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Em português e espanhol dizemos 'não nos deixeis cair em tentação', mas o grego original é 'não nos introduzas na tentação'. Porquê? Foi o que tentamos descobrir.
As primeiras versões do Pai-Nosso em português e em espanhol datam do Século XIV e XV. |
O Papa Francisco disse, há poucos
meses, numa entrevista à televisão da Conferência Episcopal italiana,
que não gosta da tradução do Pai-Nosso naquela língua, nomeadamente no
que diz respeito à sexta-petição que, em italiano, se diz “E non
c’indurre in tentazione”, que em português seria “e não nos introduzas
na tentação”.
Francisco explicou que quem nos introduz ou conduz à
tentação é Satanás, e não Deus, e elogiou a igreja francesa que, em
2017, adotou a formulação “não nos deixes cair em tentação”.
O
Papa não mencionou, contudo, que essa é já a versão que é rezada por
portugueses e por espanhóis há séculos e que, sendo argentino, terá sido
a versão que aprendeu em criança.
Mas olhando para as antigas
línguas da cristandade, a verdade é que portugueses e espanhóis são uma
curiosa exceção nesta matéria. Excluindo as línguas das regiões
autônomas de Espanha, naturalmente influenciadas pelo castelhano, a
única outra língua europeia em que se diz “não nos deixeis cair em
tentação” é um dos dialetos de sardo, falado na Sardenha, mas também aí o
mais natural é ter sido por influência castelhana, uma vez que a ilha
foi dominada por Espanha durante centenas de anos.
A exceção teria
ficado restrita ao cantinho ibérico da Europa se não fosse o fato de
Espanha e Portugal terem sido os principais responsáveis por levar o
Cristianismo a grande parte do mundo, incluindo muitas partes da Ásia,
África e toda a América do Sul.
Com a fé, viajou também a versão
ibérica do Pai-Nosso, que agora persiste também em japonês, em tétum,
falado em Timor Leste, em concanim e indo-português, na Índia, e em
tagalog, a língua corrente das Filipinas.
Apesar de ter elogiado
os franceses pela mudança, Francisco não chegou ao ponto de sugerir que
outros países seguissem o exemplo. Contudo, como seria de esperar, o
debate foi lançado e os bispos italianos vão discutir a alteração numa
reunião, em novembro. Os bispos alemães já discutiram o assunto, mas
optaram por não mudar.
Mas estará a tradução portuguesa correta?
Do ponto de vista literal, não está, como explica o biblista e frade
franciscano Bernardo Almeida: “Falando de modo simples, uma tradução
próxima do perfeito seria algo do género ‘não nos introduzas/não nos
faças entrar na provação’. Isto seria uma tradução literal. Temos aqui
um verbo, que é ‘eisphérō’ que significa ‘levar a’ ou ‘introduzir’. ‘Não
nos introduzas, não nos leves’”, explica.
Mas o frade explica,
logo de seguida, que “mesmo uma tradução literal é sempre uma
aproximação. Importa não esquecer que a nossa comunicação não é
propriamente o que está escrito, mas o que significa o que está escrito.
Por isso, muitas vezes, temos a mesma expressão ou a mesma palavra, mas
com significados diferentes.”
Nesse sentido, o biblista não vê
razão para muita polêmica nem para preocupações. “Não me parece, de
maneira nenhuma, que estejamos a rezar de maneiras diferentes, do ponto
de vista do significado, porque o significado é muito claro. Deus é o
nosso supremo bem, o nosso Pai, tudo concorre para nosso bem”, diz.
Em busca da origem da queda
Mas de onde vem a tradução ibérica que, apesar de não ser literalmente a mais correta, é a preferida pelo Papa Francisco?
As
primeiras versões do Pai-Nosso em português e em espanhol datam do
Século XIV e XV e são, na maior parte dos casos, comentários ou
paráfrases à oração. No caso português, existe um catecismo do Século
XIV onde se pode ler “E por esso dizemos: et ne nos inducas in
tentationem, que quer dizer, guarda-nos, Senhor, de consentir na
tentação”.
Ao longo dos séculos seguintes, a regra é a
inexistência de regras. A variedade de traduções diferentes deixa muito
claro que não existe um texto central que sirva de referência para os
autores. A norma para a recitação tanto litúrgica como pessoal é o latim
e cada um, quando tem de traduzir, fá-lo à sua maneira, desde “não nos
derrubes em tentação”, até “não nos tragas em tentação”, passando por
“não permitas que sejamos vencidos em tentação”.
O primeiro texto
em que a Renascença conseguiu encontrar um exemplo de “não nos deixeis
cair” é no “Livro de Horas” em português, publicado em Paris em 1501,
mas mesmo nesse volume aparece também uma versão com “não nos tragas em
tentação”.
E depois dessa publicação a variedade mantém-se, embora
se comece a ver com maior frequência aquela que se tornaria a frase
definitiva em português e em espanhol, incluindo em Gil Vicente, no
“Auto da Cananeia”, escrito em 1534, que num diálogo sobre o Pai-Nosso
escreve: “E com gemente tenção, lhe haveis, filhos, de pedir que vos não
deixe cair, em nenhuma tentação, que vos possa destruir”.
Ao que
tudo indica, o uso do “não nos deixeis cair” foi simplesmente
tornando-se rotineiro, mas não será de excluir a possibilidade de esta
ser uma variante do já referido “não nos derrubes”. Se é verdade que as
expressões têm sentidos diferentes, uma vez que este obriga a que haja
alguém que comete o ato de derrubar, a consequência em ambas as
situações é uma queda.
Em Portugal há duas grandes referências no
que diz respeito à tradução da Bíblia para o vernáculo. João Ferreira de
Almeida, protestante, fá-lo em 1681 e na tradução do Pai-Nosso usa o
“Não nos metas”, mas quando António Pereira de Figueiredo apresenta a
sua tradução em 1778 já utiliza o “não nos deixes cair”.
Outro
dado curioso é a total ausência de investigação acadêmica sobre este
assunto até hoje. Aliás, os vários especialistas com quem a Rádio
Renascença falou foram unânimes em dizer que não só não sabiam explicar a
discrepância entre a tradução portuguesa do Pai-Nosso e o original
grego, como nunca tinham pensado no assunto. Entre estes as reações
variavam.
Se por um lado um reconhecido biblista informou a
Renascença de que não estava interessado em colaborar porque “a questão
não é relevante”, logo de seguida o tradutor de línguas clássicas
Frederico Lourenço, que está fazendo neste momento uma nova tradução da
Bíblia a partir das línguas originais, considerou a investigação da
Renascença “extremamente interessante”, embora lamentasse não poder
ajudar a explicar o fenômeno.
A versão usada por Frederico
Lourenço é também diferente do que se costuma rezar em português: “não
nos leves para sermos postos à prova”.
O Pai-Nosso é a única
oração ensinada diretamente por Cristo aos seus discípulos, daí ter uma
enorme importância para os cristãos. Na Bíblia existem duas versões, uma
no Evangelho de Mateus e outra em São Marcos. As versões apresentam
pequenas diferenças mas curiosamente nesta sexta petição coincidem
totalmente.
Jesus falava aramaico com os seus discípulos, mas os
Evangelhos foram escritos em grego, pelo que a língua que serve de base
às traduções existentes hoje em dia é o grego bíblico.
Rádio Renascença
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