Por **Maria José Rosado-Nunes
FUNDAMENTOS DO DISCURSO OFICIAL CATÓLICO E A PRODUÇÃO DE UM CONTRADISCURSO.
Inúmeras
pesquisas já demonstraram a defasagem entre as proposições da moral
sexual católica tradicional e as práticas dos/as fiéis nesse campo (1,
2). Bem menos conhecida e divulgada é a existência, no campo do discurso
católico, de um corpo argumentativo de caráter religioso, que afirma a
validade ética da decisão pelo aborto em determinadas situações.
Trataremos desses argumentos e apresentaremos, em seguida, o corpo
argumentativo que caracteriza o discurso oficial da Igreja Católica em
suas proposições condenatórias do aborto. Embora haja uma aparência de
homogeneidade absoluta na instituição com relação a essa condenação,
existe no interior do pensamento católico um contradiscurso de caráter
dialógico e não dogmatizante, em geral silenciado pela hierarquia
eclesiástica. Explicitaremos posteriormente os pontos centrais da
reflexão desenvolvida pelo discurso católico que encontra validade ética
em situações nas quais as mulheres recorrem à interrupção da gravidez.
O CONTEÚDO ARGUMENTATIVO PRESENTE NOS DOCUMENTOS DA IGREJA CATÓLICA
A
análise dos documentos da hierarquia católica sobre o aborto indica
algumas constantes em sua argumentação condenatória. Apoiando-se na
tradição cristã, nas intervenções anteriores do magistério e em dados
retirados da ciência, a doutrina oficial católica sobre a moralidade do
aborto é clara, taxativa e se propõe como definitiva. Os argumentos
apresentados pelos documentos oficiais da Igreja apresentam-se como um
verdadeiro bloco discursivo, constituindo-se numa espécie de fortaleza
doutrinal estabelecida em torno da condenação do aborto (3). O elemento
central dessa argumentação é a defesa da vida, reiterada como um
princípio absoluto, imutável e intangível. A existência de uma pessoa
humana, sujeito de direitos, desde o primeiro momento da concepção é o
pressuposto para se considerar a interrupção de uma gravidez como um ato
homicida em qualquer momento da gestação e sob quaisquer condições.
Assim, esses dois elementos – a sacralidade da vida humana e a condição
de pessoa do embrião – fundam a condenação incondicional do aborto,
integrando argumentos de ordem religiosa, moral e biológica. A
autoridade da Igreja em questões éticas associa-se à desconfiança em
relação aos valores morais da sociedade contemporânea e à proposição da
universalidade de princípios estabelecidos como inerentes à natureza
humana.
O ARGUMENTO DA DEFESA DA VIDA
A
condenação da interrupção voluntária da gravidez funda-se numa
proposição de fé, segundo a qual a vida humana tem caráter sagrado por
ser um dom divino. Paulo VI, citando Pio XII, não deixa dúvidas: "Cada
ser humano, também a criança no ventre materno, recebe o direito de vida
imediatamente de Deus, não dos pais, nem de qualquer sociedade ou
autoridade humana" (4). Atentar contra a vida é atentar contra o próprio
Deus. Do direito à vida derivam todos os outros direitos, dos quais
aquele é condição necessária. Assim, o mandamento divino: Não matarás
refere-se à sacralidade da vida, que deve ser respeitada, por vontade
divina, segundo um princípio abstrato, absoluto, universal e aplicável a
todos os seres humanos. Uma vez que, segundo o magistério da Igreja,
desde o primeiro momento da fecundação há uma pessoa humana completa, o
aborto torna-se um ato moralmente inaceitável e condenável, verdadeiro
homicídio, i.e., um atentado contra a vida e, consequentemente, contra o
próprio Deus, criador da vida, um pecado gravíssimo.
Encontra-se,
no entanto, no mesmo ensinamento magisterial, uma distinção entre
aborto lícito e aborto ilícito. O primeiro é aquele indiretamente
provocado: a retirada do útero canceroso de uma mulher grávida e a
eliminação de um feto ectópico. Já o segundo se dá de forma direta, por
motivos eugênicos ou por problemas sociais, familiares e individuais. O
aborto indireto pode ser provocado licitamente, dada a limitação humana,
já que, para se defender um bem, destrói-se uma vida.
A
prática do aborto direto é condenada em razão de provocar a morte de um
ser humano considerado inocente, o que constitui uma situação de
tríplice injustiça: contra a soberania de Deus, único Senhor da vida;
contra o próximo, que é privado do direito de existir como pessoa; e
contra a sociedade, que perde um de seus membros. A inocência presumida
do nascituro vem do fato de ser ele incapaz de ato moral. Considera-se,
além disso, sua situação de ser indefeso incapaz de proteger-se de uma
agressão.
O argumento da defesa da vida
escuda-se ainda na ideia do nascituro como pessoa possuidora de
direitos desde a sua concepção, antes mesmo da concessão destes pela
sociedade, dada sua essência humana. Assim, o direito à vida
apresenta-se como um direito ao mesmo tempo sagrado, natural e social.
Ainda que a realização de um aborto possa conduzir ao alcance de certos
bens, como a saúde ou a vida da mãe, ele é sempre injustificável. Outras
razões, como as dificuldades que possa significar um filho a mais,
especialmente se apresenta anomalias graves, a desonra, ou o
desprestígio social, ainda que consideráveis, também não legitimam o ato
abortivo: "deve-se sem dúvida afirmar que jamais alguma dessas razões
possa conferir objetivamente o direito de se dispor da vida de alguém,
mesmo em sua fase inicial" (5).
A
absolutização do princípio de respeito à vida humana tem ainda como
referência a lei natural. Trata-se de um instinto humano a ser
respeitado por crentes e não crentes. "Para quem acredita em Deus, isso é
espontâneo e instintivo e é obrigatório por lei religiosa e
transcendente; e também para quem não tem essa dita de admitir a mão de
Deus protetora e vingadora de todos os seres humanos, é e deve ser
intuitivo, em virtude da dignidade humana, esse mesmo sentido do
sagrado, isto é, da intangibilidade própria de uma existência humana
vivente" (6). A invocação da lei natural é continuamente reiterada e
coloca as bases para a proposição da universalidade dos princípios
morais no campo da reprodução humana.
Os
documentos do episcopado brasileiro seguem na mesma linha de
argumentação dos papas e do Vaticano. Afirma-se a sacralidade da vida
humana, dom de Deus, deduzindo-se daí a ilicitude de todo e qualquer ato
abortivo. Em documento de 1984, a CNBB (7) propõe: "Por ser supremo dom
natural de Deus, toda vida humana deve ser preservada desde o primeiro
instante da concepção, sustentada, valorizada e aprimorada. São
inaceitáveis, como atentados contra a vida humana, o aborto diretamente
provocado, o genocídio, o suicídio, a eutanásia, a tortura e a violência
física, psicológica ou moral, assim como qualquer forma injusta de
mutilação" (7).
QUANDO SE INICIA A VIDA HUMANA?
As
intervenções do magistério da Igreja assumem como dado definitivo e
inquestionável que, desde a concepção, há uma vida humana em gestação. O
termo vida humana é utilizado, de forma ambígua, para significar
pessoa. Dessa definição da existência de uma pessoa humana desde o
primeiro momento da fecundação decorre que toda interrupção de gravidez
seja considerada como um verdadeiro homicídio. A ciência é invocada para
justificar a natureza totalmente humana e pessoal do embrião. Podem-se
distinguir duas tendências no uso dos dados científicos. Ambas partem do
reconhecimento pelos cientistas de que desde o momento da fecundação
existe uma realidade celular distinta do óvulo e do espermatozóide, o
zigoto, que dispõe de código genético próprio e é, indiscutivelmente,
vida humana.
Uma primeira tendência
deduz daí que o zigoto é pessoa humana, gozando de todos os direitos
inerentes a ela. Isto porque, possuindo um código genético completo, o
desenvolvimento do zigoto dá-se em um processo contínuo, sem interrupção
e por autogestão, culminando na pessoa humana, mesmo ainda no ventre
materno. Uma outra corrente desenvolve uma argumentação de caráter mais
filosófico. Considera o zigoto como pessoa humana em potencial, mas
equivalente – com o mesmo valor e os mesmos direitos – à pessoa humana
em ato, isto é, o indivíduo nascido.
Para
ambas as tendências acima, a interrupção de um processo gestacional é
considerado um ato homicida, seja porque tira a vida de uma pessoa
humana – o zigoto –, seja porque eliminar uma vida potencial equivale à
eliminação de uma vida em ato. O princípio moral que deve prevalecer é o
de deixar agir a natureza seguindo seu curso normal, isto é,
conduzindo, em um processo unívoco e contínuo, ao desenvolvimento de uma
pessoa humana.
Os documentos da Igreja
recorrem a essas afirmações de caráter supostamente científico para
legitimar sua defesa incondicional da continuidade de toda gestação,
seja considerando que desde a concepção há uma individualidade e,
portanto, uma pessoa humana, seja assumindo a identidade entre ser
humano em potencial e pessoa humana.
Vários
episcopados retomam os argumentos científicos como fonte de legitimação
de suas posições. Em 1971, aparecem declarações dos bispos americanos,
holandeses e franceses. Em 1974, os bispos austríacos escrevem ao
chanceler do país: "Os bispos viram suas posições reforçadas pelas
opiniões de especialistas da medicina". Também o episcopado alemão
manifesta-se em 1974: "A biologia moderna estabeleceu sem contestação
que não existe nenhum estágio pré-humano do embrião no seio materno." A
CNBB segue na mesma linha. Em documento datado de 1993, afirma:
"Cientificamente, já não restam dúvidas: o feto, no ventre materno,
distingue-se do corpo da própria mãe. É outro ser, é intocável" (8).
No
entanto, o documento da Congregação para a Doutrina da Fé restringe o
papel da ciência: "De resto, não pertence às ciências biológicas dar um
juízo decisivo sobre questões propriamente filosóficas e morais, como
são a do momento em que se constitui a pessoa humana e da legitimidade
do aborto." A Igreja se coloca como instância de julgamento ético acima
da ciência, chamando a si o direito de definir a moralidade da ação
abortiva: "Ora, sob o ponto de vista moral, isto é certo, mesmo que
porventura subsistisse uma dúvida concernente ao fato de o fruto da
concepção já ser uma pessoa humana: é objetivamente um pecado grave
ousar correr o risco de um homicídio. 'É já um homem aquele que o viria a
ser'" (9).
O RECURSO À TRADIÇÃO DA IGREJA
Os
argumentos acima – a defesa da vida e a concepção da existência de uma
pessoa humana a ser respeitada como uma individualidade ainda no zigoto e
no embrião – são propostos como parte imutável da doutrina eclesial. As
referências nesse sentido são inúmeras e reiteradas. Invoca-se a
tradição mais antiga, dos primórdios da Igreja, assim como os
ensinamentos mais recentes de papas anteriores e do Concílio Vaticano
II. A ideia repetida é a de que o aborto foi sempre condenado. Em 1973,
diz Paulo VI: "Bem sabeis que a Igreja sempre condenou o aborto, o que
os ensinamentos do nosso Predecessor de venerável memória Pio XII (...) e
os do II Concílio Vaticano (...) não deixaram de confirmar, com a sua
imutada e imutável doutrina moral" (4).
A
Declaração sobre o Aborto Provocado, de 1974, inicia com a rememoração
dessa condenação contínua: "Apoiada na Sagrada Escritura, a Tradição da
Igreja considerou sempre que a vida humana deve ser protegida e
favorecida desde o princípio, assim como nas diversas fases do seu
desenvolvimento. Nessa perspectiva, a ilegitimidade do aborto provocado é
um ensinamento constante e sem lacunas, que se pode encontrar nos
padres da Igreja, nos teólogos da Idade Média, em diversos documentos do
Magistério Episcopal e Pontifício. Todo aborto deve ser absolutamente
excluído" (9). Nesta Declaração, reconhece-se a existência de opiniões
divergentes e os fiéis são alertados para a distinção entre o que são
opiniões novas e o que é a doutrina apresentada com autoridade pela
Igreja: "(...) conta que todos os fiéis, incluindo mesmo aqueles que
possam ter se sentido abalados pelas controvérsias e pelas opiniões
novas, compreendam que não se trata de opor uma opinião a outra, mas sim
de transmitir-lhes uma doutrina constante do Magistério supremo, que
expõe a norma e os costumes, sob a luz da fé" (5).
A POSIÇÃO DA IGREJA NO BRASIL
Do
que se pode depreender dos documentos brasileiros, não há diferenças
notáveis em relação ao discurso do Vaticano. O que se pode perceber é um
aumento significativo de intervenções, em períodos chave no debate
público da questão em estudo. Nos anos 1980, por exemplo, quando o
movimento feminista se recompõe, se organiza e ganha força como
movimento social no cenário nacional, colocando reivindicações mais
radicais, como o direito ao uso prazenteiro do próprio corpo, ao
controle da capacidade reprodutiva pelas mulheres e ao aborto, os
pronunciamentos da CNBB, assim como de bispos individualmente,
multiplicam-se, tanto no nível interno da Igreja, como em manifestações
na grande imprensa.
A argumentação
utilizada para restringir a liberdade e autonomia das mulheres nesses
campos é, basicamente, a mesma encontrada nos documentos emanados da
Santa Sé. Nesse sentido, a CNBB se apresenta como seguidora das
orientações romanas.
A CONTRA-ARGUMENTAÇÃO CATÓLICA
Em
contraposição às proposições condenatórias do aborto encontra-se um
outro discurso católico, mais nuançado, que vai da explicitação da
dúvida sobre o posicionamento da Igreja até a justificativa da decisão
pela interrupção da gravidez como um comportamento moral e
religiosamente defensável. Por analogia com o que em sociologia política
se chama contrapoder (10), denominamo-lo contradiscurso, uma vez que
ele se constitui em contraposição a um discurso primeiro: o discurso
oficial da Igreja Católica em relação ao aborto e, mais amplamente, à
contracepção. Caracteriza-se por contestar os argumentos evocados pelo
discurso oficial, mas também por produzir um novo corpo argumentativo.
Nesse sentido, é um discurso mais diversificado do que o primeiro. Além
disso, tal contradiscurso não emana de um grupo organizado no quadro
institucional, como um corpo episcopal ou uma congregação romana, por
exemplo.
Contrariamente ao discurso
oficial que, como vimos, apresenta-se coeso como um bloco, propondo uma
palavra final sobre o assunto e tentando estabelecê-la em dogma, o
contradiscurso tem um caráter dialógico, pois não se apresenta como
definitivo e evita o tom dogmatizante.
A
seguir, apresentaremos o(s) contradiscurso(s) relacionado(s) aos
principais elementos apresentados na discussão realizada até aqui.
O RECURSO À TRADIÇÃO DA IGREJA
Diferentes
autores e autoras afirmam não ter havido, no cristianismo, uma posição
única e definitiva sobre o aborto. Recorrem a documentos do início da
Igreja para mostrar a evolução do pensamento eclesial e a diversidade de
posicionamentos adotada, bem como a história das discussões internas
entre teólogos/as e outros/as a respeito do tema em questão.
Nas
referências à tradição primitiva, o texto mais comumente invocado em
favor da afirmação de que a condenação absoluta do aborto no
cristianismo é parte de sua tradição mais antiga, é a Didaqué, a instrução dos doze apóstolos.
Trata-se de um manual catequético (11), possivelmente escrito na Síria,
no final do século I ou início do século II, para o ensino das verdades
religiosas. É o mais antigo documento cristão depois do Novo Testamento.
No entanto, mesmo em relação a esse documento, divergências podem ser
encontradas. Melo (12) discute a tradução feita do grego, afirmando que
este não diz "Não matarás o filho no seio de sua mãe", mas: "Não matarás
o filho em ruínas". Melo atribui à tradução divulgada "à intenção do
tradutor de referir estes textos ao aborto. Mas o faz indevidamente,
abusivamente, sem respeitar os critérios científicos de uma tradução
honesta".
O estudo dos primeiros
escritos cristãos – dos chamados padres da Igreja e dos teólogos dos
séculos iniciais do cristianismo –, mostra um panorama bastante
diversificado. Hurst (13), analisando a tradição da Igreja nesse campo
do aborto, encontra que a razão da condenação do mesmo era, de início,
ligada ao problema do adultério que a interrupção de uma gravidez
ocultaria e ao pecado da fornicação, isto é, do sexo realizado sem a
finalidade procriativa.
Para a maioria
dos autores da Igreja primitiva, afirma Melo (12), o aborto condenado
como pecado grave é aquele de um feto cuja forma é completa e, por isso,
possuidor de alma, lugar da semelhança com Deus, conforme a teologia da
época. Se o feto não estava animado, isto é, se ainda não lhe havia
sido infundida uma alma, não havia assassinato. O Concílio de Ancira, na
Ásia Menor (hoje, Ancara), por exemplo, em 314, distingue a pena
aplicada ao homicídio (até o fim da vida) da que é proposta para o
aborto, reduzindo-a para dez anos. São Jerônimo, no século IV, reconhece
que, até essa data, "não há doutrina oficial da Igreja sobre o tema da
animação do feto. Isto significa que, para os teólogos da época, era
perfeitamente válido assumir qualquer das duas hipóteses propostas",
isto é, da animação imediata ou tardia (12).
Em
relação a Agostinho (354-430d.C.), Wijewickrema (14) cita a conhecida
passagem do bispo de Hipona em favor da afirmação da distinção entre
feto animado e não animado: "Se o que é brought forth é informe, como uma espécie de ser vivo, uma coisa sem forma (informiter),
então a lei do homicídio não se aplicará, pois não se pode dizer que
haja uma alma viva no corpo que carece de sentidos, já que ainda não se
formou (nondum formata) e não está dotado de sentidos". Já Melo
(12), após analisar os comentários de Grisez aos textos agostinianos,
conclui: "Honesta e objetivamente não se pode afirmar que Santo
Agostinho assegure como certo que existe pessoa humana desde o primeiro
instante da concepção. O mais correto é ater-se ao que ele mesmo
assegura: que não sabe sobre o assunto mais do que aquilo que propõe São
Jerônimo. E já vimos que São Jerônimo coloca as diversas hipóteses
debatidas à época, mas não toma partido por nenhuma delas, reconhecendo
que não sabe quando sucede a animação".
Hurst
e Muraro lembram que, seguindo os textos da época, pode-se afirmar que o
aborto é um pecado passível de punição, porque revela a intenção de
ocultar a fornicação e o adultério. Para Santo Agostinho, diz Hurst
(13), o problema do aborto é que, tal como o controle da natalidade, ele
destrói a conexão necessária entre o ato conjugal e a procriação. Não
se trata de um homicídio, mas de um pecado sexual.
A
literatura penitencial iniciada na Igreja Celta, no século VI, tratou o
aborto como uma falta séria, mas impôs penas diversificadas, segundo os
costumes de cada lugar. Hurst (13) nota que, nesse catálogo de faltas e
de penalidades, o aborto era tratado como um possível ato pecaminoso e,
em geral, não estava entre os pecados mais graves. Faltas como a
adivinhação, o suborno e o roubo recebiam, muitas vezes, penas mais
severas.
Trabalhando com a hipótese da
animação tardia, comum à época, os catálogos penitenciais estipulavam
uma gama variada de castigos, sendo mais leve a pena quanto mais inicial
era a gestação interrompida. A diversidade de penas indica, assim, o
reconhecimento de uma diferença entre o fruto da concepção em seus
primeiros estágios e no correr de seu desenvolvimento. De acordo com
Melo (12), o importante é "comprovar que não há unanimidade na Igreja
sobre a interpretação do aborto em termos de homicídio. E que as
correntes teológicas de tempos anteriores sobre a animação do feto
refletem-se claramente na legislação penitencial eclesiástica, fazendo
variar as penas devidas ao aborto".
Ainda
no período que antecede o século XV, alguns documentos importantes da
Igreja são considerados pelos autores que vimos seguindo. Um deles, o Decretum Gratiani (Decreto de Graciano), provavelmente de 1140 d.C., também chamado Cânon Aliquando, serviu de base para a elaboração de um código de leis eclesiásticas: o Corpus Iuris Canonici.
Esse conjunto de leis proposto para toda a Igreja substituiu os
penitenciais, de caráter local, e permaneceu em vigor por quase oito
séculos. O Código de Direito Canônico só foi estabelecido em 1917 e o
atual, em 1983. O Código de Graciano teve profunda influência sobre os
procedimentos disciplinares na Igreja (11).
Para
o que nos interessa, o que importa reter é que também nesse código de
leis o aborto nos primeiros estágios de desenvolvimento do feto não é
considerado um homicídio. A penalidade canônica é prevista somente para o
caso do feto animado. Essa distinção entre feto animado e não animado
prevalecerá na legislação canônica por muitos séculos.
Nesse
período, dois papas adotam explicitamente, a posição de Graciano:
Inocêncio III e o Papa Gregório IX, com suas Decretais, ambos do século
XIII.
Deve-se notar também a posição
de San Antonino (1389-1459), moralista dominicano e arcebispo de
Florença (12). Além de manter a diferenciação já aludida, excluindo o
caráter de homicídio do aborto praticado no início da gravidez, remete a
decisão de recorrer ao aborto à consciência do médico, admitindo assim o
aborto terapêutico para impedir que a mulher morra no momento do parto.
No entanto, em caso de dúvida sobre a animação do feto, considera
moralmente incorreto o recurso ao aborto. Na Summa theologiae,
III, tit.7, cap.2 , lê-se: Se o feto não está animado, ainda que o
médico "impeça sua animação, não se produz a morte de nenhum ser humano,
e se seguiria o bem de salvar a vida da mãe". Portanto, o procedimento
do médico é, nesse caso, moralmente correto.
Chega-se,
finalmente, a São Tomás de Aquino (1225-1274), cujo pensamento teve
influência decisiva no desenvolvimento doutrinal cristão. Na esteira da
tradição antiga do cristianismo, Tomás de Aquino considera o aborto um
mal moralmente condenável, mas não necessariamente um homicídio.
Partindo de conceitos aristotélicos, Tomás de Aquino admitia um
desenvolvimento progressivo do embrião através de etapas sucessivas.
Primeiro, a vida é informada por uma alma vegetativa, "quando o embrião
vive como uma planta"; depois, esta "decai e surge uma alma mais
perfeita, que é, ao mesmo tempo, vegetativa e sensitiva, quando o
embrião vive uma vida animal". Só então, o embrião recebe uma alma
propriamente humana, racional e se torna um ser humano. Wijewickrema
nota que a palavra alma, no pensamento de Tomás de Aquino, refere-se ao
princípio vital e atende à especificação de toda forma de vida. (14,13).
Essa teoria filosófica de Tomás de Aquino, nomeada hilomorfismo, propõe
que "a alma é a forma substancial do corpo, mas uma forma substancial
só pode estar presente em uma matéria capaz de recebê-la. Assim, o óvulo
fertilizado, ou o early embrião não pode ter uma alma humana" (15).
A concepção hilomórfica do ser humano implica em uma hominização
tardia. Quer dizer, após a concepção, a passagem pelos sucessivos
estágios até chegar à alma racional levaria 40 dias, no caso de um feto
do sexo masculino, ou 80 dias, no caso de um feto do sexo feminino. Essa
ideia de que a alma racional necessita de todo esse tempo para
desenvolver-se levou-o a assumir, em relação ao aborto, a posição
referida acima: embora condenável, não pode ser qualificado de homicídio
quando levado a cabo no início da gestação.
Nos
séculos XVI e XVII, desenvolvem-se novas concepções no campo da moral.
Com base na ideia tomista do homicídio indireto, estabelece-se o
conceito de aborto indireto, hoje tratado por aborto terapêutico.
Admite-se que é moralmente válido administrar tratamento médico à
mulher, ainda que isso venha a causar a morte do feto. Trata-se então de
um efeito não procurado em si mesmo, mas provocado inevitavelmente como
consequência da utilização de medidas terapêuticas legítimas na
tentativa de salvar a mãe.
Muitos
teólogos medievais, segundo Wijewickrema (14), defendem a legitimidade
do recurso ao aborto quando a vida da gestante está ameaçada. Tratam
essa situação como uma exceção à norma tradicional cristã de respeito ao
ser humano em qualquer estágio de seu desenvolvimento. Sanchez, famoso
teólogo moralista jesuíta, defende, no século XVI, que o aborto de um
feto não animado é moralmente correto, não só no caso de perigo de morte
para a mulher, mas também em casos de grave prejuízo para a mesma (12).
Seu argumento é que, nesse caso, não se está matando uma pessoa humana
e, além disso, está se alcançando um grande benefício para a mulher.
Essa posição permanece durante todo o século XVI, começando a
modificar-se somente a partir do século XVII.
Durante
os séculos XVIII e XIX, a divergência em torno da distinção entre
aborto de feto formado e de feto não formado continua, ganhando força a
corrente de pensamento que defende a infusão de uma alma racional no
momento da concepção. Porém, ainda em 1713, estudando o problema do
batismo de fetos abortados, a Sagrada Congregação da Inquisição
Universal, depois chamada Santo Ofício (hoje, Congregação para a
Doutrina da Fé), determina: "Se existe uma base para pensar que o feto é
animado por uma alma racional, pode e deve ser batizado
condicionalmente. No entanto, se não existe tal certeza, não deve ser
batizado sob nenhuma circunstância." (13)
Finalmente,
em 1869, o Papa Pio IX adota explicitamente a teoria da personalização
imediata, condenando qualquer aborto e em qualquer estágio da gravidez,
determinando pena de excomunhão a quem quer que o praticasse. Essa
condenação absoluta do aborto, historicamente muito recente, mantém-se
como posição oficial da Igreja até os dias atuais.
Esse
apanhado histórico evidencia a existência de uma história do pensamento
sobre o aborto na Igreja Católica. Contrapõe-se, assim, à constante
afirmação do discurso oficial de que o recurso à tradição eclesial
conduz a um ensinamento único, que se mantém dos primórdios da Igreja
até hoje sem alterações.
O INÍCIO DA VIDA HUMANA
A
contra-argumentação relativa à questão sobre o fato de se estar, desde a
concepção, diante de uma pessoa humana recorre a dados científicos,
como o faz o discurso oficial, e critica a visão biologicista desse
discurso. Em relação aos dados científicos, há uma concordância em torno
da ideia de que eles não permitem afirmar com certeza a existência de
uma pessoa humana desde os primeiros momentos da fecundação. Parece, ao
contrário, mais provável que somente algum tempo após a concepção se
possa admitir estar diante de uma pessoa humana em gestação. A
argumentação aduzida em favor dessa concepção se baseia no fato de que
não basta a existência de um código genético – o DNA – no zigoto para
que se gere uma pessoa humana. Além disso, o desenvolvimento do zigoto
não se dá em um processo contínuo, pois há mudanças qualitativas
consideráveis no período embrionário. Nesse processo, entram em jogo
inúmeros elementos, endógenos e exógenos, de maneira que não se pode
argumentar que a pessoa está potencialmente no zigoto e que a passagem
ao ato de tornar-se pessoa será automática. Em termos morais, coloca-se
em questão a validade da obrigação moral de favorecer o processo de
passagem da potência ao ato, quando há indicações de graves problemas ao
término do processo (15).
Outro dado
científico levantado é o de que a individuação se dá na segunda semana
da gestação, no momento em que se dá a nidificação, ou fixação na
matriz. Ora, se filosoficamente o que constitui a pessoa é o fato de que
se trata de um indivíduo, uno e único, a fixação da individualidade não
pode se dar antes da nidificação. O dado científico em favor dessa
teoria é o de que, no caso da geração de gêmeos, a divisão do embrião em
dois indivíduos ocorre somente após esse processo (5).
Pode-se
ainda usar como argumento a ocorrência da perda extraordinária de
zigotos antes da fixação do óvulo fecundado. Calcula-se que em torno de
75% dos zigotos são eliminados antes de se implantarem na matriz. Esse
dado leva muitos estudiosos a se perguntarem se, de fato, a natureza
eliminaria tantas pessoas ou se esse processo não estaria
indicando, ao contrário, que não existem elementos estruturais no zigoto
que permitam reconhecê-lo como tal.
Finalmente,
o recurso à ciência leva à consideração do desenvolvimento da
consciência humana como critério para o estabelecimento da existência ou
não de uma pessoa humana. Seguindo Häring, lemos em Melo (12): "Desde
Teilhard de Chardin se reconhece que a hominização ocorre pela
emergência da consciência humana. (...) Quer dizer, reconhece-se que o
especificamente humano se dá com o surgimento da consciência. Afirma-se
que a realidade de transcendência que caracteriza o ser humano e o
diferencia de outras espécies animais é precisamente a consciência. Mas
não há possibilidade de consciência sem vida cerebral. Em outras
palavras, a hominização de cada ser humano supõe a 'emergência' ou o
surgimento de sua consciência". Ora, o substrato orgânico indispensável
para que possa existir consciência é o cérebro. A célula geradora do
córtex cerebral inicia seu desenvolvimento no 15º dia após a concepção e
somente em torno da 8ª semana está suficientemente desenvolvido para
que se possa detectar a atividade cerebral. Parece, assim, segundo esses
dados biológicos que só se pode propor a existência de uma pessoa
humana, a partir da existência do córtex cerebral, condição
indispensável para que haja consciência humana.
Para
mostrar a importância da consciência no estabelecimento da pessoa, Melo
propõe a hipótese de que se transplantassem todos os órgãos de um
indivíduo para um outro corpo: não haveria, nesse caso, um transplante
de pessoa. Mas se se chegasse a transplantar o sistema cerebral de um
corpo a outro, ocorreria certamente um transplante de pessoa (12).
Na
bibliografia recolhida a respeito dessa discussão, encontra-se um
número considerável de teólogos e outros especialistas católicos que
propõem que não se pode falar de pessoa humana em relação ao fruto de
uma concepção em seus primeiros estágios. Assim, Bedate (12) propõe que
somente após a 6ª ou 8ª semana se poderia admitir a existência de uma
pessoa. Para ele, apenas um acordo ético, racional, estabelecido em um
diálogo interdisciplinar pode chegar a definir o valor ético da
realidade humana em desenvolvimento. Propõe a busca de um novo paradigma
de valoração das realidades biológicas e de estabelecimento do que é ou
não natural. Também Sanchez (12) afirma que a discussão sobre o início
da vida humana não pertence à teologia, mas requer uma perspectiva
multidisciplinar.
Paul
Ladrière (16) discute a concepção biologicista que preside o pensamento
oficial católico no que diz respeito à reprodução humana. Referindo-se à
encíclica Humane Vitae, o autor nota que, nesse texto, as leis
biológicas relativas à reprodução foram utilizadas de uma forma tal que
se tornam normas de moralidade. O argumento biológico torna-se assim,
indevidamente, o fundamento da ética. Diz ele: nessa encíclica, "a
mulher é submetida às leis biológicas que a marcam em seu corpo. Jamais a
autoridade pontifícia havia ousado ir tão longe".
Roqueplo,
padre dominicano, também considera inadmissível que a biologia seja
colocada como fundamento da ética, ainda que a ciência nos ensine muito.
Tomando o caso da fertilização in vitro, Roqueplo mostra que, do
ponto de vista estritamente biológico, o fruto dessa fecundação é
idêntico ao da fecundação dita natural. Ora, essa identidade biológica
não é suficiente para se "transferir ao primeiro o caráter
verdadeiramente humano que, por hipótese, se atribui ao segundo". Então,
por que se considera lícito realizar experiências com embriões
desenvolvidos in vitro sem que se tenha o sentimento de estar
manipulando seres humanos? Sua resposta é que, nesse caso, sempre se
soube que o ser que se manipulava jamais seria uma pessoa humana. Apesar
da identidade biológica com o embrião natural, manifesta pela
possibilidade de sua implantação no útero de uma mulher, o embrião
manipulado nunca foi visto como um ser verdadeiramente humano. O autor
retira desse raciocínio a seguinte consequência: "Para que um embrião
'biologicamente' humano constitua, no sentido forte do termo, um ser
'verdadeiramente' humano, cuja vida deva ser respeitada, é preciso que,
de uma certa maneira, ele seja 'destinado a viver' e que esta destinação
'tenha um outro fundamento além da identidade biológica'. Em outras
palavras: é preciso que ele seja efetivamente destinado a tornar-se uma
pessoa humana; é preciso que se saiba capaz de 'fazê-la viver' , que
seja aceita e que haja uma decisão tomada (sobre sua introdução na
comunidade humana)".
Na mesma linha,
Ladrière, em um segundo artigo (17), volta a discutir a proposição
segundo a qual os processos naturais tornam-se lei moral e normas de
ação. A chamada lei natural é apresentada como expressão da vontade
divina, perdendo-se de vista sua dimensão histórica. No caso do aborto,
especificamente, Ladrière critica a postura hipermaterialista da
Igreja ao qualificar como humano o simples encontro do óvulo e do
espermatozóide, fundando o direito à vida sobre um dado estritamente
biológico. Invoca os opositores intraeclesiais da posição oficial,
segundo os quais a identidade biológica não pode ser o único critério
para se considerar humano um embrião. Este deve ser destinado a viver.
Além disso, um processo não deve ser respeitado unicamente por se tratar
de um processo natural.
Thibault distingue um óvulo fecundado de uma pessoa humana. "Fecundar um óvulo é relativamente fácil, seja in vitro,
seja 'ao vivo': exige apenas alguns segundos; enquanto que fazer uma
pessoa exige pelo menos 20 anos". Ela questiona se a questão do respeito
ao óvulo fecundado não seria uma fuga dos verdadeiros e graves
problemas colocados pela fabricação de um ser humano. Thibault faz a
seguinte observação: "conforme meu ponto de vista, é preciso considerar
que são, muitas vezes, as exigências da fabricação de uma verdadeira
pessoa humana que levam à obrigação de sacrificar um certo número de
óvulos fecundados, tenham sido eles fecundados artificialmente ou
naturalmente".
Ladriére (17) discute o
apoio do catolicismo oficial a partir da biologia para construir sua
filosofia natural. Além de referir o célebre biólogo Jaques Monod, para o
qual não há indivíduo até o 5º ou 6º mês da gestação, quando se forma o
sistema nervoso central, invoca outro cientista dessa área de estudo:
Y.F. Jacob. Ele afirma que não há solução para o problema do início da
vida, pois esta "não começa nunca, mas continua há cerca de 3 milhões de
anos. Um espermatozóide isolado ou um óvulo não é menos vivo que um
óvulo fecundado".
O autor busca,
então, outra instância distinta da biologia, que possa qualificar uma
vida como humana. Sua resposta (17) dirige-se à compreensão dos seres
humanos como fundamentalmente relacionais, cuja característica
distintiva é a capacidade de entrar em relação com o mundo e com outras
pessoas. É a relação de reconhecimento dos pais que chamam o filho a
nascer que "revela, se não instaura, o caráter humano do ser em
gestação. É o humano, não a natureza, o que humaniza". Conclui então que
a interrupção voluntária da gravidez, inaceitável como negativa de
humanização, pode ser socialmente justificável "se aparece como recusa
de provocar uma desumanização ou de criar uma situação desumana." Não se
pode elaborar de forma abstrata as normas relativas ao aborto. "Nesta
perspectiva, o aborto é uma possibilidade, ainda que desesperada".
As proposições de Roqueplo e Ladrière, como as de Thibault e outros, constituem o que alguns chamam de a posição francesa.
Caracteriza-se por ser das mais radicais, em termos da compreensão das
relações entre definição do que é propriamente humano e determinações
biológicas.
Ao discutir a argumentação
atual sobre a identidade do nascituro, Anjos (5), que se limita à
análise de textos de teólogos italianos contemporâneos, toma em
consideração as proposições de teólogos franceses, como os citados
acima, para os quais a interrupção de uma gravidez pode, em determinadas
situações, significar "a recusa de provocar uma 'desumanização' ou de
criar uma situação desumana" (5). Criticada por um lado, essa posição
foi aceita por muitos teólogos, ao menos entre os italianos examinados
pelo autor, como uma solução para o complexo problema do aborto. Anjos
observa que, segundo alguns desses moralistas, ainda que a distinção
entre vida humana e vida humanizada feita pelos franceses não encerre a
questão relativa ao momento da personalização do nascituro, tem um
reconhecido mérito: chama a atenção da argumentação moral "para as
gravidezes que se concluem com consequências muito distantes das ideais:
casos em que não existirá a relação entre filho e pais (como por
exemplo, a gravidez que termina com a morte da mãe, certos casos de
violência, nascimentos fora do matrimônio) e casos em que o filho não
teria o mínimo de condições psicofísicas para uma vida humana (como por
exemplo, graves deficiências de conformação embrio-fetal) permitem,
conforme aqueles mesmos autores, uma séria interrogação sobre a
moralidade do 'deixar ir avante' uma gravidez que se concluiria tão
desastrosamente" (5).
Em sua apreciação
da chamada posição francesa, Anjos julga que, embora seja discutível do
ponto de vista argumentativo propor que a identidade pessoal do
nascituro dependa da aceitação de terceiros, a consideração das
consequências de uma gravidez não deve ser dispensada na argumentação
moral sobre o aborto.
Outra
consideração do autor refere-se à incerteza quanto ao momento em que,
após a concepção, se pode falar da existência de uma pessoa humana. Como
estabelecer normas morais operativas quando se apresentam motivos para
se interromper uma gravidez? Anjos discute o argumento segundo o qual no
embrião há um "gérmen de vida", indicador da "intenção de Deus de ali
suscitar uma pessoa humana", concluindo-se daí uma norma proibitiva do
aborto. Tal argumentação tem validade, segundo Anjos, enquanto evidencia
o valor da vida humana e a insere no plano de Deus. Mas apresenta, por
outro lado, uma deficiência argumentativa quando propõe, como
decorrência, a proibição do aborto. A simples presença de "gérmen vital"
não é suficiente para se conhecer a "vontade de Deus", assim como uma
doença grave não é sinal necessário "da vontade de Deus que um ser
morra".
A DEFESA DA VIDA E A PROIBIÇÃO DE MATAR O INOCENTE
Um
dos contra-argumentos levantados em relação à defesa da vida feita pelo
discurso oficial católico foi apresentado acima e remete à discussão do
conceito mesmo de vida, considerado excessivamente preso ao seu caráter
biológico. Outros argumentos dizem respeito à incondicionalidade ou à
absolutização desse princípio. Teologicamente, a defesa incondicional da
vida é colocada pelo discurso tradicional, invocando-se a fórmula "só
Deus é o Senhor da vida". Já a abordagem de caráter filosófico invoca o
direito à vida, exprimindo-o na perspectiva da lei natural.
Callahan (18) discute, em texto de 1970, o uso do senhorio de Deus como
premissa na consideração da moralidade do aborto, em primeiro lugar
porque tal modo de conceber a interferência direta de Deus sobre a vida
das pessoas e sobre sua morte é teologicamente discutível. Retira-se
assim das pessoas a responsabilidade sobre o cuidado devido à vida
humana. Além disso, embora se possa aceitar como teologicamente correto
que "Deus é a fonte última do direito à vida, isto não resolve o
problema de 'como' os seres humanos devem respeitar esse direito ou como
enfrentar um conflito de direitos". Na decisão pela interrupção de uma
gravidez, entram em jogo outros importantes direitos a serem
respeitados. Não se pode, a priori, defender a primazia do direito à
vida sobre todos os outros direitos humanos.
Outro
problema colocado por esse tipo de argumentação é considerado: o
antropomorfismo teológico (15, 19). De acordo com essa compreensão, há
um envolvimento direto e imediato de Deus na causalidade humana. Isso
significa, por um lado, conceber a divindade como um agente que atua
diretamente no mundo e na vida das pessoas, equivalendo a outros atores
humanos. Significa, por outro lado, que as nossas responsabilidades de
decisão, muitas vezes angustiantes, podem ser transferidas para Deus. O
que a teologia propõe, ao contrário, é que a glória de Deus se manifesta
exatamente no agir racional da humanidade.
A
ideia do domínio de Deus sobre a vida conduz à proposição de que não é
lícito, sob hipótese alguma, "tirar diretamente a vida de um ser humano
inocente". No entanto, especialistas católicos em teologia e moral
discutem os termos dessa proposição. McCormick, por exemplo, (19) coloca
a seguinte questão: "Por que somente a morte diretamente provocada de
um inocente é considerada moralmente errada? Por que tal julgamento não
vale para qualquer assassinato?" Para ele, a única resposta possível é
que "em alguma situações de conflito (p.ex. autodefesa, guerra), matar
pode significar a melhor maneira de defender a vida mesma". Tal
conclusão assenta-se sobre uma avaliação dos efeitos de duas
alternativas possíveis. Julga-se o que aconteceria se alguns homicídios
não fossem permitidos. A proteção da ordem pública, no caso da guerra e
da pena de morte, e a proteção da própria vida, no caso da legítima
defesa, justificam a exceção à regra de que não se pode matar, porque as
alternativas, nos casos em questão, significariam uma multiplicação de
violações humanas, infrações e perda de vidas. Isto é, a alternativa à
permissão de matar seria "a vitória do pecado e sua gradual extensão,
com perda crescente de vida". Por isso, "por mais lamentável que seja,
se tirar uma vida é o único meio efetivo (de defendê-la), torna-se
aceitável fazê-lo."
Note-se assim que
não matar é um princípio moral formal, do qual deriva a aplicação: não
matar diretamente um inocente. A crítica relativa à absolutização do
princípio de defesa da vida respalda-se ainda no fato de que a mesma
Igreja admite, tradicionalmente, algumas exceções que põem em jogo a
pretendida incondicionalidade. Reconhece-se, na argumentação
tradicional, o aborto indireto, no qual se tira uma vida humana. Também é
moralmente justificado, no discurso oficial, o homicídio, nos casos de
legítima defesa, da guerra justa e da pena de morte (20).
O argumento segundo o qual, no caso do aborto, essa absolutização teria
validade porque se trata da vida de um ser inocente, na verdade não se
aplica. "Tratando-se de um valor primordial e fundamental, deveria valer
para todos, inocentes ou não, se, de fato, fosse um absoluto" (12).
AUTORIDADE MORAL DA IGREJA X AMORALIDADE DAS SOCIEDADES CONTEMPORÂNEAS
No
discurso oficial católico é recorrente a acusação de imoralidade ou de
amoralidade, lançada à sociedade moderna. O laxismo, o hedonismo, a
busca individualista do prazer são consideradas marcas características
das sociedades contemporâneas. Assim, o aborto seria a expressão de uma
sociedade incapaz de acolher as crianças. Pohier, sacerdote católico,
discute a afirmação eclesial da degradação da mentalidade atual, no que
diz respeito ao tratamento da infância, comparativamente ao que ocorreu
em tempos anteriores. Ele argumenta que, ao contrário, as sociedades
contemporâneas demonstram maior acolhida e atenção às crianças. Nossa
sociedade, diz ele, apesar de suas falhas, muitas vezes radicais, coloca
fortes exigências aos pais, à família e a outros grupos sociais em
relação a seus deveres para com a infância, prevendo mesmo punições para
os casos de desrespeito às normas estabelecidas nesse campo. Para ele, o
problema, na verdade, não é a discussão sobre o quanto é ou não
suficientemente boa a sociedade. Quando a Igreja coloca assim o
problema, ela falseia os dados da questão, tornando problemática sua
forma de argumentar.
Ainda em relação
ao julgamento negativo que faz a Igreja sobre quem se recusa a aceitar
que o aborto seja sempre, e em qualquer circunstância, uma falta grave e
um sinal de imoralidade, Pohier reage: "Digo apenas que pessoalmente,
me é impossível taxar globalmente os corpos médicos suíços, americanos,
russos, ingleses, tunisianos, japoneses, iugoslavos, suecos etc, taxar
as instâncias mais oficiais destes corpos médicos e a maior parte de
seus membros de imoralidade, porque eles não consideram o aborto sempre
contrário à ética médica ou à ética geral. É totalmente impossível, para
mim, taxar globalmente de imoralidade, a priori, todas as sociedades
que elaboraram legislações em que o aborto não é forçosamente um delito
ou um crime. (...) Como cristão, é-me impossível pretender que as
Igrejas anglicanas da Inglaterra, do Canadá, dos Estados Unidos, que as
Igrejas protestantes da Suíça, da Suécia e de outros países, nada
compreenderam do Evangelho porque elas consideram que o aborto
não é forçosamente e sempre um pecado que se deve evitar a todo o custo.
Não digo que é bem porque elas dizem que é bem. Digo somente que não
tenho o direito de agir como se não houvesse senão pessoas imorais,
grupos imorais, sociedades imorais que pensassem assim e que o problema é
mal colocado se começa por apresentá-lo dessa forma".
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao
confrontar as posições oficiais católicas em relação ao aborto e os
contradiscursos produzidos sobre o mesmo tema por teólogos, padres,
leigos, estudiosos e pesquisadores, é possível evidenciar não apenas as
contradições, ambiguidades e omissões do discurso oficial católico, mas
também observar que, apesar de o tema ser considerado polêmico, não pode
e não deve ser tratado como um dogma ou tabu. A discussão é essencial,
já que nos permite perceber que nem mesmo dentro da Igreja Católica
existe consenso sobre essa questão. Há interpretações distintas do
monolítico pensamento oficial.
Uma
discussão aberta e democrática sobre o aborto permitirá ver, conforme
mostra este texto, que há possibilidades distintas de se compreender
questões complexas, tais como as discutidas aqui sobre o início e o fim
da vida, entre outras. Não podemos lidar com a questão do aborto de
forma absoluta, tentando impor como verdade a todas e a todos,
independentemente de suas crenças e valores, aquilo que é fruto de uma
opinião ou de uma doutrina.
Diante do
exposto, é possível identificar bases éticas, morais e até religiosas
para se defender o direito de se optar pelo aborto, tanto quanto para
condená-lo. Dessa forma, a legislação brasileira, que ainda criminaliza o
aborto, promove uma coerção inadmissível e injustificável tanto do
ponto de vista filosófico, quanto social. E coloca em sofrimento
milhares de mulheres e homens que deveriam ter a liberdade de decidir,
segundo sua própria consciência, segundo seu livre arbítrio, por meio de
reflexão informada e coerente, e não sob a ameaça de prisão ou inferno.
A interrupção voluntária da gravidez amparada na legislação é uma
questão de justiça social, de democracia, de respeito aos direitos
humanos das mulheres e também, fundamentalmente, uma questão ética.
**Maria José Rosado-Nunes
é Phd em ciências sociais pela EHESS, Paris/França; professora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professora
visitante da Harvard University, em 2003; pesquisadora do CNPq;
coordenadora de Católicas pelo Direito de Decidir. Em 2005, foi indicada
pela Associação Mil Mulheres pela Paz, juntamente com outras 51
brasileiras, para receber o prêmio Nobel da Paz.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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20. Catecismo da Igreja Católica. Rio de Janeiro, Editora Vozes. 1993.
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Fonte - cienciaecultura
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