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Por Maria Clara Bingemer
Por ser tão grave, não pode ser tratado com medidas paliativas. Há que reconhecer o erro, pedir perdão e procurar reconstruir integralmente o que foi destruído.
Juan Carlos Cruz (esquerda) fala em entrevista coletiva ao lado de outras duas vítimas de abuso por padres em Roma, no começo de maio (Reuters/Stefano Rellandini) |
A Igreja do Chile vive tensos momentos. Depois de seguidas denúncias
de abusos sexuais por parte de sacerdotes e o encobrimento das mesmas
por membros da hierarquia católica, o Papa Francisco foi procurado pelas
vítimas. Em um primeiro momento não aceitou as denúncias por
considerá-las falsas. Uma vez convencido por seus emissários que
investigaram os fatos in loco, constatou que havia sido mal informado, pediu perdão às vítimas e convocou todos os bispos do país a Roma.
A reunião entre os bispos e o Papa foi dura, dolorosa, mas franca e
transparente. Ao final da mesma, a Igreja e o mundo se surpreenderam ao
saber que todos os bispos se colocaram à disposição do pontífice para
que atuasse com toda liberdade quanto ao futuro deles. Trata-se de algo
inusitado em termos eclesiais. E por isso não se sabe o desfecho que
terá.
Quem permanecerá? Quem sairá? Quem será confirmado na missão que
desempenha agora? Quem deverá deixá-la? Sobre isso nada se sabe.
Sabe-se, porém, que neste tema tão tenebroso da pedofilia na Igreja pela
primeira vez as feridas são expostas sem complacência ou meias medidas.
O processo poderá ser muito difícil, mas existe uma real oportunidade
de sanar o futuro.
Desde o momento em que constatou claramente que as vítimas diziam a
verdade com suas denúncias, Francisco atuou de forma transparente. Ao
reunir-se por três dias com os bispos chilenos, entregou-lhes um
documento de dez páginas. Nele, não poupava expressões e chamava as
coisas pelo nome: negligência, omissão, erros graves, vergonha. Os
bispos refletiram sobre o que lhes era dito e chegaram conjuntamente à
posição de deixar o Papa decidir e agir com toda liberdade
Não é de hoje que o fantasma da pedofilia assombra a Igreja Católica.
Todos recordamos o drama que Bento XVI teve que enfrentar logo no
início de seu pontificado. O caso do Chile soma-se a essa lamentável
lista de escândalos que fragiliza o tecido eclesial e a credibilidade da
instituição. Por ser tão grave, não pode ser tratado com medidas
paliativas. Há que reconhecer o erro, pedir perdão e procurar
reconstruir integralmente o que foi destruído.
O gesto dos bispos é admirável em sua radicalidade. Agradecem às
vítimas por haver, com suas denúncias, permitido que a verdade venha à
luz. Elogiam sua perseverança e coragem ao expor publicamente suas
feridas e persistir em tentar ser ouvidos em meio às incompreensões e
ataques inclusive da comunidade eclesial. Pedem perdão à Igreja como um
todo e particularmente à do seu país. Agradecem ao Papa sua escuta
paternal, sua correção fraterna e o honesto diálogo que com eles
manteve.
Admirável igualmente foi a atitude de Francisco. Se em um primeiro
momento não aceitou as denúncias por considerá-las falsas, não deixou de
mandar apurar e investigar os fatos. E uma vez constatada a pertinência
do que diziam as vítimas, teve a coragem de pedir perdão e mudar sua
decisão.
Por mais chocante que pareça todo o acontecido, na verdade, o decurso
de todo o processo deixa perceber claramente a força do Espírito que
conduz à verdade e é verdade em si mesmo. Já diz a Escritura que o outro
nome do demônio é Pai da mentira. Tudo que é falso, camuflado,
encoberto não vai na direção da justiça, da paz e do amor. Entra, pois,
em rota de colisão com a Boa Nova que o Evangelho traz e não sintoniza
com o projeto do Reino de Deus.
É preciso, pois, romper. E foi essa ruptura – dura e dolorosa – mas
poderosamente sanadora que aconteceu. Aconteceu no confronto do qual
foram personagens as vítimas dos abusos, os bispos chilenos e o Papa.
Aconteceu na percepção de Francisco de onde estava a verdade que urgia
que se corrigissem rumos e tomassem medidas enérgicas. Aconteceu na
abertura sincera dos bispos que renunciaram a controlar seu destino e o
puseram em mãos do Papa.
De fato, com tudo que tem de sombrio, trata-se de um evento luminoso.
Finalmente está para sempre banida a secreta convicção de que o
clericalismo que ainda habita a Igreja protege os abusadores, confiantes
no silêncio das vítimas. É evidente que estas não mais estão dispostas a
calar seu sofrimento e o dano que lhes foi feito. Isso permite esperar
para as novas gerações um clero mais responsável e adulto. Igualmente um
episcopado mais cuidadoso na formação de seus seminaristas e mais
vigilante sobre o que se passa em suas comunidades.
Fica claro igualmente que quando se busca com sinceridade o caminho
do bem, o medo é vencido e emerge a honesta disposição de reparar os
erros cometidos. Mesmo que não seja fácil, que isso implique viver
momentos de incerteza e de insegurança, confiando apenas na misericórdia
divina.
O que sucede neste momento com a Igreja do Chile permite esperar
tempos melhores com respeito às relações intra eclesiais. A pedofilia
acontece em todos os setores da sociedade. Não é prerrogativa da Igreja
Católica tê-la em suas fileiras. No entanto, talvez o modo como essa
mesma Igreja, sob a direção do Papa Francisco, está administrando algo
tão conflitivo possa ser um testemunho que ajude a sociedade como um
todo ao deparar-se com o mesmo problema.
Se como disse Jesus Cristo, só a verdade liberta, parece que há
reais motivos para celebrar o processo libertador que hoje vive a Igreja
do Chile.
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