O teólogo Leonardo Boff vem defendendo o samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira, com o qual a escola vai passar pela avenida no Carnaval de 2020. “Eu
sou da Estação Primeira de Nazaré/ Rosto negro, sangue índio, corpo de
mulher/ Moleque pelintra no buraco quente/Meu nome é Jesus da Gente”,
diz a letra, dos compositores Manu da Cuíca e Luiz Carlos Máximo. A
composição traz uma referência clara ao presidente Jair Bolsonaro:
“Favela, pega a visão/ Não tem futuro sem partilha/ Nem messias de arma
na mão”.
Para Boff, a Verde-e-Rosa, que no ano passado foi
campeã também com um enredo de cunho social (“História pra ninar gente
grande”), retrata o Cristo histórico negado pela
tradição e por setores que se dizem cristãos, mas têm “uma fé só
cultural, e não uma fé no coração, como mudança de vida, como orientação
de vida”.
“Esse Jesus que enxuga as lágrimas, que abraça as crianças, que
conversa com a prostituta, pobre entre os pobres, o único verdadeiro e
real, que os quatro evangelhos testemunham, esse é o Jesus assumido pela Mangueira. Os cristãos e bispos tradicionalistas, a TFP etc., não aceitam Jesus
assim, porque se aceitassem tinham que mudar de vida, teriam que
auxiliar os pobres, lutar pela fraternidade, por uma sociedade mais
justa, menos desigual”, diz.
Na opinião do Teólogo, o enredo da escola “atualiza a figura de Jesus para a nossa situação, que é muito semelhante à situação da Galileia, da Palestina, na qual vivia o Jesus histórico”.
Para Boff, a parcela da sociedade que, embora se
professe cristã, apoia um governo que defende armar a população, por
exemplo, tem a visão “do cristianismo tradicional, colonial, que nos foi
trazida pela colônia, visão de que Jesus é o rei, o senhor, é Deus, e
todos nós sendo humilhados”. São esses os setores que acusam o enredo da
Mangueira de “blasfêmia”.
Essa tradição do período colonial nunca apresentou ao povo o Jesus
real, “crucificado, que apanhou como um escravo, foi humilhado e
perseguido, porque, lógico, isso o identificava com as vítimas”. “Esse
Jesus, testemunhado nos quatro evangelhos, esse é apresentado na
Mangueira”, afirma Boff.
"Francisco é o único na história dos papas que ataca de frente o sistema hegemônico mundial". Foto: Rede Brasil Atual - RBA.
A entrevista é de Eduardo Maretti, publicada por Rede Brasil Atual - RBA, 04-02-2020.
Eis a entrevista.
Como o sr. define um cristão que verdadeiramente segue Cristo?
Há duas concepções de Cristo. Uma que vê
Cristo-Deus, que só toca com a fímbria do manto na Terra, que sabe tudo,
é divino, o rei do Universo, tem a coroa de glória. Uma visão que foi e
é dominante na liturgia, no imaginário de bispos e padres. A segunda
visão é a dos evangelhos, que vê Jesus como o homem de
Nazaré, que foi um trabalhador da construção civil, que andava pelas
vilas pregando um grande sonho, a reconciliação das pessoas, e
fundamentalmente pregando o amor incondicional, a compreensão, o perdão.
Apresenta Deus como as crianças chamavam o avô, o pai, de paizinho
querido.
Esse Jesus é pobre, anda no meio dos pobres, cura os
doentes, sacia os famintos, foi caluniado, perseguido e morreu na cruz,
e depois ressuscitou. Se a gente escuta a maioria das homilias de
padres e bispos, a gente se pergunta: por que mataram Jesus? A prática desse Jesus
é libertadora, para libertar e consolar os pobres e humildes, os
prisioneiros, curar os doentes. Ele recebeu dois processos, um
religioso, dos TFPs daquele tempo, os sacerdotes, os
doutores da lei, os teólogos. E do lado político-romano, porque ele
prega o reino de Deus. E para os romanos só tem um rei, que é o Cesar,
em Roma. Falar em reino de Deus era um crime político. Por isso
escrevem na cruz dele INRI, Jesus Nazareno Rei dos Judeus, com desprezo.
Ele não morreu, ele foi morto, assassinado.
Como avalia a polêmica em torno do samba-enredo da Mangueira, considerado blasfemo por apresentar Jesus com a face do povo oprimido?
Esse Jesus que enxuga as lágrimas, que abraça as
crianças, que conversa com a prostituta, pobre entre os pobres, esse
Jesus, o único verdadeiro e real, que os quatro evangelhos testemunham,
esse é o Jesus assumido pela Mangueira. Os cristãos e bispos
tradicionalistas, a TFP etc., não aceitam Jesus
assim, porque se aceitassem tinham que mudar de vida, teriam que
auxiliar os pobres, lutar pela fraternidade, por uma sociedade mais
justa, menos desigual. É o Jesus da Teologia da Libertação. Então eles atualizam a figura de Jesus para a nossa situação, que é muito semelhante à situação da Galileia, da Palestina, na qual vivia o Jesus histórico.
Por que a polêmica sobre o samba da Mangueira e por que tantas pessoas que se dizem cristãs defendem as armas e a morte?
A maioria dos cristãos tem uma fé só cultural, mas não uma fé de
convicção. A visão do cristianismo tradicional, colonial, que nos foi
trazido pela colônia, visão de que Jesus é o rei, o senhor, é Deus, e
todos nós sendo humilhados. Nunca apresentaram o Jesus real, que foi
crucificado, que apanhou como um escravo, foi humilhado e perseguido,
porque, lógico, isso o identificava com as vítimas. Esses cristãos têm
uma fé só cultural, da tradição da cultura brasileira, mas não têm fé no
coração como mudança de vida, fé como convicção, como orientação de
vida.
O Evangelho diz que ele veio para os que eram seus, para nós, e os
seus não o receberam. Até hoje vale essa frase. Eles não querem o Jesus
humano, como os pobres, que anda com eles. Esse Jesus, testemunhado nos
quatro evangelhos, esse é apresentado na Mangueira. O outro é o Jesus
dos catecismos, das doutrinas, mas que não fala para o coração, não leva
às mudanças, à conversão das pessoas. A grande maioria da nossa elite e
da oligarquia, que segundo o Banco Mundial é a oligarquia que mais
acumula no mundo, a mais egoísta, todos são católicos. Muitos passaram
pelas universidades católicas, mas saem pra ser diretor de uma grande
empresa, não pra ajudar nas favelas, ensinar o povo descobrir suas
energias, se organizar etc. Eles entram no sistema de dominação.
Como explica a frase do Evangelho de Mateus na qual Jesus diz que não veio trazer a paz, mas a espada?
Jesus diz mais, até. “Eu vim trazer fogo, e quero
que ele arda” (Lucas, 12:49). “Eu vim trazer a espada”, “trazer a
separação de filho e pai, de irmãos”. Isto é, aqueles que se convertem à
fé verdadeira de Jesus cria conflito com a sociedade, com aqueles que
querem acumular, discriminar, odiar. São metáforas. São João usa treze
vezes a palavra “crise”. Jesus veio trazer uma crise no mundo. A pessoa
entrar em crise, tem que se decidir.
O que o sr. acha da informação de que, segundo o presidente argentino, Alberto Fernández, o Papa Francisco se dispôs a se encontrar o ex-presidente Lula?
Como em março vai ter aquela reunião sobre a “economia de Francisco” (em Assis, na Itália), vai-se tratar da economia da igualdade, da solidariedade, então o papa está interessadíssimo, e Lula
quer contar uma experiência, não vai discutir ideias. Como ele fez para
incluir 36 milhões de pessoas com as políticas sociais? Então o papa
está interessado em se encontrar com Lula, e Lula da mesma forma, ele é um grande admirador do papa, de sua política a favor dos pobres.
Qual a importância dessa proposta por parte do papa Francisco e da reunião em março, por uma economia “que dá vida e não mata”?
O sentido do encontro em Assis é que lá vão estar grandes nomes da economia mundial, Stiglitz, Muhammad Yunus, (a ativista) Vandana Shiva, que apoiam essa economia de Francisco.
O papa quer que eles se encontrem não para escutar celebridades, ele
quer jovens que troquem experiência entre eles, e elaborem uma proposta
alternativa a essa economia que está aí, e dê alma à economia, para que
ela não seja destruidora da vida, não seja assassina, em função das
futuras gerações.
Como vê o papel do papa Francisco hoje no mundo?
Acho que é o único líder político, ético e religioso da humanidade hoje. Porque ele não fala para o Ocidente; escreveu encíclica para a ecologia,
sobre o cuidado da “casa comum”, não para os cristãos, mas para toda a
humanidade. É aquele que claramente assume a causa dos pobres e denuncia
o capitalismo. Ele não usa a palavra capitalismo para não irritar os
católicos americanos que acreditam no capitalismo, mas a ideologia que
adora o dinheiro, que produz a morte, que sacrifica a natureza, que vai
atrás de acumulação sem limite, essa é a economia de morte.
Francisco é o único na história dos papas que ataca
de frente o sistema hegemônico mundial e toma a posição das vítimas,
defende os pobres do mundo, um novo tipo de relação com a terra, não de
uso, mas de cuidado, para que se possa atender a toda humanidade, e não
só os ricos. É uma grande figura carismática, que impressiona os
políticos, dá uma dimensão ética às relações humanas e ao mesmo tempo
eleva à dimensão espiritual religiosa das pessoas.
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