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Por Luís Corrêa Lima*
João Paulo II reconheceu valores e benefícios alcançados pelo comunismo, no qual existe preocupação com a comunidade, ao passo que o capitalismo é individualista.
Por muitas décadas na pregação católica, o comunismo era considerado algo satânico. (Paulo Cunha/Lusa) |
Há pouco mais de cem anos das aparições de Nossa Senhora de Fátima, em Portugal, foi lançado o filme Fátima, o último mistério,
do diretor Andrés Garrigó. Ele trata do conteúdo das aparições,
relacionando-o com os acontecimentos do século XX e do início do século
XXI. Segundo o diretor: “mostramos como a Virgem agiu nesses últimos 100
anos, mostrando exemplos impressionantes de como Ela mudou a história
do mundo”. Além disso, “este filme mostra que a atual grande crise da
família já se encontrava entre os ‘erros da Rússia’ que a Virgem de
Fátima profetizou e que se espalharia pelo mundo”1.
Quando
o papa João Paulo II mandou revelar o chamado terceiro segredo de
Fátima, o Vaticano publicou os textos da uma das videntes, a irmã Lúcia,
acompanhado de um estudo do então cardeal Ratzinger, expondo a doutrina
da Igreja sobre as aparições ou revelações particulares. A autoridade
das revelações privadas é diferente da revelação pública, contida na
Bíblia. Esta exige a nossa fé, enquanto que a revelação privada é um
auxílio para esta fé. A aprovação dada pela Igreja neste caso consiste
em que a respectiva mensagem não contem nada contrário à fé e os bons
costumes, que é lícito torná-la pública, e que os fiéis ficam
autorizados a dar-lhe de forma prudente a sua adesão. Tal mensagem pode
ser um auxílio válido para compreender e viver melhor o Evangelho no
presente. É uma ajuda oferecida cujo uso, porém, não é obrigatório2.
No
filme, há imagens de arquivo impressionantes de demolição de igrejas na
Rússia, após a Revolução de 1917. O comunismo é mostrado como o grande
mal diabólico do século XX. E a mensagem das aparições tem
interpretações bastante surpreendentes. O papa e os bispos deveriam
fazer o rito de consagração das nações ao Imaculado Coração de Maria,
incluindo especialmente a Rússia. Por não o terem feito, ocorreu a
Segunda Guerra Mundial. Em 1942, o papa Pio XII chegou a fazê-lo no
rádio, porém não em união com os outros bispos. Por isso, este ato não
foi suficiente para pôr fim à Guerra. Mas mesmo assim começaram desde
então as derrotas da Alemanha nazista no Leste europeu, que a levaram à
ruína. A consagração só ocorreu de forma satisfatória em 1984, feita por
João Paulo II. Depois disto é que aconteceram as grandes transformações
na União Soviética, como a Glasnost (transparência) e a Perestroika (reestruturação), que resultaram na queda do Muro de Berlin e no fim do comunismo.
É
fato que, por muitas décadas na pregação católica, o comunismo era
considerado algo satânico, “intrinsecamente perverso”, conforme a
expressão do papa Pio XI. Com este regime não se pode admitir qualquer
forma de colaboração da parte de quem deseje salvar a civilização cristã3.
Como consequência, tudo o que fosse contra o comunismo era no mínimo
menos ruim. Convém lembrar que em 1941 a Alemanha nazista invadiu a
União Soviética, com o apoio de voluntários vindos de outros países
movidos pelo fanatismo anticomunista, insuflados por pregadores
católicos. A maior mortandade ocorrida na 2ª Guerra foi a de russos: 20
milhões de mortos! Algo muito maior que o Holocausto. E tal mortandade
se deve àquela invasão. Felizmente o papa Pio XII nunca a apoiou.
A
União Soviética aderiu aos Aliados, unindo-se à Inglaterra e aos
Estados Unidos. Nesta época os católicos norte-americanos consultaram o
papa sobre se era lícito apoiar países comunistas, militar e
financeiramente, uma vez que o comunismo era intrinsecamente perverso. A
resposta de Pio XII foi: é preciso distinguir um povo de seu governo. O
povo russo poderia ser apoiado apesar de ter um governo comunista. Com
isto, os católicos norte-americanos puderam colaborar amplamente com a
União Soviética na guerra contra a Alemanha. O anticomunismo deste papa
tinha matizes e não chegava à cegueira do fanatismo.
O mesmo se
pode dizer de João Paulo II, que reconheceu valores e benefícios
alcançados pelo comunismo, no qual existe preocupação com a comunidade,
ao passo que o capitalismo é individualista. Para ele, os proponentes do
capitalismo em suas modalidades extremas ignoram coisas boas alcançadas
pelo comunismo, como os esforços para acabar com o desemprego e a
preocupação com os pobres. Recordando Leão XIII, Wojtyla reitera que
existem sementes de verdade também no programa socialista. E exorta:
“tais sementes não devem ser destruídas, nem se perderem no vento”4.
A
grande crise da família oriunda dos erros da Rússia, segundo o filme,
está na ideologia de gênero que defende o casamento gay. Mas este país
hoje, devidamente consagrado a Maria, rechaça o movimento LGBT e todas
as suas bandeiras. Ora, a Revolução Russa reprimiu duramente
homossexuais e transgênero no século XX, assim como tantos outros
países, comunistas ou não. Desconsiderar esta repressão e atribuir aos
comunistas o protagonismo do casamento gay, é ignorância histórica. A
defesa da dignidade e dos direitos da pessoa humana faz parte do
ensinamento da Igreja Católica. Este ensinamento inclui hoje a
descriminalização da homossexualidade em todo o mundo, a oposição a toda
forma de violência feita a pessoas homossexuais5,
a possibilidade de se reconhecer direitos decorrentes da convivência
entre pessoas do mesmo sexo, mesmo não equiparando esta união ao
matrimônio6; e o respeito pela autonomia da
consciência, como tão bem expressou o papa Francisco: “se uma pessoa é
gay, busca o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para a julgar”?7. Atribuir a Maria, mãe de Jesus, a hostilidade atual da Rússia aos LGBT contraria o Evangelho e o ensinamento da Igreja.
A
adesão a revelações privadas, mesmo não sendo obrigatória, exige sempre
prudência. As interpretações do filme sobre Fátima, culpando o papa e
os bispos católicos pela Segunda Guerra Mundial, são um delírio. O
comunismo inegavelmente tem males, que foram amplamente denunciados
pelos papas. Estes males, porém, não justificam toda forma de
anticomunismo, como a invasão da União Soviética pela Alemanha e o apoio
às ditaduras militares na América Latina, incluindo o Brasil. Tampouco
se justifica associar a Revolução Russa à luta dos LGBT por cidadania.
Os males do anticomunismo não devem ser subestimados, ainda mais nestes
tempos sombrios de polarização ideológica, em se quer relativizar
direitos humanos e valores democráticos. Demonizar regimes,
coletividades e pessoas são um retrocesso civilizatório. Só serve para
aumentar a barbárie.
1 – “Filme sobre aparições de Nossa Senhora de Fátima chega ao Brasil”. Disponível aqui.
2 – Congregação para a Doutrina da Fé. A mensagem de Fátima. Disponível aqui.
3 – Divinis redemptoris, n. 58. Disponível aqui.
4 – Entrevista concedida ao jornalista Jas Gawronski, 1993. Disponível aqui.
5 - Intervenção do representante da Santa Sé, 2008. Disponível aqui.
6 - Considerações sobre os projetos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais, 2003, n. 5 e 9. Disponível aqui.
7 - Encontro do santo padre com os jornalistas durante o vôo de regresso, 2013. Disponível aqui.
*Luís Corrêa Lima é sacerdote jesuíta e professor do
Departamento de Teologia da PUC-Rio. Trabalha com pesquisa sobre
diversidade sexual e de gênero, e no acompanhamento espiritual de
pessoas LGBT.
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