Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
domingo, 3 de maio de 2020
Bispos ou sacerdotes podem proibir a comunhão na boca? Qual é a legislação da Igreja a respeito?
Concílio de Trento – Anônimo, séc. XVI. Museu do Louvre, Paris.
Por Padre David Francisquini
Pergunta— Devido à ameaça de epidemia do
coronavírus, o bispo da minha diocese impôs que a Sagrada Comunhão seja distribuída
exclusivamente na mão dos fiéis, e não mais na boca. Chama-me a atenção que, no
mesmo comunicado, proíbe-se o costumeiro aperto de mão na saudação da paz. Se o
contato com a mão transmite o vírus, seria lógico proibir também a comunhão na
mão, porque o padre poderia estar contaminado, não é? Essa contradição me leva
a suspeitar que alguns bispos estejam querendo aproveitar a crise sanitária para
tentar acabar com a distribuição da comunhão na boca, que é o modo tradicional.
Há muitos anos sou “mal visto” por vários sacerdotes, por não receber a
comunhão na mão, e tenho sido interpelado algumas vezes para “fazer como os
demais”. Esses padres alegam que na Igreja primitiva se comungava desse jeito,
e que o fato de não se permitir aos fiéis tocar na hóstia, como se fazia antes,
estabelecia uma distinção excessiva entre os leigos e o clero, dando a entender
que os padres eram virtuosos e os fiéis eram pecadores. Gostaria de saber se
isso é verdade, e qual é a legislação da Igreja sobre a distribuição da
comunhão. Resposta — O Concílio de Trento declarou que o
costume de o sacerdote celebrante comungar de suas próprias mãos, e depois
distribuir a hóstia aos fiéis, é uma tradição apostólica (sess. 13, c. 8). São
Basílio (330-379) informou que só era permitido receber a comunhão das próprias
mãos em tempos de perseguição ou no caso dos monges do deserto — ou seja,
quando não havia nem sacerdote nem diácono para dar a comunhão (Carta 93). Com
a paz de Constantino essa exceção acabou, pois foi permitido à Igreja sair das
catacumbas. Provavelmente isso era desrespeitado em alguns lugares e cometiam-se
abusos, porque no ano 650 o Concílio de Rouen definiu: “Não coloques a Eucaristia nas mãos de um leigo ou de uma leiga, mas
unicamente na sua boca”. De fato, à medida que a Igreja foi tomando
consciência de quão augusto é o tesouro que Nosso Senhor lhe deixou com o
Sacramento da Eucaristia — seu Corpo e Sangue realmente presentes nas espécies
consagradas do pão e do vinho —, Ela foi aos poucos aperfeiçoando seu modo de celebrar
a Missa, a assiduidade e o modo de distribuir a Sagrada Comunhão, assim como de
conservar e transportar o Santíssimo Sacramento. Basta citar, por exemplo, que
os primeiros cristãos celebravam a Missa no mesmo local da refeição fraterna
que tomavam em comum (ágape), e logo depois de terem comido. Ainda no século V,
São Paulino de Nola testemunha a existência desse tipo de reuniões à mesa, não inteiramente
separadas da celebração; e foi somente no segundo milênio que se tornou mais
rígida a regra do jejum eucarístico prévio à recepção da Sagrada Comunhão.
Certeza
da presença de Jesus na hóstia santa
Concomitantemente foi se impondo o
costume de dar a comunhão na boca, pela certeza de que o Corpo de Nosso Senhor
estava tão presente numa pequena fração quanto numa hóstia inteira, como
belamente escreveu Santo Tomás de Aquino no hino Lauda Sion: “Quando a hóstia
é dividida, não vaciles, mas recorda que o Senhor encontra-se todo debaixo do
fragmento, tanto quanto na hóstia inteira”. Ora, durante a distribuição da
Sagrada Comunhão é frequente separarem-se da hóstia pequenos fragmentos, e é
por isso que o coroinha deve sempre colocar a patena sob o queixo do
comungante, a fim de recolher os fragmentos que eventualmente se desprendem da
hóstia. Voltando ao altar, o sacerdote limpa a patena, derramando esses minúsculos
fragmentos dentro do cálice a ser purificado mediante as abluções. Essa consciência crescente da presença
miraculosa de Jesus na hóstia, e da necessidade de recebê-Lo com a reverência
devida, levou também a Igreja a impor aos fiéis recebê-Lo de joelhos, em sinal
de adoração. É um sinal exterior para prestar-Lhe homenagem e saudá-Lo com o nosso
corpo, num gesto de humildade. A recepção na boca é também um sinal de infância
espiritual, pois da mesma forma que as crianças abrem a boca para receber o
alimento, abrimos a boca para receber da mão do sacerdote o nosso alimento
espiritual. E o sacerdote celebra a Missa “in
persona Christi”, ou seja, ao celebrar, assume a própria pessoa de Cristo. Esses
gestos de humilhação se fazem, portanto, diante do próprio Deus; e longe de
rebaixar, engrandecem quem os pratica, porque são atos de adoração e de
reverência a Deus.
Cumprir
com santo zelo os deveres religiosos
O
inexplicável é que, depois do Concílio Vaticano II, a comunhão na mão e
outros modos de proceder protestante tenham começado a se infiltrar na
Igreja Católica.
No século VI, na Igreja de Roma, a santa
hóstia já era depositada diretamente na boca dos fiéis, segundo o testemunho de
São Gregório Magno ao contar um milagre de Santo Agapito (Diálogos, livro 3°). E foi na Idade Média que se generalizou a
recepção de joelhos, como afirma São Columbano, monge irlandês que cristianizou
os escoceses. A partir da Idade Média, os fiéis
tiraram grande proveito espiritual desses gestos de reverência diante das
espécies eucarísticas. Basta pensar na instituição da festa de Corpus Christi pelo Papa Urbano IV, em
1264. O primeiro grande fruto desse aperfeiçoamento no trato da Eucaristia foi
o aumento da fé na Presença Real de Nosso Senhor no pão e no vinho consagrados,
que se transformam no Corpo e no Sangue do Salvador. O segundo grande fruto foi
o aumento da piedade, sendo reconhecido que a perfeição da virtude da religião
produz nas almas um afeto filial para com Deus e uma terna devoção às Pessoas
divinas, aos santos, à Igreja, às Sagradas Escrituras, etc., levando-as a
cumprir com santo zelo os deveres religiosos.
Infiltração
de costumes protestantes na Igreja
Esse movimento de fervor foi crescendo
na Igreja Católica ao longo dos séculos e marcadamente a partir do século XVI
em oposição às heresias de Lutero e seus sequazes. Todas as seitas protestantes negam a transubstanciação,
ou seja, negam que o pão e o vinho tornam-se o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor,
perdendo sua substância e ficando deles somente os acidentes. Algumas seitas dizem
que a presença de Cristo é apenas espiritual, enquanto outras sustentam que,
durante a cerimônia, seu Corpo e Sangue se unem à matéria das espécies, mas a
substância do pão e do vinho permanece íntegra. Negam também o caráter de
sacrifício da Santa Missa; e como consequência, negam o sacerdócio como uma
ordem sagrada para realizar o sacrifícioin
persona Christi. Daí a equiparação dos fiéis aos pastores, que são meros
pregadores. O resultado da disseminação dessas
heresias foi a transformação do altar numa mesa, colocada na frente ou no meio
dos participantes, e o fazerem uma fila para ir pegar eles mesmos com a mão o
pão e o vinho diretamente sobre a mesa. Na óptica herética deles, tudo isso se
explica porque o culto é principalmente uma pregação; e a “comunhão” é
simplesmente partilhar um pão e vinho não transubstanciados onde haveria uma
vaga presença espiritual de Cristo. O inexplicável é que, depois do Concílio
Vaticano II, muito desse modo de proceder protestante tenha começado a se infiltrar
na Igreja Católica. O documento crucial para o abandono da
maneira tradicional de receber a Comunhão foi a Instrução Memoriale Domini, publicada pela Sagrada Congregação para o Culto
divino em 29 de maio de 1969. Ela explicava que um número reduzido de bispos havia
pedido a admissão da comunhão na mão; mas, tendo sido interrogados todos os
bispos do mundo pelo Papa Paulo VI, apenas um quarto deles aprovaram essa novidade. A Instrução acrescentava que, em
consequência do que se disse acima, “o
Santo Padre decidiu não mudar a forma existente de administrar a Sagrada
Comunhão aos fiéis”. Porém aduzia duas linhas adiante: “Onde um uso contrário, o de colocar a Sagrada Comunhão nas mãos prevalece”(?!), as Conferências episcopais devem
avaliar “qualquer circunstância especial
que possa existir”, e “devem tomar
quaisquer decisões” para “regular as
situações” (ou seja, regularizar os abusos!). O caráter insincero da Instrução ficou
claro numa nota anexa, na qual se dizia que “o
rito da comunhão nas mãos deve ser introduzidocom discernimento”, “gradualmente”, “começando com grupos mais instruídos e
mais bem preparados” por meio de “uma
adequada catequese” que “prepare o
caminho”. Como se tratava apenas de um indulto, as
Conferências episcopais deviam aprovar uma resolução por maioria de 2/3, fazendo
um pedido à Santa Sé. A imensa maioria acabou introduzindo essa forma de
distribuição, de maneira que se tornou o costume prevalente na Igreja latina
nos cinco continentes. A formulação mais recente da legalização
dessa anomalia é contida na Instrução
Geral do Missal Romano de 2002: “Não
é permitido que os próprios fiéis tomem, por si mesmos, o pão consagrado nem o
cálice sagrado, e menos ainda que o passem entre si, de mão em mão. Os fiéis
comungam de joelhos ou de pé, segundo a determinação da Conferência Episcopal.
Quando comungam de pé, recomenda-se que, antes de receberem o Sacramento, façam
a devida reverência, estabelecida pelas mesmas normas”. E mais adiante: “Se a Comunhão for distribuída unicamente
sob a espécie do pão, o sacerdote levanta um pouco a hóstia e, mostrando-a a
cada um dos comungantes, diz: O Corpo de Cristo ou Corpus Christi. O comungante responde: Amém, e recebe o
Sacramento na boca; ou, onde for permitido, na mão, conforme preferir”. A
liberdade de escolha foi reiterada pela Congregação para o Culto divino em sua Instrução
Redemptionis Sacramentum, de 2004, a
qual diz, de maneira assaz enviesada: “Ainda
que todo fiel tenha sempre direito a escolher se deseja receber a sagrada
Comunhão na boca, se o que vai comungar quer receber na mão o Sacramento, nos
lugares onde Conferência de Bispos o haja permitido, com a confirmação da Sé
apostólica, deve-se administrar-lhe a sagrada hóstia”.
Argumentação
contra a comunhão na mão
Dom Athanasius Schneider,bispo auxiliar de Astana (Cazaquistão)
Dois bispos se têm destacado nos
esforços para eliminar o abuso da comunhão na mão, argumentando que um
“indulto” foi transformado em regra geral; e os que respeitam a regra litúrgica
passaram a ser tratados como indultados. Dom Juan Rodolfo Laise, recentemente
falecido, proibiu a comunhão na mão em sua diocese de San Luis (Argentina); e
Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana (Cazaquistão), escreveu dois
livros sobre o assunto e promoveu uma resolução de sua Conferência episcopal,
proibindo a comunhão na mão em toda a região. No livro Corpus Christi, a comunhão na mão no coração da criseda Igreja, Dom
Schneider declara que em nossos dias essa prática é “a mais profunda laceração do Corpo Místico da Igreja de Cristo”, porque
acarreta quatro consequências, cada qual mais grave que a outra: ●
Minimiza os gestos de adoração visível; ●
Nas crianças e nos adolescentes que não conheceram o modo tradicional de
recepção, cria a ideia de que a Eucaristia é um alimento comum e apenas um
símbolo; ●
Permite perdas importantes de parcelas de hóstias, que caem por terra e são
profanadas involuntariamente; ●
Favorece o roubo de hóstias para atos sacrílegos. Além do que foi exposto acima, pode-se
ainda acrescentar algo a mais: é que essa prática leva os fiéis à indiferença e
à perda da fé, pois aquelas mesmas mãos que depositaram o dinheiro na coleta
vão tocar a hóstia consagrada. Aos poucos, isso induz a pessoa a colocar o
dinheiro e a hóstia no mesmo nível, relativizando o valor infinito da Sagrada Eucaristia.
Devemos
ressaltar que Nosso Senhor Jesus Cristo, realmente presente e em pessoa, é a
vítima dessas quatro atitudes deploráveis. Em
resposta àqueles que dizem que a obrigação de receber a comunhão na boca violaria
seus direitos de “cristão adulto”, Dom Athanasius contesta: “Esses
supostos direitos violam os direitos de Cristo, o único Santo, o Rei dos Reis:
Ele tem o direito de receber a excelência das honras divinas, mesmo na pequena
e santa hóstia. Todas as razões em favor da prática da comunhão em pé e na mão
perdem toda consistência diante da gravidade da situação evidente de minimização
do respeito e da sacralidade, diante do descuido pelas parcelas eucarísticas
que caem por terra e diante do fenômeno crescente do roubo de hóstias
consagradas". “Acima
de tudo, qualquer argumento em favor da manutenção da prática da comunhão na
mão perde todo fundamento em consideração da diminuição (para não dizer
desaparecimento) da integridade da fé católica na Presença Real e na
transubstanciação. Tal prática moderna, que jamais existiu na Igreja sob essa
forma exterior concreta, acaba incontestavelmente por enfraquecer a plenitude
da fé católica na Eucaristia”.
A
lição da aparição do Anjo aos pastorinhos de Fátima
O
Anjo apareceu-nos pela terceira vez, trazendo na mão um cálice e sobre
ele uma Hóstia, da qual caíam dentro do cálice algumas gotas de Sangue.
[Foto: Frederico Viotti]
Como recurso de contraste salutar, convém
lembrar a terceira aparição do anjo aos três pastorinhos de Fátima. De um lado ela
nos mostra a reverência que se deve ter em relação à Sagrada Eucaristia; e de
outro, o quanto Nosso Senhor é ofendido pelos sacrilégios. Eis o relato da Irmã
Lúcia: “O
Anjo apareceu-nos pela terceira vez, trazendo na mão um cálice e sobre ele uma
Hóstia, da qual caíam dentro do cálice algumas gotas de Sangue. Deixando o
cálice e a Hóstia suspensos no ar, prostrou-se em terra e repetiu três vezes a
oração: ‘Santíssima Trindade, Pai, Filho, Espírito Santo, adoro-Vos
profundamente e ofereço-Vos o preciosíssimo Corpo, Sangue, Alma e Divindade de
Jesus Cristo, presente em todos os sacrários da Terra, em reparação pelos
ultrajes, sacrilégios e indiferenças com que Ele mesmo é ofendido. E pelos
méritos infinitos do Seu Santíssimo Coração e do Coração Imaculado de Maria,
peço-Vos a conversão dos pobres pecadores’. “Depois,
levantando-se, tomou de novo nas mãos o cálice e a Hóstia e deu-me a Hóstia a
mim; e o que continha o cálice, deu-o a beber à Jacinta e ao Francisco, dizendo
ao mesmo tempo: ‘Tomai e bebei o Corpo e Sangue de Jesus Cristo, horrivelmente
ultrajado pelos homens ingratos. Reparai os seus crimes e consolai o vosso
Deus’. “De
novo se prostrou em terra e repetiu conosco mais três vezes a mesma oração: ‘Santíssima Trindade… etc’. E desapareceu”. Peçamos a Nossa Senhora de Fátima que obtenha
o quanto antes de seu divino Filho ser fechada na Igreja, que é o seu Corpo
Místico, essa chaga da comunhão na mão, sintoma de tanta indiferença e causa de
incontáveis ultrajes.
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