-Um calor extraordinário.
-Como, um calor? Não estamos na
floresta, em plena neve? A neve está sob os nossos pés, estamos cobertos dela e
ela continua caindo... De que calor se trata?
-Um calor semelhante ao de um banho de
vapor.
-E o cheiro é como no banho?
-Oh, não! Nada sobre a terra se pode
comparar a esse perfume. No tempo em que a minha mãe vivia, ainda gostava de
dançar e quando eu ia a um baile, ela me aspergia perfumes que comprava nas
melhores lojas de Kasan e pagava muito caro. O seu odor não é comparável a
estes aromas.
O padre Serafim sorriu.
-Eu sei, meu amigo, tanto quanto vós, e
é de propósito que vos interrogo. É bem verdade, nenhum perfume terreno pode
ser comparado ao bom odor que respiramos neste momento, o bom odor do Espírito
Santo. O que pode, sobre a terra, ser-lhe comparado? Dissestes, ainda há pouco,
que fazia calor, como no banho. Mas olhai, a neve que nos cobre, a vós e a mim,
não se derrete, assim como a que está aos nossos pés. O calor não está no ar,
mas no nosso interior. É este calor que o Espírito Santo nos faz pedir na
oração: "Que teu Espírito Santo nos aqueça". Este calor permitia aos
eremitas, homens e mulheres, não temerem o frio do inverno, envolvidos, como
estavam, como que num manto de peles, numa veste tecida pelo Espírito Santo.
É assim que, na realidade, deveria ser,
habitando a graça divina no mais profundo de nós, em nosso coração. O Senhor
disse: "O Reino de Deus está dentro de vós" (Luc.17,21). Por
Reino de Deus ele entende a graça do Espírito Santo. Este Reino de Deus está em
nós, agora. O Espírito Santo nos ilumina e nos aquece. Enche o ar de perfumes
variados, alegra os nossos sentidos, sacia o nosso coração com alegria indizível.
O nosso estado atual é semelhante àquele do qual fala o apóstolo: "Porquanto
o Reino de Deus não consiste em comida e bebida, mas é justiça, paz e alegria
no Espírito Santo" (Rom.14,17). A nossa fé não se baseia em palavras
de sabedoria terrena, mas na manifestação do poderio do Espírito. Trata-se do
estado em que estamos atualmente e que o Senhor tinha em vista quando dizia: "Em
verdade vos digo que estão aqui presentes alguns que não provarão a morte até
que vejam o Reino de Deus chegando com poder" (Marc.9,1).
Eis aí, amigo de Deus, a alegria
incomparável que o Senhor se dignou conceder-nos. Eis o que é estar "na
plenitude do Espírito Santo". É isto o que entende São Macário, o Egípcio,
quando escreve: "Eu mesmo estive na plenitude do Espírito Santo".
Humildes quanto somos, o Senhor nos encheu da plenitude de seu Espírito.
Parece-me que, a partir deste momento, não tereis de me interrogar mais sobre a
maneira como se manifesta, no homem, a presença da graça do Espírito Santo.
Esta manifestação permanecerá para
sempre em vossa memória.
-Não sei, padre, se Deus me tornará
digno de me lembrar dela sempre com tanta nitidez como agora.
Difusão da
mensagem.
-E eu, respondeu o staretz, julgo que,
pelo contrário, Deus vos ajudará a guardar todas estas coisas para sempre, em
vossa memória. De outro modo ele não teria sido tão rapidamente tocado pela
humilde oração do miserável Serafim e não teria atendido tão depressa o seu
desejo. Além do mais, não é somente a vós que é dado ver a manifestação desta
graça mas, por vosso intermédio, ao mundo inteiro. Vós mesmo assegurai-vos,
sereis útil a outros.
Monge e leigo.
Quanto a nossos estados diferentes, de
monge e leigo, não vos preocupeis. Deus procura acima de tudo um coração cheio
de fé nele e em seu Filho único, em resposta à qual envia do alto a graça do
Espírito Santo. O Senhor procura um coração repleto de amor por Ele e pelo
próximo; aí está um trono sobre o qual Ele gosta de sentar-se e onde ele
aparece na plenitude de sua glória. "Meu filho, dá-me o teu coração, e o
resto eu te darei por acréscimo" (Prov.23,26). O coração do homem
é capaz de conter o Reino dos Céus. "Buscai, em primeiro lugar, o Reino de
Deus e a sua justiça", diz o Senhor a seus discípulos, "e
todas estas coisas vos serão acrescentadas, pois Deus, vosso Pai, sabe do que
precisais" (Mat.6,33).
Legitimidade
dos bens terrenos.
O Senhor não nos proíbe o gozo dos bens
terrenos, e diz ele próprio que, dada a nossa situação aqui na terra, deles
precisamos para dar tranqüilidade às nossas existências e tornar mais cômodo e
fácil o caminho para a nossa pátria celeste. E o apóstolo Pedro acha que nada
há melhor no mundo do que a piedade unida ao contentamento. A Santa Igreja pede
que isso seja dado. Apesar das penas, as desgraças, e as necessidades serem
inseparáveis da nossa vida na terra, o Senhor jamais quiz que os cuidados e as
misérias constituíssem toda a trama dela. E, por isso, pela boca do apóstolo
nos manda carregar os fardos uns dos outros, a fim de obedecer a Cristo que
pessoalmente nos deu o preceito de nos amarmos mutuamente. Reconfortados por
esse amor, a caminhada dolorosa pela via estreita que leva à nossa pátria
celeste nos será facilitada. Não desceu o Senhor do céu não para ser servido,
mas para servir e dar a sua vida pela redenção de muitos? (Mat.20,28;
Marc.10,45).
Atuai do mesmo modo, amigo de Deus, e,
consciente da graça da qual fostes visivelmente objeto, comunicai-a a todo
homem desejoso da sua salvação.
Atividade
missionária.
"A colheita é grande",
diz o Senhor, "mas poucos os operários" (Mat.9,37-38; Luc. 10,2).
Tendo recebido os dons da graça, somos chamados a trabalhar colhendo as espigas
da salvação do nosso próximo, para os recolhermos no celeiro, em grande número,
no Reino de Deus, a fim de que produzam seus frutos, uns trinta, outros
sessenta, e outros cem. Estejamos atentos para não sermos condenados com o
servo preguiçoso que enterrou o dinheiro a ele confiado, mas tratemos de imitar
os servos fiéis que devolveram ao Mestre um, em vez de dois talentos, quatro, e
o outro, em vez de cinco talentos, dez. Quanto à misericórdia divina, não se
pode duvidar dela: vede vós mesmo como as palavras de Deus, ditas por um
profeta, se realizaram por nós. "Sou, por acaso, Deus apenas de
perto" (Jer.23,23).
8)
Primeiras considerações sobre o diálogo com Motovilov.
A
beleza deste diálogo ocorrido há tanto tempo toca a sensibilidade daqueles que
o lêem. Não devemos, porém, perder a oportunidade de nos lembrar que Serafim
somente chegou a esta plenitude do Espírito Santo porque ao ter ouvido o
chamado de Deus a Ele se entregou de corpo e alma; dedicou-se, esforçou-se,
colaborou intensamente com a graça. Estudou as Sagradas Escrituras, assimilou o
seu conteúdo, praticou as virtudes, viveu da oração, pôs toda a sua esperança
em Deus a quem amou entranhadamente. O Senhor recompensou a sua fé enviando-lhe
do alto o Espírito Santo, com o qual Serafim passou a fazer todas estas coisas
com um coração mais puro e mais intensamente. Mas se ele tivesse esperado
passivamente que Deus o escolhesse entre todos os homens para enviar-lhe o
Espírito Santo hoje ele não estaria no Reino de Deus. Que faça a experiência
quem achar o contrário. Por isso é que Jesus disse: "Esforçai-vos por entrar
pela porta estreita, porque muitos tentarão entrar e não conseguirão".
É como se dissesse: é mais estreito do que pensais. Mas ele nos disse isso
porque nos ama, porque nos quer fazer acordar e porque deseja a nossa
felicidade. Que lição para nós! Que fazemos do precioso tempo da vida que Deus
nos concede para que possamos aprender a caminhar na sua luz? "Nós
procedemos como loucos", diz o profeta no Velho Testamento; "mas
os olhos do Senhor contemplam toda a terra e inspiram força aos que confiam
nEle com um coração perfeito" (2 Cron. 16,9). Se as pessoas
procurassem a graça do Espírito Santo com a mesma ganância, com o mesmo
esforço, com as mesmas preocupações, com as mesmas inclinações, com a mesma
vigilância, com a mesma solicitude com que procuram sexo e bem estar, como o
mundo não seria diferente, como as pessoas não seriam diferentes, como não
seriam mais felizes, como não floresceria na terra a vida do céu! É precisamente isto o que significam aquelas
palavras das Sagradas Escrituras: "Os que são da carne, gostam das coisas
da carne; os que são do espírito, gostam das coisas do espírito"
(Rom. 8,5). "O que nasceu da carne é carne, o que nasceu do espírito é
espírito" (João 3,6). "O espírito é o que vivifica, a carne
para nada aproveita" (João 6,64). E também: "Aquele que não nascer de
novo, não pode entrar no Reino de Deus" (João 3,3). É preciso
refletir muito sobre estas palavras e tomar uma decisão séria. Jesus não se
cansa de nos advertir de que não se pode servir a dois senhores (Mat 6,24). "Onde
estiver o nosso tesouro, ali também estará o nosso coração" (Mat
6,21).
9) A
essência do Evangelho.
Introdução.
No
diálogo com Motovilov, primeiro padre Serafim nos disse que a finalidade da
vida cristã é a obtenção do Espírito Santo. Em seguida, procurou mostrar a
Motovilov o que é o dom do Espírito Santo. Na Summa Theologiae, escrita
quase seiscentos anos antes deste diálogo, Santo Tomás de Aquino nos diz que o
Espírito Santo é a própria essência do Evangelho. A seguinte passagem é tirada
da questão número 106 da primeira parte da segunda parte da Summa
Theologiae de Santo Tomás.
Texto da
Summa
Theologiae de S.Tomás de Aquino,
questão 106 da primeira parte da segunda
parte.
Qual é a essência da Evangelho, pergunta
Santo Tomás, ou, o que é o mesmo, "em que consiste a Nova Lei trazida por
Cristo?
Dizem os filósofos que cada coisa parece
ser o que nela há de principal.
Ora, o que é principalíssimo na Lei do
Novo Testamento, e que é aquilo em que consiste toda a sua força, é a graça do
Espírito Santo, que nos é dada pela fé em Cristo.
Portanto, o Evangelho, ou a Nova Lei,
consiste principalmente na própria graça do Espírito Santo, que é dada por
Cristo aos fiéis.
Secundariamente, porém, o Evangelho
consiste também nos mandamentos escritos, que servem para dispor o homem para a
graça do Espírito Santo. Estes mandamentos são todas aquelas coisas que é
preciso saber para que se manifeste a divindade e a humanidade de Nosso Senhor
Jesus Cristo e são também todas aquelas coisas que nos ensinam a desprezar o
mundo, pois é através destas coisas que o homem se torna capaz da graça do
Espírito Santo. De fato, no Evangelho de S. João as Sagradas Escrituras dizem
que "o
mundo não pode receber o Espírito Santo"; quando elas dizem "o
mundo", estão se referindo às pessoas que amam o mundo".
10)
Segundo comentário ao diálogo com Motovilov.
Para
se entender mais corretamente os ensinamentos contidos nas palavras de S.
Serafim e nas questões da Summa Theologiae, devemos observar
que no diálogo com Motovilov o padre Serafim não explicou, nem procurou fazer
com que seu amigo experimentasse os principais efeitos que o Espírito Santo
produz na alma daqueles que caminham de coração aberto em busca do Reino de
Deus. Os efeitos principais que o Espírito Santo produz na alma daqueles que se
aproximam de Deus pelo trabalho de santificação que nos é descrito nas Sagradas
Escrituras são mais profundos do que os apontados por S. Serafim e são difíceis
de serem compreendidos por aqueles que não passaram por eles. Este trabalho de
santificação é, ademais, normalmente muito longo e exige, além do auxílio da
graça divina, sem o qual se torna impossível, muita renúncia e muitos anos de
perseverança. Por isso, o que padre Serafim mostrou ao seu amigo foram alguns
efeitos secundários da graça do Espírito Santo, apenas para que ele, e para que
nós junto com ele, tivéssemos um ponto de referência para poder nos orientar
melhor na condução da vida cristã. A luz que brotava dos olhos do padre
Serafim, a paz inexplicável que enchia o coração dos amigos, a alegria
indescritível que Motovilov diz estar sentindo, não são os efeitos principais
do Espírito Santo na alma humana quando esta procura se aproximar de Deus
através de Cristo. Os principais efeitos do Espírito Santo no processo de
santificação do homem se manifestam gradativamente e são os seguintes.
Primeiro,
o temor de Deus e a fuga do pecado.
Segundo,
uma prontidão cada vez maior para buscar as coisas do alto e não pensar nas
coisas da terra, bem de acordo com o que está escrito na Epístola aos Romanos: "Os
que são segundo a carne, gostam das coisas que são da carne; mas os que são
segundo o Espírito, gostam das coisas que são do espírito" (Rom.
8,5).
Terceiro,
uma vida em que a virtude da fé é sempre mais firme, isto é, em que a certeza
da fé é sempre mais profunda, e sempre mais constante, isto é, em que a
vivência da fé é sempre mais frequente.
Quarto,
uma clareza cada vez maior no conhecimento de Deus e no entendimento das
verdades da fé, tanto quanto é possível ao homem.
Quinto,
e o principal de todos, um amor para com Deus sempre crescente. Depois que os
efeitos anteriores se manifestaram e amadureceram suficientemente, este amor
começa a aumentar de um modo que as próprias pessoas que amam assim a Deus
sequer supunham que seria possível à natureza humana a vivência de um amor tão
grande.
Finalmente,
em sexto lugar, pelo efeito deste amor tão grande que é infundido na alma
humana, quando este se torna de uma ordem de magnitude como o que havia na alma
de S. Serafim, -e um amor assim não pôde ter sido vivido por Motovilov naqueles
breves momentos em que durou o diálogo- , este mesmo amor leva aquele
conhecimento de Deus e aquele entendimento das verdades da fé que havia na alma
para um plano superior de vivência. Este plano superior de vivência não é a
visão de Deus, que talvez além de Jesus mais ninguém o teve na terra, mas é um
conhecimento de Deus da mesma natureza que aquele que nos é dado pela fé, porém
situado num plano bem mais alto. Trata-se daquela verdade que Jesus disse que seria
conhecida por aqueles que seguissem os seus mandamentos, e que é a forma de
conhecimento mais alta que um ser humano pode alcançar na terra se ajudado a
tanto por Deus.
De
onde que se deduz que os principais efeitos do Espírito Santo na alma que se
santifica na busca de Deus são um amor extraordinariamente elevado, muito maior
do que o comum das pessoas concebem que possa existir, e o conhecimento da
verdade. Estes dois efeitos não foram manifestados a Motovilov no diálogo com
padre Serafim porque se isso tivesse acontecido, Motovilov teria alcançado em
questão de momentos aquilo que ordinariamente a graça só concede aos homens
depois de muitos anos de perseverança na vida das virtudes, as quais são também
efeitos dela. Mas Deus concedeu-lhe vivenciar aqueles efeitos secundários do
Espírito Santo para que, tendo estes por referência, pudesse compreender quão
grandes coisas Deus prepara para aqueles que o amam, às quais todos nós somos
convidados por meio do Evangelho de Jesus.
Muito
tempo antes de Jesus, Isaías havia tratado deste assunto em uma célebre
profecia de que vamos tratar a seguir.
11) Os
dons do Espírito Santo.
Introdução.
Seiscentos
anos antes de Cristo, Isaías fêz uma profecia a respeito de Jesus. Esta
profecia nos foi conservada no décimo primeiro capítulo de seu livro, nos
versos 1 e 2.
Texto de Isaías 11,1-2.
"Sairá
um ramo do tronco de Jessé,
e um rebento brotará de sua raiz.
Repousará sobre ele
o espírito do Senhor,
espírito
de sabedoria
e
entendimento,
espírito
de conselho
e
fortaleza,
espírito
de ciência
e de
piedade,
e sobre
ele estará o espírito
de
temor do Senhor".
12)
Comentário à profecia de Isaías.
Na
profecia com que se inicia o capítulo 11 de Isaías, Jessé é o pai de Davi, de
cuja descendência nasceu Jesus. O ramo que sairá do tronco de Jessé de
que fala o profeta Isaías, é, portanto, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Esta
profecia afirma que Jesus Cristo seria repleto dos dons do Espírito Santo, e,
ademais, enumera sete dons do Espírito Santo, aos quais chama de sabedoria,
entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor do Senhor.
Apesar
desta profecia se referir em primeiro lugar a Cristo, ela se refere também a
nós, porque foi o próprio Cristo que disse, quando orava por nós ao Pai: "Eu
dei-lhes a glória que tu me deste" (João 17,22). Além disso, em
conformidade com esta oração de Cristo, as Sagradas Escrituras prometem a todos
aqueles que crerem no Cristo que "participarão de sua plenitude"
(João 1,16). Portanto, estes sete dons do Espírito Santo são também qualidades
com que a graça divina adorna a alma dos fiéis, através das quais eles podem
ser conduzidos com mais docilidade pelo Espírito Santo. Eles correspondem a
sete modos pelos quais o Espírito Santo costuma conduzir aqueles que vivem da
fé e do amor, e são enumerados por Isaías segundo uma ordem decrescente, o mais
elevado deles sendo aquele que está no início da lista, que é o dom de
sabedoria.
Todos
os homens que vivem em estado de graça possuem os sete dons do Espírito Santo,
que são infundidos na alma quando nos convertemos a Deus pela fé e pelo amor. Á
medida em que crescemos na virtude, todos os sete dons crescem juntos, cada um,
porém, se manifestando com maior predominância na ordem inversa à exposta pelo
profeta Isaías, como se existissem sete dias ou sete etapas no desenvolvimento
da vida cristã, em cada uma destas etapas se manifestando com mais evidência
este ou aquele dentre os sete dons do Espírito Santo.
Assim,
no início da vida cristã primeiro se manifesta mais acentuadamente o dom de
temor, embora todos os sete estejam presentes. Á medida em que progredimos na
vida da graça, passa a manifestar-se com maior predominância o dom de piedade;
com isto, porém, todos os outros dons crescem paralelamente, e o dom de temor,
que já havia se manifestado no dia anterior, passa, quando surge o dia do dom
da piedade, para um plano superior de vivência. Já não é mais o temor como
aquele com que iniciamos a vida cristã; é um temor condizente com uma vida em
que se manifesta mais marcadamente o dom de piedade. Em seguida, manifesta-se o
dom de ciência, elevando, com ele, os dons de temor e de piedade a um plano
ainda superior de vivência. E assim sucessivamente, até chegar o dia do dom da
sabedoria, que é o mais alto de todos os dons do Espírito Santo.
Pelo
dom de temor, o primeiro dos dons do Espírito Santo, nos é infundido um
respeito reverencial por Deus, pelas coisas sagradas e pelos homens, devido ao
fato de que a existência e a vida deles, quer eles o admitam ou não, está
relacionada com Deus. Nossa consciência começa a tornar-se mais delicada, o
pecado a aflige mais do que ao comum dos homens que vivem afastados da graça e
temos medo ou até pavor de suas conseqüências espirituais. Compreendemos,
dependendo da intensidade com que o Espírito Santo nos ilumina, nossa
indigência espiritual e, quanto mais a compreendemos, esta compreensão nos move
a um interesse maior pelas coisas de Deus. No início da vida cristã este temor
possui um caráter que se chama de servil; à medida em, que vão, porém, se
manifestando os demais dons do Espírito Santo, este temor inicial não
desaparece, mas vai se tornando cada vez mais acentuadamente o que se chama de
temor filial.
O
dom de piedade, quando passa a se manifestar com maior predominância, faz com
que o temor de Deus se torne mais maduro. Como o nome o diz, nos tornamos mais
piedosos, tanto para com Deus como para com os homens. As pessoas se tornam
mais mansas e compreensivas, perdoam com mais facilidade, cumprem seus deveres
religiosos mais por uma conaturalidade para com eles do que obrigados pelo medo
do pecado.
Pelo
dom de ciência se inicia uma compreensão mais profunda de como os mandamentos
de Deus não são preceitos arbitrários dados ao acaso por um Deus que até teria
direito de proceder assim se o quisesse, mas que, em vez disso, os ordenou
tendo em vista com eles o nosso bem, por conhecer todas as coisas muito melhor
do que nós o podemos fazer. Percebemos cada vez mais que os seus mandamentos
não são uma simples imposição de autoridade, mas são o caminho para uma
liberdade com que o comum das pessoas não consegue atinar. Ainda que não o
expressemos com palavras, passamos a nos comportar como se estivéssemos
percebendo por nós mesmos que existe uma ciência do uso das criaturas por parte
do homem, e que o homem surgiu sobre a terra como se ela tivesse sido preparada
propositalmente para que, quando o homem surgisse, ele usasse desta ciência
para, através das criaturas, elevar-se a alguma coisa muito alta, e não para
fazer delas aquilo que o seu capricho bem entendesse. A vida daqueles que vivem
inteiramente alheios a este conhecimento nos parece tão intolerável que nos
causa repugnância e, se antes de nos termos convertido a Deus tínhamos vivido
desta maneira, isto nos causa, mais do que simples remorso, verdadeira repulsa.
"Meu
coração se espanta e minha alma se aterroriza", dizia Santo Antão
em uma de suas cartas, "pois nós mergulhamos no prazer como
gente embriagada de vinho, porque nos deixamos distrair por nossos desejos,
deixamos reinar em nós a vontade própria e recusamos elevar nossos olhos para o
céu buscando a glória celeste; incapazes de exercermos nossa inteligência
segundo o estado da criação original, inteiramente privados de razão, nos
sujeitamos à criatura em vez de servir ao Criador". É impossível
alguém enxergar isto tão claramente se o Espírito Santo não lhe tiver concedido
o dom de ciência. Se pelo dom de piedade o temor de Deus se tinha tornado mais
delicado, o dom de ciência parece nos mostrar a existência de um fundamento
muito claro tanto para a piedade como para o temor.
Pelo
dom de fortaleza a existência de algo mais elevado preparado por Deus para ser
buscado pelos homens se nos torna tão manifesta que passamos a partir em sua
procura com tanto empenho que isto se evidencia diante dos homens como uma
determinação tão profunda e inquebrantável a que aparentemente nada pode
corromper. É aqui que os homens começam a aspirar com seriedade à santidade. A
fortaleza imprime uma marca inconfundível tanto no temor, como na piedade e na
ciência.
A
prática abundante das obras de misericórdia costuma estar associada com a vida
das pessoas que se propõem à busca da santidade com a determinação do dom da
fortaleza. Isto ocorre porque elas já não são mais tão guiadas em suas decisões
pelo egoísmo e pelos impulsos das paixões; com isso seu entendimento se abre
para uma percepção mais aguda dos problemas graves que afligem o próximo do que
o das as pessoas que ainda estão passionalmente envolvidas com seus problemas
pessoais e que não têm tempo nem disposição para os perceber. Ocorre, porém,
que sempre o sofrimento de outros é objetivamente muito maior, mais grave, mais
profundo do que os nossos problemas pessoais, e, ademais, afeta um número de
pessoas muito maior do que aqueles a quem podemos efetivamente ajudar. Isto faz
com que o envolvimento com o sofrimento humano, e de modo especial neste caso
em que ele ocorre não por causa de alguma circunstancialidade ou algum problema
pessoal, mas por causa de uma clara percepção da gravidade e da extensão deste
sofrimento em si mesmo, exige por natureza um aperfeiçoamento daquela sabedoria
prática que é a virtude a que denominamos de prudência. Segundo diz Ricardo de
São Vítor no Benjamin Minor, a prudência é, na ordem, a última das virtudes
que se aperfeiçoa no homem antes que nele se manifestem as virtudes
contemplativas. Á prudência está associada a capacidade do conselho dado com
sabedoria. O dom de conselho é, assim, o modo externo de como se manifesta
diante dos homens aquela conaturalidade para com a prática da misericórdia
daqueles que estão se aproximando de Deus.
A
santidade eminente que as Sagradas Escrituras nos relatam ao narrarem as vidas
dos patriarcas e dos profetas do Velho Testamento e as dos apóstolos e mártires
do Novo principia propriamente pelo dom de entendimento e se torna madura pelo
dom de sabedoria. O dom de entendimento produz uma tal pureza de alma daqueles
que são assim conduzidos pelo Espírito Santo que eles passam a compreender com
impressionante clareza o sentido mais profundo das Sagradas Escrituras e das
coisas divinas. "O nome entendimento", diz Santo Tomás de Aquino, "implica
um conhecimento íntimo; significa ler dentro; é aquele conhecimento da
inteligência que penetra até à essência da coisa". Pelo dom de
entendimento compreendemos "de um modo límpido e claro",
diz ainda Santo Tomás de Aquino, o sentido das coisas que são ensinadas por
Deus e que parecem obscuras ou até mesmo incompreensíveis para a maioria dos
homens, muitas vezes inclusive para aqueles que passaram a vida inteira
estudando, mas sem buscar verdadeiramente a Deus. Mais ainda, sua beleza se nos
manifesta com tal evidência que passamos a contemplá-las habitualmente em nossa
alma e com prazer sempre crescente. Os homens que são movidos pelo dom de
entendimento são pessoas que vivem habitualmente da fé, e a fé neles é tão
intensa que já é como uma posse antecipada da substância das coisas que eles
esperam no céu (Heb. 11,1). É a estas pessoas que Jesus se referia quando
dizia: "Bem aventurados os puros de coração, porque verão a Deus"
(Mat.5,8). Mais ainda, aqueles que são movidos pelo dom de entendimento têm uma
facilidade como que conatural para explicar aos outros o significado das coisas
divinas; se isto ocorre com pessoas que têm familiaridade com a terminologia e
o conhecimento teológico, surgem daí aquelas obras primas da Teologia como a Summa
Theologiae de Santo Tomás de Aquino, o Tratado da Santíssima Trindade
de Ricardo de São Vitor, Os Três Dias de Hugo de São Vitor, e
muitas outras mais. A beleza extraordinária destes escritos, a profunda
sobrenaturalidade que neles se respira, a impressão que elas produzem de
estarmos em contato com algo celeste, é conseqüência de terem sido escritas por
alguém em que se manifestava a atuação do dom de entendimento. O dom de
entendimento é, também, com isso, o modo pelo qual o Espírito Santo confere aos
homens uma aptidão especial para o ensino das coisas sagradas.
O
dom de sabedoria está associado à mais profunda forma de conhecimento que é
possível, com o auxílio da graça, ao ser humano. Ele é de uma ordem mais
elevada do que o dom de entendimento e muitíssimo mais ainda do que as formas
usuais de conhecimento existentes entre os homens. A causa deste conhecimento é
também diferente nos três casos. No conhecimento usual dos homens, a causa do
conhecimento é o esforço que o homem faz em aprender. No dom de entendimento, a
causa é o agir do Espírito Santo sobre a inteligência do homem já adiantado na
vida das virtudes. No caso do dom de sabedoria a causa é uma vivência supereminente
do amor a Deus, amor este movido pela atuação do Espírito Santo. Este amor se
torna tão intenso e tão mais acima daquele que os homens normalmente costumam
experimentar que através dele Deus infunde na alma uma outra forma de
conhecimento mais alta do que o que provém do dom de entendimento. Por isso é
que este dom se chama de sabedoria; segundo o modo comum de entender dos
homens, sabedoria é o mais elevado conhecimento possível. Assim também entre os
dons do Espírito Santo enumera-se o dom de sabedoria, por meio do qual o
Espírito Santo nos move ao mais elevado conhecimento possível e à mais elevada
forma de contemplação que o homem pode alcançar. A causa próxima da
contemplação produzida pelo dom de sabedoria não é uma ação direta do Espírito
Santo sobre a inteligência, mas o modo supereminente da vivência do amor a Deus
produzida em nós pela graça do Espírito Santo que Jesus prometeu aos que
seguissem os seus preceitos. "Deus nunca dá esta sabedoria sem
amor", diz São João da Cruz, "pois é o próprio amor que a infunde,
como afirma o profeta Jeremias quando diz: `Enviou o Senhor fogo aos meus
ossos, e ensinou-me'". O dom de sabedoria, desta maneira, leva o
preceito do amor a Deus às suas máximas possibilidades; as pessoas que são
conduzidas pelo dom de sabedoria amam a Deus como Jesus ensinou que deveríamos
amá-Lo, isto é, conforme vimos, "com todo o nosso coração, com toda a
nossa alma, como todo o nosso entendimento, com todas as nossas forças".
É humanamente impossível praticar este mandamento em todo o seu real
significado sem o auxílio do dom de sabedoria. O dom de sabedoria, ademais,
eleva ao seu mais alto nível todos os outros dons do Espírito Santo cujas
manifestações o precederam; com isto, também, a vida de todas as virtudes
alcança o seu grau máximo. "Aqueles que alcançaram o dom de
sabedoria", diz um teólogo dominicano recente, "parecem
ter perdido completamente o sentido do humano e o terem substituído pelo
sentido do divino com que vêem e julgam a todas as coisas. Teriam que fazer-se
uma grande violência para descer aos pontos de vista com que a mesquinhez
humana julga todas as coisas. Não chamam desgraça ao que os homens costumam
chamá-la, isto é, uma enfermidade, uma perseguição, a morte, mas unicamente
àquilo que o é na realidade, por sê-lo diante de Deus, isto é, ao pecado, à
indiferença, à infidelidade à graça divina. As maiores provações, sofrimentos e
contrariedades não conseguem perturbar um só momento a paz inefável de suas
almas, como se eles já estivessem na eternidade. Mas o efeito mais
impressionante diante dos homens do dom de sabedoria é a morte total ao próprio
eu. Aqueles que são conduzidos pelo dom de sabedoria amam a Deus com um amor
puríssimo, apenas por sua infinita bondade, sem mistura de interesse ou de
motivos humanos, sem, porém renunciar ao céu, o que na verdade desejam mais do
que nunca, mas apenas porque deste modo poderão amar a Deus com maior
intensidade". Mas, ao contrário do dom de entendimento, que
permite ao homem ensinar com mais perfeição as coisas de Deus, nem sempre é
possível dar conta do que se aprende pelo dom de sabedoria. Segundo Santo Tomás
de Aquino, o conhecimento que advém pelo dom de sabedoria é algo de deiforme;
através dele podemos conhecer a Deus mais profundamente e amá-Lo até ao limite
de nossas possibilidades, mas nem sempre é possível explicar o que dele se
conhece desta maneira. Ocorre, porém, que quando se manifesta o dom de
sabedoria no homem, todos os demais dons, e com eles o dom de entendimento,
sobem para um plano mais elevado, de modo que, indiretamente, através do efeito
que o dom de sabedoria produz sobre o dom de entendimento, aqueles que o
alcançaram podem ensinar mais plenamente do que aqueles que chegaram apenas ao
dia do entendimento.
Deduz-se,
ademais, desta longa explicação, uma outra importante conclusão. Na segunda
aula afirmamos que os objetivos da vida cristã são o amor a Deus e ao próximo;
que amar a Deus se torna realidade através do trabalho de nossa santificação,
sem o qual não é possível amar a Deus; que o amor ao próximo se torna uma
realidade mais plena através do ensino, que é, para Jesus, a prova de amor que
ele deseja de nós. Vemos agora, porém, que nenhuma destas duas coisas é
possível sem o Espírito Santo, pois é através do dom de entendimento que o homem
se torna verdadeiramente capaz de ensinar e é através do dom de sabedoria que o
homem se torna verdadeiramente capaz de amar a Deus. Aos dois maiores
mandamentos correspondem também os dois maiores dons. Ao mandamento do amor a
Deus, que é o maior de todos os mandamentos, corresponde o dom de sabedoria,
que é o maior de todos os dons do Espírito Santo. Ao segundo mandamento, o do
amor ao próximo, corresponde o dom de entendimento, que é também o segundo
dentre os dons do Espírito Santo. E assim como o dom de entendimento alcança
sua plenitude quando se eleva sob a influência do dom de sabedoria, assim
também o amor ao próximo somente alcança toda a sua perfeição quando toma a sua
força do preceito do amor a Deus. Para que possamos realizar ambas estas coisas
o Senhor nos convida insistentemente a que removamos todos os obstáculos e
posterguemos todos os nossos cuidados, para, com o melhor de nossas forças, nos
colocarmos ao seu serviço. Depois ainda nos pergunta, no décimo terceiro
capítulo do Evangelho de São João:
Continua...
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