[pr.gonet]
Sermão de São João Maria Vianney, o cura D’Ars
(traduzido do francês por Gercione Lima (Toronto Canadá)
As tentações
são necessárias para que possamos perceber que não somos nada por nós mesmos.
Santo Agostinho diz-nos que deveríamos agradecer a Deus tanto pelos pecados dos
quais Ele nos preservou como pelos pecados que Ele por caridade nos perdoou.
Caso venhamos a cair nas ciladas do demônio, nós pensamos que somos capazes de
nos levantarmos novamente, confiando muito mais nas nossas promessas e
resoluções do que na força de Deus. Isto é uma grande verdade!
Quando nós não
temos nada do que nos envergonhar, quando todas as coisas estão correndo bem e
de acordo com os nossos desejos, nós ousamos pensar que nada poderia nos
derrubar. Nós esquecemos facilmente do nosso próprio nada e de nossa fraqueza
interior. Chegamos mesmo a protestar, que estamos prontos a morrer do que
permitirmos sermos vencidos. Nós vemos o esplêndido exemplo de São Pedro, que
disse ao Senhor que ainda que todos se escandalizassem Dele, ele não se
escandalizaria. Coitado! Para mostrar-lhe, como o homem entregue às suas
próprias forças, não é absolutamente nada, Deus fez uso, não de reis, príncipes
ou armas, mas sim da voz de uma simples empregada na noite da prisão de Jesus,
que confrontou Pedro com um monte de interrogações. E nesse momento Pedro
protesta dizendo que nem sequer conhecia o Senhor, e fez de contas que nem
sabia do que ela estava falando. Para assegurar aos presentes, de um modo ainda
mais veemente de que ele não conhecia Jesus, ele chegou mesmo a jurar! Ó
Senhor, o que não somos capazes de fazer quando nós estamos entregues a nós
mesmos!
Existem pessoas
que fazem questão de dizer o quanto eles invejam os santos que fizeram grandes
penitências! Eles chegam a acreditar que poderiam fazer o mesmo! Às vezes
quando lemos sobre a vida de alguns mártires, nós gostaríamos, nós pensamos,
estarmos prontos para sofrer tudo que eles sofreram por amor a Deus. Chegamos
ao ponto de pensar: é um momento de sofrimento muito curto para a recompensa
que vamos receber no Céu! Mas o que faz Deus para nos ensinar a nos
conhecermos, ou melhor, para reconhecermos que não somos absolutamente nada?
Eis o que Ele faz: Ele permite que o demônio se aproxime um pouquinho mais de
nós. E nesse momento, veja o que acontece com os cristãos que há apenas uns
minutos atrás invejavam aquele eremita que vive retirado no deserto,
alimentando-se somente de ervas e raízes e que fez a firme resolução de
submeter seu corpo a duras penitências. Coitado! Uma leve dor de cabeça, a
simples espetada de um espinho, o faz se condoer todo por si próprio! Não
importando o quão grande e forte ele possa aparentar. Ele se aborrece, reclama
da dor. A poucos momentos atrás, estava disposto a fazer todas as penitências
dos anacoretas (monges do deserto) e agora, o menor contratempo o faz cair no
desespero! Agora vejamos esse outro cristão, que parece querer entregar toda sua
vida a Deus. Que possui um ardor que tormento algum poderia apagar! Um pequeno
escândalo... uma palavra de calúnia... e até mesmo uma fria receptividade ou
pequena injustiça cometida contra ele... uma gentileza retribuída com
ingratidão... imediatamente desperta nele todos os sentimentos de ódio,
vingança e descontentamento, a ponto de frequentemente, ele desejar nunca mais
ver o seu próximo ou pelo menos tratá-lo de um modo frio, de forma a demonstrar
o quanto aquela pessoa o ofendeu. E quantas vezes, isso se torna o seu primeiro
pensamento ao acordar, assim como o pensamento que sempre o impede de dormir em
paz?
Coitado!
Meus caros
amigos, nós somos umas coisas pobres, e por isso deveríamos contar muito pouco
com nossas próprias resoluções.
Cuidado se você
não sofre tentações!
A quem o
demônio mais persegue? Talvez você ache que as pessoas que são mais tentadas
são indubitavelmente os beberrões, os provocadores de escândalos, as pessoas
imodestas e sem vergonha que deitam e rolam na sujeira e na miséria do pecado
mortal, que se enveredam por toda espécie de maus caminhos. Não, meu caro
irmão! Não são essas pessoas! Ao contrário, o demônio os deixa de lado, ou seja
ele se apoia nelas enquanto elas vivem, porque do contrário ele não teria tanto
tempo para fazer o mal. Isso porque, quanto mais tempo essas pessoas viverem,
mais seus maus exemplos arrastarão outras almas para o Inferno. De fato, se o
demônio tivesse perseguido esse velho companheiro obsceno e sem-vergonha, ele
teria encurtado a duração de sua vida em 15 ou 20 anos, de forma que ele não
teria destruído a virgindade daquela garota ali, seduzindo-a para a inominável
mira de suas indecências. Ele não teria novamente seduzido aquela mulher casada
e nem ensinado suas más lições àqueles rapazinhos, que talvez as continue a
praticar até o final de suas vidas. Se o demônio tivesse incitado a este ladrão
ali na frente, a roubar em tudo quanto é ocasião, ele teria ido acabar na forca
e não teria tempo para induzir seu vizinho a seguir seu mau exemplo. Se o demônio
tivesse encorajado esse beberrão ali, a se embebedar incessantemente com o
vinho, ele já teria morrido a muito tempo atrás nas suas libertinagens, e não
teria tempo de fazer com que outros seguissem seu mesmo caminho. Se o demônio
tivesse tirado a vida deste músico ali, ou daquele organizador de bailes, ou
daquele dono de cabaré, em algum tipo de tumulto ou assalto, ou em qualquer
outra ocasião, quantas almas não seriam poupadas da danação eterna! Santo
Agostinho nos ensina que o demônio não importuna muito essas pessoas; pelo
contrário, ele até as despreza e cospe sobre elas. Assim, você me perguntaria:
então quem são as pessoas mais tentadas? São estas meus caros amigos,
observem-nas atentamente. As pessoas mais tentadas são aquelas que estão prontas,
com a graça de Deus, a sacrificar tudo pela salvação de suas pobres almas, que
renunciam a todas as coisas que a maioria das pessoas buscam ansiosamente. E
não é um demônio só que as tenta, mas milhões de demônios procuram armar-lhes
ciladas. Uma vez, São Francisco de Assis e todos os seus religiosos estavam
reunidos numa área plana e aberta, onde eles tinham erguido algumas choupanas
de palha. Buscando um meio de fazer com que todos fizessem penitências
extraordinárias, São Francisco ordenou que fossem trazidos todos os
instrumentos de penitência, e seus religiosos os trouxeram aos feixes.
Nesse momento,
havia um jovem homem a quem Deus concedeu a graça de poder ver o seu Anjo da
Guarda. De um lado, ele viu todos esses bons religiosos que buscavam satisfazer
sua sede por mais penitências e do outro, o Anjo permitiu-lhe ver uma legião de
18 mil demônios, que estavam se reunindo em conselho para ver de que modo eles
poderiam subverter esses religiosos pela tentação. Um dos demônios disse:
"Vocês não percebem mesmo! Esses religiosos são tão humildes; Ah! que
virtude espantosa! São tão desapegados de si próprios, tão apegados a Deus!
Eles possuem um superior que os guia, de forma que é impossível ser
bem-sucedido em qualquer ataque que façamos a eles. Vamos esperar até que o
superior deles morra e então introduziremos entre eles jovens sem nenhuma
vocação que trarão um certo relaxamento de espírito para a ordem, e aí sim, nós
os venceremos.
Mais tarde,
quando esse homem entrou na cidade, ele viu um demônio sentado sozinho no
portão de entrada da cidade e que tinha a tarefa de tentar todos os habitantes
daquele lugar. Esse santo perguntou ao seu Anjo da Guarda porque motivo, para
tentar apenas aquele grupo de religiosos, haviam tantos demônios, ao passo que
para toda aquela cidade havia apenas um sentado à sua entrada. Seu bom Anjo
respondeu-lhe então, que aquelas pessoas não precisavam de tentação, uma vez
que já estavam entregues aos seus próprios pecados, ao passo que aqueles
religiosos buscavam fazer tudo que era bom, apesar de todas as ciladas que os
demônios podiam armar para eles.
Meus caros
irmãos, a primeira tentação com a qual o demônio tenta qualquer um que começou
a servir melhor a Deus chama-se "respeito humano". Aquela pessoa
acometida pelo respeito humano não ousará mais a ser vista em todo lugar,
passará a se esconder de todos aqueles com os quais ela andava misturada na
busca de uma vida de prazeres. Se alguém lhe disser que ela está muito mudada,
imediatamente ela ficará envergonhada! Aliás, o que as pessoas vão dizer dela,
é a sua contínua preocupação. Chega a um ponto de perder a coragem de fazer
qualquer boa ação diante dos olhos alheios. Se o demônio não consegue fazê-la
retroceder na caminhada espiritual através do respeito humano, ele infundirá
nela um extraordinário medo, dizendo-lhe que suas confissões não servem pra
nada, que seu confessor não a entende, que seja lá o que ela fizer, será sempre
em vão, que ela irá pra condenação eterna do mesmo modo ou que ela obteria o
mesmo resultado (a salvação) no final, deixando tudo correr solto ao invés de
continuar a lutar, afinal as ocasiões de pecado já demonstraram ser demais para
ela!
Por que será,
meus irmãos, que quando alguém não dá a mínima importância à salvação de sua
alma, ele parece não sofrer a menor tentação? Mas assim que ele resolve mudar
de vida, em outras palavras, assim que ele deseja reformar sua vida para que
Deus venha morar nele, imediatamente todo o inferno cai encima dele?
Ouçamos o que
nos diz Santo Agostinho a esse respeito: "Do modo como o demônio se
comporta em relação ao pecador: Ele atua como um carcereiro que possui muitos
prisioneiros trancados em sua prisão, mas como ele não carrega ou não possui a
chave que poderia libertá-los dali, ele tranquilamente pode sair sossegado,
certo de que nenhum deles tem como fugir. Este é o modo como ele age com
aqueles pecadores que nem sequer consideram a possibilidade de deixar o pecado
para trás. Ele nem sequer se dá ao trabalho de tentá-los. Ele vê tais pessoas
como perda de tempo, não apenas porque elas não pensam em deixá-lo, mas também
porque ele não deseja multiplicar suas cadeias. Por outro lado, seria inútil
tentá-los. Ele permite que eles vivam em paz enquanto estiverem vivendo no
pecado mortal. Ele esconde do pecador a situação em que ele se encontra, o mais
que ele pode, até a morte, e quando acontece dele pintar um quadro da vida
daquele pecador, ele o faz de uma maneira tão aterrorizante, que o infeliz
pecador súbito cai no desespero. Mas com qualquer um que se decidiu a mudar de
vida, que se decidiu a entregar-se completamente à Deus, é toda uma outra
história!"
Enquanto Santo
Agostinho vivia no pecado e na maldade, ele não tinha porque se preocupar com
as tentações. Ele acreditava se encontrar em paz, como ele mesmo nos conta. Mas
no momento que ele resolveu a dar as costas para o demônio, ele teve que travar
um combate contra ele a ponto de perder sua respiração na luta. E isso durou
cinco anos! Ele chorou as lágrimas mais amargas e fez as mais severas
penitências: Ele chega ao ponto de dizer: "Eu discutia com ele em minhas
cadeias! Um dia eu achei que tinha sido vitorioso, no próximo dia lá estava eu
de novo, prostrado no chão. Esta guerra cruel e obstinada durou cinco anos. No
final, Deus me concedeu a graça de vencer o combate contra o meu inimigo".
Você pode ver
também, a luta que São Jerônimo teve que empreender, quando ele se decidiu a
viver apenas para Deus e também quando planejou visitar a Terra Santa. Quando
ele ainda estava em Roma, concebeu um desejo novo de trabalhar pela sua
salvação. Ao sair de Roma, ele se retirou para um deserto para se entregar a
todos os exercícios que o amor por Deus o inspirasse a fazer. Então o demônio,
prevendo como sua conversão iria influenciar tantas outras pessoas, se encheu
de fúria e desespero. São Jerônimo não foi poupado da menor tentação. Eu não
acredito que exista um santo que foi mais tentado do que ele. Isto foi o que
ele escreveu a um de seus amigos:
"Meu caro
amigo, eu quero confidenciar-lhe sobre minhas aflições e o estado ao qual o
demônio procura reduzir-me. Quantas vezes nessa vasta solidão, na qual o calor
do sol se faz insuportável, quantas vezes os prazeres de Roma parecem me
assaltar! A dor e a amargura, das quais minh'alma se encontra repleta, fazem me
derramar rios de lágrimas dia e noite sem parar. Eu procurei me esconder nos
lugares mais isolados para lutar contra minhas tentações e chorar pelos meus
pecados. Meu corpo está todo desfigurado e coberto com uma veste rude em
trapos. Eu não tenho outra cama a não ser o chão nu e minha única comida é um
cozido de raízes e água, mesmo quando estou doente. Apesar de todos esses
rigores, meu corpo ainda se recorda dos sórdidos prazeres dos quais Roma
inteira está envenenada, meu espírito ainda se encontra no meio daqueles
companheiros de prazer e aventuras com os quais eu tão imensamente ofendi a
Deus. Nesse deserto, ao qual eu mesmo me condenei para evitar o inferno, junto
dessas rochas sombrias, onde eu não tenho outra companhia, a não ser escorpiões
e os animais selvagens, meu espírito ainda queima dentro do meu corpo morto,
com um fogo de impurezas. O demônio ainda assim, ousa a me oferecer prazeres
para que eu os prove. Eu me contemplo tão humilhado por essas tentações e o
único pensamento que me faz morrer de pavor é não saber quais austeridades às
Quais eu ainda devo submeter o meu corpo para uni-lo com Deus. Eis porque eu me
atiro ao chão, aos pés do meu crucifixo, banhado em minhas próprias lágrimas, e
quando eu não posso mais chorar, eu pego algumas pedras e bato no meu peito com
elas, até que o sangue saia pela minha boca, implorando por misericórdia, até
que Deus tenha piedade de mim.
Será que existe
alguém, capaz de entender a miséria do meu estado, desejando tão ardentemente
agradar a Deus e amar somente a Ele? Ainda assim, eu estou sempre pronto a
ofendê-lo. Que dor isso representa para mim? Ajude-me, meu caro amigo, com o
auxílio de suas orações, de forma que eu me torne mais forte para repelir o
demônio, que jurou me levar para a condenação eterna".
Meus caros
amigos, são esses os combates a que são submetidos os grandes santos de Deus.
Coitados de nós! Como somos dignos de pena por não sermos assaltados ferozmente
pelo demônio! De acordo com todas as aparências, podemos dizer que somos amigos
do Diabo: ele nos faz viver numa falsa paz, ele nos embala no sono,
deixando-nos com a pretensão de que recitamos algumas boas orações,
distribuímos algumas esmolas e que fizemos menos más ações do que os outros. De
acordo com o nosso padrão, meus caros irmãos, se perguntarmos, por exemplo,
àquele sustendador do cabaré ali, se o Demônio o tem tentado, ele simplesmente
dirá que nada o incomoda absolutamente! Pergunta a esta garota ali, esta filha
da vaidade, quais são os combates que ela tem que travar contra o inimigo, e
ela vai responder-lhe sorrindo que ela não tem nenhuma luta e que, aliás, ela
nem sabe o que é ser tentada. Assim vocês verão, meus caros amigos, que a
tentação mais terrível de todas, é exatamente não ser tentado. E vocês verão
ainda mais! Vocês verão o estado daqueles a quem o demônio está preservando
para o Inferno. Eu ousaria dizer ainda, que ele tem o máximo cuidado em não
atormentar tais pessoas com a recordação de suas vidas no passado. Do
contrário, seus olhos poderiam se abrir para seus pecados!
O maior de
todos os males não é ser tentado porque há então motivos para acreditar que o
demônio está apenas esperando nossas mortes para nos arrastar para o inferno.
Nada poderia ser mais fácil de ser entendido. Apenas considere o cristão que
está tentando, ainda que seja de um modo pequeno, salvar sua alma. Tudo em
volta dele parece incliná-lo para o mal, ele dificilmente consegue levantar os
olhos sem ser tentado, apesar de todas as orações e penitências! E mesmo assim,
um pecador empedernido, que passou uns 20 anos chafurdando na lama do pecado
ainda tem a coragem de dizer que não é tentado! Este está num estado muito
pior, meus caros amigos, muito pior! Isso é o que deveria fazer você tremer de
pavor: não saber o que são as tentações, pois dizer que você não é tentado, é o
mesmo que dizer que o Demônio não existe ou que ele perdeu todo seu raio de
ação sobre as almas cristãs.
São Gregório
nos diz: "Se você não sofre tentações é porque o demônio é seu amigo, seu
líder e seu pastor. E ao permitir que você passe sua pobre vida na
tranquilidade, no final de seus dias, ele lhe arrastará com todos os outros
para as profundezas do abismo". Santo Agostinho diz-nos que a maior
tentação é não sofrer tentações, pois isso apenas significa que uma pessoa
assim é uma pessoa que foi rejeitada por Deus, abandonada por Deus, e deixada
inteiramente à mercê de suas próprias paixões.
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