Dom Pavol Hnilica |
A política de colaboração com a China comunista do Papa Francisco tem seus antecedentes diretos na Ostpolitik de João XXIII e Paulo VI. Mas ontem, como hoje, a Ostpolitikteve fortes opositores, que merecem ser lembrados. Um deles foi o bispo eslovaco Dom Pavol Hnilica (1921-2006) [foto ao lado],
que desejo recordar baseando-me nas minhas memórias pessoais e num
estudo cuidadoso dedicado a sua figura que será publicado em breve pela
professora Emilia Hrabovec, a quem expresso a minha gratidão por
permitir-me consultar e citar seu manuscrito.
Em
dezembro de 1951, quando Dom Hnilica foi forçado a abandonar seu país e
ir para Roma, Pio XII aprovou totalmente o modo de proceder da Igreja
na Eslováquia, confirmando a validade das sagrações clandestinas e
rejeitando qualquer conluio com o regime comunista. Na Radiomensagem de
23 de dezembro de 1956, o Papa afirmou: “Com profundo desgosto
devemos a tal propósito lamentar o apoio prestado por alguns católicos,
eclesiásticos e leigos, à tática do desbotamento [da verdade], para
obter um efeito não desejado nem por eles mesmos. Como podem ainda não
perceber que essa é a finalidade de todo aquele agitar-se insincero, sob
o nome de ‘colóquios’ e ‘encontros’? Com que finalidade, aliás,
discutir se nem sequer há uma linguagem comum, ou como é possível
encontrar-se se os caminhos divergem, isto é, se uma das partes
obstinadamente rejeita e nega os valores absolutos coletivos, tornando
impossível qualquer ‘coexistência na verdade’?”.
Após
a morte de Pio XII, ocorrida em 9 de outubro de 1958, o clima mudou e
Mons. Agostino Casaroli tornou-se o principal protagonista da política
oriental da Santa Sé, promovida por João XXIII, mas implementada
sobretudo por Paulo VI. Naqueles anos, Dom Hnilica teve a oportunidade
de encontrar-se diversas vezes com o Papa Montini e apresentar-lhe
vários memorandos nos quais o colocava de sobreaviso contra as ilusões,
advertindo-o de que os regimes comunistas não renunciaram ao seu plano
de liquidar a Igreja e aceitavam o diálogo com a Santa Sé unicamente
para obter vantagens unilaterais e recuperar a credibilidade dentro e
fora de seus países, sem cessar sua política antirreligiosa. “Hnilica— escreve Emilia Hrabovec — convidava
a não se contentar com concessões cosméticas, a exigir a libertação e
reabilitação de todos os bispos, religiosos e fiéis ainda na prisão e o
reconhecimento efetivo da liberdade de professar a fé e a não consentir
jamais no afastamento dos bispos impedidos, o que seria ‘a pior
humilhação para suas sagradas pessoas e, nelas, para toda a Igreja
mártir, diante dos traidores, dos inimigos e de toda a opinião pública’. O
bispo exilado temia que as negociações, conduzidas à custa da parte
mais heróica do episcopado, e um acordo fechado sem concessões
relevantes suscitasse nos católicos — sobretudo nos melhores, naqueles
que resistiam à opressão com força e lealdade — uma desorientação e a
sensação de terem sido abandonados até pela autoridade eclesiástica”.
30Enquanto
se desenrolava o Concílio Vaticano II, Paulo VI tornou público, em 13
de maio de 1964, o status de bispo de Mons. Hnilica, até então mantido
em segredo. O novo status permitiu ao bispo eslovaco participar da
última sessão do Concílio, onde interveio juntando-se aos Padres
Conciliares que exigiam a condenação do comunismo. Dom Hnilica afirmou
na aula conciliar que aquilo que o esquema de Gaudium et Spes dizia sobre o ateísmo era tão pouco “que dizê-lo era o mesmo que não dizer nada”. Acrescentou que uma grande parte da Igreja sofre “sob
a opressão do ateísmo militante, mas isso não pode ser deduzido do
esquema, que também quer falar da Igreja no mundo moderno!”. “A história nos acusará justamente de pusilanimidade ou de cegueira por esse silêncio”,
disse o orador, lembrando que não falava em abstrato, pois esteve em um
campo de concentração comunista e de trabalho forçado com 700
sacerdotes e religiosos. “Falo pela minha experiência direta e pela
dos sacerdotes e religiosos que conheci na prisão e com os quais sofri
os fardos e os perigos da Igreja” (AS, IV / 2, pp. 629-631).
Naquela época, Dom Hnilica teve inúmeras conversas com Paulo VI, para tentar em vão dissuadi-lo da Ostpolitik.
Em fevereiro de 1965 foi libertado e chegou a Roma o arcebispo de
Praga, Dom Josef Beran (1888-1969), que Paulo VI criou cardeal. Dom
Hnilica advertiu o Papa de que o suposto sucesso da diplomacia vaticana
tinha sido pelo contrário um sucesso do regime comunista, o qual, com o
exílio do arcebispo, havia se livrado de um problema internacional cada
vez mais desagradável, sem ter nada que temer do novo administrador de
Praga, considerado um membro tímido do Movimento do Clero pela Paz.
Emilia
Hrabovec lembra que, se em 1964 se tinha conseguido assinar um acordo
com a Hungria, ao qual sucederia, em 1966, um acordo com a Iugoslávia,
bem como iniciado uma diplomacia de encontros de alto nível com as
cúpulas soviéticas, no entanto as conversações com a Checoslováquia
apresentavam-se mais difíceis, e seus resultados mais escassos do que
nunca. “Os representantes checoslovacos — recorda a historiadora — sentaram-se
à mesa diplomática com instruções explícitas de ganhar tempo, recusar
qualquer concessão e aceitar somente aquilo que lhes prometia vantagens
unilaterais e danos à outra parte, de modo que as negociações se
limitavam muitas vezes à formulação dos respectivos pontos de vista
pouco conciliáveis e à promessa de querer prosseguir com as reuniões”.
O cardeal Korec, após a sua libertação dos cárceres do comunismo, lembrou por sua vez: “Nossa
esperança era a Igreja clandestina, que colaborava silenciosamente com
os sacerdotes nas paróquias e formava jovens prontos para o sacrifício:
professores, engenheiros, médicos dispostos a se tornarem sacerdotes.
Essas pessoas trabalhavam silenciosamente entre os jovens e as famílias,
publicavam revistas e livros secretamente. Na realidade, a Ostpolitik
vendeu essa nossa atividade em troca das promessas vagas e incertas dos
comunistas. A Igreja clandestina era a nossa grande esperança. E, em vez
disso, eles cortaram suas veias, desgostaram milhares de rapazes e
moças, pais e mães, e muitos sacerdotes clandestinos prontos a se
sacrificarem. […] Para nós foi verdadeiramente uma catástrofe, quase
como se nos tivessem abandonado, varrido. Eu obedeci. Mas foi a maior
dor da minha vida. Desse jeito, os comunistas lançaram mão da pastoral
pública da Igreja” (Entrevista com Il Giornale, 28 de julho de 2000).
Enquanto
isso, sob uma forte pressão do governo de Praga, a Secretaria de Estado
começou a conter as atividades públicas do bispo eslovaco, chegando até
a convidá-lo, em 1971, a sair de Roma e mudar-se para o exterior. Como
lembra a Sra. Hrabovec, o bispo foi atingido pela acusação de ter-se
tornado obstáculo às negociações e, implicitamente, motivo da
persistente perseguição à Igreja e de agir contra a vontade do Papa, o
que o levou a declarar-se pronto para deixar Roma, desde que o Papa ou o
Geral da Companhia de Jesus lhe ordenassem explicitamente. Não tendo
recebido tal ordem de qualquer dessas duas autoridades, Dom Hnilica
permaneceu na Cidade Eterna e continuou suas atividades, embora os
contatos com a Secretaria de Estado tenham cessado completamente.
Os anos da Ostpolitik foram também os do compromisso histórico [entre
a Democria Cristã e o Partido Comunista Italiano]. Quando parecia a
muitos que o sistema de perseguição comunista era um capítulo fechado e o
PCI celebrava vitórias eleitorais desconhecidas anteriormente, “o
incansável bispo tentou persuadir seu público de que os regimes
comunistas apenas mudavam suas táticas, escolhendo métodos mais
refinados, sem dar um passo atrás no seu programa antirreligioso e
anti-humano, e que a Igreja era obrigada em consciência a não se
conformar com o sistema comunista e com a sua ordem jurídica, mas a
continuar denunciando seus crimes e o perigo que representava“.
Como lembra ainda Emilia Hrabovec, “com
a radicalidade evangélica das pessoas profundamente religiosas, Hnilica
estava convencido de que na época da ‘decisão final pela Verdade ou
contra a Verdade, por Deus ou contra Deus’, a neutralidade era
impossível, e que quem não se colocasse do lado da Verdade tornava-se
cúmplice da Mentira e corresponsável pela propagação
do Mal. Nesse espírito, Hnilica criticava duramente a política
ocidental de distensão e de compromissos nas negociações com os regimes
comunistas, a fraqueza e a indiferença dos cristãos ocidentais, muito
concentrados em si mesmos, muito propensos a manter seu bem-estar
material e muito pouco dispostos a interessar-se e a empenhar-se, seja
pelos confrades detrás da Cortina de Ferro, seja pela defesa de seus
valores cristãos. Referindo-se à conhecida expressão de Pio XI na década
de 1930, Hnilica denunciava o silêncio da política, da mídia e da
opinião pública, mesmo a católica, diante do regime comunista e das
perseguições dos cristãos de além Cortina de Ferro como ‘a conspiração
do silêncio’, observando que enquanto antes era costume falar da ‘Igreja
do silêncio’ além da Cortina de Ferro, agora seria mais apropriado usar
esse nome para definir a Igreja (as Igrejas) do Ocidente”.
Dom
Pavol Hnilica era um homem profundamente bom, mas às vezes ingênuo.
Quando eu o conheci, em 1976, ele estava sempre acompanhado por seu
secretário, Witold Laskowski, um aristocrata polonês, poliglota de
maneiras impecáveis, que nos traços do rosto e na figura maciça se
assemelhava de modo surpreendente a Winston Churchill. Laskowski tinha
emigrado para a Itália na década de 1920, fez parte do exército do
general Anders e dedicara sua vida à luta contra o comunismo. Ele era
uma espécie de “anjo da guarda” de Dom Hnilica, porque o ajudava a
frustrar as manobras dos serviços secretos comunistas que tinham se
infiltrado em seu grupo servindo-se não só de uma densa rede de agentes,
mas também da ajuda do Partido Comunista Italiano. Se Laskowski
estivesse vivo, Dom Hnilica não teria sido envolvido em um caso
esdrúxulo na década de noventa, quando foi persuadido pelo maçom Flavio
Carboni a dar dinheiro para coletar documentos que pudessem provar a
inocência do Vaticano na falência do Banco Ambrosiano.
Dom
Hnilica era um fervoroso devoto de Nossa Senhora de Fátima, convencido
de que essa aparição representava uma das mais fortes intervenções de
Deus na história humana desde a época dos Apóstolos. Em todos os
contatos que teve com os Pontífices, ele sempre insistiu para que fosse
feita a consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, pedida por
Nossa Senhora em 13 de julho de 1917. João Paulo II, após ter sido
gravemente ferido em 13 de maio de 1981, atribuiu a Nossa Senhora de
Fátima uma proteção milagrosa, sendo então instado a aprofundar a
mensagem. Por isso, enquanto convalescia na Policlínica, ele pediu a Dom
Hnilica uma documentação completa sobre Fátima. E em 13 de maio de 1982
foi em peregrinação a Fátima, onde confiou e consagrou a Nossa Senhora “aqueles homens e aquelas nações, que desta entrega e desta consagração particularmente têm necessidade”.
No dia seguinte, acompanhada pelo padre Luigi Bianchi e por Wanda
Poltawska, a Irmã Lúcia conheceu Dom Hnilica, e quando lhe perguntaram
se considerava válida a consagração do Papa, a vidente acenou com um
dedo e a seguir explicou-lhes que faltava a consagração explícita da
Rússia.
Uma segunda consagração foi
feita por João Paulo II em 25 de março de 1984 na Praça de São Pedro, na
presença da imagem da Virgem, especialmente vinda de Portugal. Tampouco
nessa ocasião a Rússia foi explicitamente mencionada, havendo apenas
uma referência “[a]os povos dos quais esperais a nossa consagração e a nossa entrega”.
O Papa escreveu aos bispos do mundo pedindo que se juntassem a ele.
Entre os poucos que corresponderam ao apelo estava o arcebispo Pavol
Hnilica, que da Índia, onde se encontrava, conseguiu obter um visto de
turista para a Rússia e, no mesmo dia 25 de março, dentro do Kremlin,
escondido atrás das grandes folhas do Pravda, pronunciou as palavras de consagração ao Imaculado Coração de Maria.
Em
12 e 13 de maio de 2000 eu estava com Dom Hnilica em Fátima, por
ocasião da jornada de João Paulo II para a beatificação dos pastores
Jacinta e Francisco. Não compartilhei de seu otimismo excessivo pelo
pontificado de João Paulo II, mas a memória que tenho dele, após
acompanhá-lo durante vinte e cinco anos, é de um homem de grande fé que
hoje estaria ao lado de quem luta contra aquilo que o cardeal Zen define
como a Igreja sendo posta à venda.
(*) Fonte: “Corrispondenza romana”, 21-2-2017. Matéria traduzida do original italiano por Hélio Dias Viana.
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