"Os pastores com pele de cordeiro se revelaram verdadeiros lobos,
atacando numerosos membros do 'rebanho', submetendo de forma particular
as pessoas mais vulneráveis, como meninas e meninos, adolescentes,
jovens e dependentes. A retórica do “chamado ou vocação, em lugar de um
serviço ao povo de Deus, foi o mecanismo utilizado para exercer um poder
efetivo e simbólico perverso e corrosivo", escreve Alfredo J. Gonçalves, padre carlista, assessor das Pastorais Sociais.
Eis o artigo.
A Igreja Católica está universalmente ferida. Um
vírus a corrói a partir das próprias entranhas e desde longas décadas.
De um lado, emergem e clamam por justiça as centenas e milhares de vítimas de abusos
por parte de tantos pastores que, em lugar de cuidar e garantir a
proteção do “rebanho”, usaram as pessoas para satisfazer seus próprios
instintos. De outro lado, alguns de entre os próprios pastores tratam de
instrumentalizar tais fatos, misturando-os com boatos, contra o Pastor
Supremo, o Papa Francisco. O pecado e o crime associa-se à difamação com fins nada evangélicos. Aliados aos expoentes da extrema direita,
os pombos se transformam em corvos, para bloquear toda e qualquer
mudança de rumo na Igreja. Trazem à tona o saudosismo do luxo ostensivo,
do liturgismo formal, da solenidade principesca, da idumentária
imponete, do dogma fossilizado e doutrinário... O saudosismo de uma
Igreja medieval com poder e influência na sociedade.
O que está em jogo? Antes de mais nada um fato real e incontestável:
milhares de pessoas, no interior das próprias estruturas eclesiais,
sofreram abusos inaceitáveis. Os pastores com pele de cordeiro se
revelaram verdadeiros lobos, atacando numerosos membros do “rebanho”,
submetendo de forma particular as pessoas mais vulneráveis, como meninas
e meninos, adolescentes, jovens e dependentes. A retórica do “chamado
ou vocação, em lugar de um serviço ao povo de Deus, foi o mecanismo
utilizado para exercer um poder efetivo e simbólico perverso e
corrosivo. Feridas e cicatrizes dessa tirania em nome de Deus são
denunciadas em várias partes do mundo. Tudo isso dentro de um corporativismo clerical (ou clericalismo),
em que os membros tentam proteger-se reciprocamente. Daí a fusão
nefasta e altamente danosa entre silêncio, cumplicidade, imunidade,
influência e carreirismo. Mutatis mutandis, trata-se dos mesmos ingredientes que hoje fazem avançar os representantes, os grupos e os partidos de extrema direita
em diferentes partes do globo. O poder em nome de Deus se une ao poder
em nome do povo – para fechar as portas, as fronteiras e as leis aos
“sem vez e sem voz”. Como o Papa Francisco vem fazendo com insistência, as vítimas de tantos abusos
merecem um profundo e sincero pedido de perdão por que de toda a Igreja
que, como repete o Pontífice, “não foi capaz de agir com pronta decisão
para defender o “rebanho” dos lobos que o devoravam.
Mas está em jogo, além disso, um ataque frontal ao modo como o atual Pontífice tem procurado conduzir a “barca de Pedro”. Os conservadores saudosistas e retrógrados não suportam a presença de um Papa
que, em lugar de pompas, privilégios e um toque de majestade, retorna à
simplicidade límpida e transparente da fonte evangélica, onde a água é
mais cristalina. Melhor dizendo, não suportam as páginas contundentes
dos relatos bíblicos, notadamente os livros proféticos, onde o Deus de
Israel , no Antigo Testamento, privilegia com clareza “o pobre, a viúva e o estrangeiro”. E o Pai de Jesus Cristo, no Novo Testamento,
mostra predileção particular pelos “pobres, oprimidos, prisioneiros,
indefesos, prostitutas, excluídos, pecadores” – como o Bom Pastor que
deixa as noventa e nove ovelhas para ir ao encontro daquela que se
perdeu.
Os que os incomoda é justamente a retomada da prática de Jesus: beber do Evangelho. Vem à memória o episódio do Grande Inquisidor na obra do escritor russo Dostoiévski Os Irmãos Karamazov. O retorno de Jesus perturba o status quo,
interpela os estabelecidos, comporta mudança de atitude, exige
conversão. O retorno à denúncia corajosa e profética diante das
injustiças e das assimetrias socioeconômicas, de uma “economia que
mata”, bem como do modo como são rechaçados os migrantes e refugiados
que, em fuga da própria terra natal, buscam desesperadamente uma nova
pátria. Da mesma forma que a corte e o palácio, a cúria e a hierarquia
eclesial sempre temeram a voz dos profetas. Pior ainda quando se juntam e
se fundem os dois poderes, temporal e espiritual. Não raro, juntos ou
separadamente, perseguiram, fizeram calar e mataram os opositores.
Um grupo expressivo, no interior da própria hierarquia da Igreja, não
quer saber de um verdadeiro pastor. Prefere um príncipe, com tudo o que
isso significa de requinte, sofisticação e custos. Enquanto o pastor,
pelo simples fato de sê-lo, questiona e interpela atitudes e privilégios
duvidosos, a presença do príncipe no pico da pirâmide justifica e
legitima o comportamento e os benesses dos demais príncipes que, na
cúria romana e nas cúrias de toda a Igreja, se agarram com unhas e
dentes a um modo de vida, ao mesmo tempo, longe do povo que chamam de
“rebanho”, e longe das pegadas de Jesus de Nazaré.
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