em relação a qualquer outro ser de espécie
igual ou distinta, se elas não têm como, meios, modo para poder dar a
cada um o que lhe corresponde por mérito ou eqüidade, a não ser a honra
devida a Deus? Por outro lado, elas não possuem por si impulso ou
movimento para usar as próprias coisas ou abster-se das alheias, pois o
uso ou abstenção das coisas é considerado naquilo que naturalmente pode
ser usado; a alma, contudo, por natureza, não necessita de nada e não
pode usar nada; por isso, nem mesmo a chamada justiça individual é
possível realizar-se numa alma dessa natureza.
23. Além de todas
essas coisas absurdas, há outra: as leis são dadas aos homens e, em
troca, os prêmios e castigos do fato, legítima ou ilegitimamente,
recairiam unicamente sobre a alma. Se alguém recebe as leis, é justo que
também receba o castigo pela sua infração, e foi o homem inteiro que
recebeu as leis e não a alma por si, é o homem inteiro e não a alma por
si que deve responder pelos pecados contra as leis. Com efeito, Deus não
mandou que as almas se abstivessem daquilo que nada tem a ver com elas,
como o adultério, o assassínio, o roubo, a rapina, a desonra dos pais
e, em geral, de todo desejo que tende ao dano ou prejuízo do próximo.
Assim, o mandamento: “Honra teu pai e tua mãe” não se adapta somente às
almas, pois tais nomes não têm nada a ver com elas. Não são as almas
que, gerando outras almas, recebem os nomes de pai e mãe, mas os homens
que geram os homens. Igualmente: “Não cometerás adultério” não se pode
convenientemente dizer ou compreender que se refere às almas, pois nelas
não existe diferença de macho e fêmea, nem aptidão para a união sexual,
nem instinto para ela. E não havendo instinto, também não é possível
que haja união. Ora, naqueles em que não se dá absolutamente a união,
também não se dará a legítima união, que é o matrimônio. E se não se dá a
legítima, tampouco se dará a ilegítima, nem o desejo da mulher alheia e
relação com ela, que é o chamado adultério. Também não se refere às
almas a proibição do roubo e da avareza, porque elas não necessitam
dessas coisas, cuja necessidade natural costuma ser causa dos roubos e
rapinas naqueles que as praticam, como o ouro, a prata, um animal ou
qualquer outra coisa apropriada para alimento, vestuário e uso. Com
efeito, tudo o que os necessitados podem cobiçar como útil, é inútil
para uma natureza imortal.
Deixemos, porém, a enumeração mais
completa sobre tudo isso para aqueles que queiram olhar com mais cuidado
cada ponto em particular ou lutar com mais afinco contra os
adversários. Para nós bastam os argumentos que acabamos de expor e os
que, de acordo com estes, demonstram a ressurreição. Não é oportuno que
insistamos mais sobre eles, pois não nos propusemos como meta não omitir
nada do que se poderia dizer, mas apenas expor sumariamente aos
assistentes o que se deve pensar sobre a ressurreição e acomodar à
capacidade dos ouvintes os argumentos que conduzem a isso.
4ª prova: o fim último do homem a felicidade, não é atingida nesta vida
24.
Tendo já examinado em certa medida os argumentos propostos, resta-nos
considerar a razão que se refere ao fim do homem, a qual já aparece
clara pelo que dissemos e só necessita de exame e consideração aqui para
não parecer que deixamos de mencionar alguma coisa do que foi proposto e
prejudicamos a hipótese e a divisão que estabelecemos no começo.
Portanto, por essa razão e em atenção ao que se poderia objetar sobre
isso, haveria apenas que acrescentar uma observação, isto é, que tanto
os seres de constituição natural, como os que se produzem pela arte,
devem cada um ter o seu próprio fim, coisa que a inteligência universal
nos ensina e aquilo que temos diante de nossos olhos nos testemunha. Com
efeito, não vemos que um é o fim a que se propõem os lavradores e outro
os médicos? Também não é um o fim das coisas que nascem da terra e
outro dos animais que se criam sobre ela e se propagam por uma espécie
de encadeamento natural? Se isso é claro e absolutamente necessário que o
fim, segundo a natureza, siga as faculdades naturais ou técnicas e suas
operações, também é absolutamente necessário que o fim do homem, devido
à sua natureza peculiar, também se afaste do comum dos outros. De fato,
não é lícito supor que deverão ter o mesmo fim os seres carentes de
juízo racional e os que agem conforme a lei e a razão neles ingênitas e
usam de prudente vida e justiça. Portanto, nem aquela famosa
insensibilidade à dor pode ser fim próprio do homem, pois participariam
dela até os que não sentem absolutamente nada, tampouco o gozo daquilo
que alimenta ou deleita o corpo com toda a multidão dos prazeres, a não
ser que demos a primazia à vida dos animais e sintamos que a virtude não
tem nenhum fim. Com efeito, penso que este é o fim próprio dos animais e
rebanhos, não, porém, de homens dotados de alma imortal e juízo
racional.
25. De outro lado, também não pode ser fim do homem a
felicidade da alma separada do corpo, pois não se deve considerar a vida
ou o fim de um dos elementos de que o homem se compõe, mas a vida e o
fim do composto dos dois. Com efeito, assim é todo homem ao qual cabe
como sorte a presente existência, e a vida deste é a que deve ter algum
fim peculiar. Ora, se o fim deve ser o composto, não é possível
encontrar esse fim nem enquanto os homens vivem, pelas causas muitas
vezes alegadas, nem a alma separada do corpo, uma vez que tal homem não
pode sequer subsistir, pois logo o corpo se desfaz e se dispersa
totalmente, embora a alma permaneça por si mesma. Portanto, é
absolutamente necessário que o fim do homem apareça em outra
constituição do composto e do próprio animal. E se isso acontece
necessariamente, é absolutamente necessário que se dê a ressurreição dos
corpos mortos e até totalmente dissolvidos e que novamente se
reconstituam os mesmos homens, porque a lei da natureza não estabelece
simplesmente o fim de quaisquer homens, mas dos mesmos homens que
viveram a vida anterior. Mas não é possível reconstituir os mesmos
homens, se não se devolvem os mesmos corpos às mesmas almas, e não é
possível que as mesmas almas recebam de outro modo os mesmos corpos, a
não ser pela ressurreição. De fato, depois que esta se houver realizado,
segue-se também o fim conveniente à natureza humana; e não erraria o
fim da vida inteligente e do juízo racional, quem o pusesse em conviver
eternamente com aquilo a que a razão natural se adapta primariamente e
acima de tudo: a contemplação do Doador e a glória e júbilo daquilo que
foi por ele decretado, por mais que a maior parte dos homens, aderidos
com mais paixão e veemência às coisas daqui de baixo, passem a vida sem
alcançar essa meta. Com efeito, o destino comum não se invalida por
causa da multidão dos que não conseguem o seu próprio fim, pois o exame
dessas questões é peculiar a cada um, e a cada um é medido o prêmio ou o
castigo por sua vida boa ou má.
Fonte: Padres Apostólicos, Volume I, Coleção Patrística. Ed. Paulus
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin
Tradução: Ivo Storniolo, Euclides M. Balancin
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