Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
sábado, 2 de maio de 2020
O coronavírus, a hora da morte e a esperança cristã
Se estamos unidos a Cristo, não precisamos temer os horrores deste
mundo. Eles não podem tirar a vida que está dentro de nós, não podem nos
privar da nossa alegria, não podem nos roubar a esperança que nos
preenche: a esperança da vida eterna.
Por Scott Hahn, Tradução: Equipe Christo Nihil Praeponere
Para muitos de nós a morte se tornou muito menos abstrata, e a vida, bem mais incerta [1]. A situação na qual nosso mundo inesperadamente se encontra é inédita sob vários aspectos. Penso, é claro, em 11 de setembro de 2001. Ainda me lembro do choque e
da tristeza que senti quando vi as Torres Gêmeas caírem. Também me
lembro da incerteza dos dias que se seguiram. Naquela ocasião, não
sabíamos se e quando os ataques terminariam. Não sabíamos o que os
terroristas ainda tinham reservado para nosso país. Só sabíamos que, em
poucas horas, milhares de nossos compatriotas haviam sofrido mortes
terríveis. E estávamos assustados. Para muitos de nós, o 11 de setembro foi um alerta — uma lembrança de
que nossas vidas confortáveis e estáveis poderiam ser destruídas num
instante, que a morte pode estar sempre muito próxima e que nada neste mundo é certo, muito menos o dia de amanhã.
Scott Hahn, autor destas linhas.
Logo depois que as Torres caíram, Kimberly e eu reunimos nossos
filhos para rezar. Como nós, eles também estavam tentando entender o que
havia acontecido, e Hannah, que acabara de fazer treze anos, me fez uma
pergunta. “Pai,” disse ela, “preciso saber: vamos todos morrer?” “Sim,” respondi. “100%. Sem dúvida.” Todas as crianças me olharam assustadas. Fiz uma pausa. Em seguida,
continuei. “Todo o mundo morrerá, Hannah. Mas creio que não será hoje”. Acrescentei: “Mas o importante — a verdadeira questão — não é o fato de que morreremos, mas saber se estamos preparados para morrer”. Mais tarde, depois que terminamos nossas orações, retomei a pergunta
de Hannah. Expliquei que, embora a taxa de mortalidade para cada um de
nós fosse de 100%, a de imortalidade também era de 100% para cada um. A
morte não é o fim. Para ninguém. Cada pessoa que já viveu ainda está viva num ou noutro estado — o de graça ou de desgraça. Então, citei o sermão de São John Henry Newman sobre “A Individualidade da Alma”. Neste sermão, ele nos recorda o seguinte:
Todos aqueles milhões e milhões de seres humanos que,
sucessivamente, já pisaram a terra e viram o sol estão vivos e juntos
neste exato momento. Creio que vocês reconhecerão que não compreendemos
isso adequadamente. Todos aqueles cananeus que foram mortos pelos filhos
de Israel, cada um deles está em algum lugar do universo neste momento,
num lugar designado por Deus.
Não tenho certeza de qual foi a impressão que o sermão de Newman
deixou nas crianças naquela ocasião, mas fiquei pensando na visão das
massas da humanidade — de Adão e Eva, passando pelos homens e mulheres
que morreram em 11 de setembro, até as pessoas que, enquanto escrevo,
estão morrendo por causa daquele terrível vírus que literalmente tira
nosso fôlego. Enquanto vejo o desenrolar das notícias, não posso deixar
de pensar em todas aquelas pessoas que ainda estão vivas, esperando, aguardando, com medo ou esperança, o Último Dia.
Da maldição à bênção. — Depois da morte, a ponte que separa a
esperança do medo é intransponível. Todos os que já morreram e esperam o
Juízo Final sabem o que acontecerá. Sabem que seu corpo ressuscitará
para a morte ou para a vida. Aqueles que esperam têm certeza de sua
esperança. Aqueles que temem têm certeza de seu medo. Todos sabem o que
escolheram livremente em vida — Céu ou inferno — e sabem que o momento
de fazer outra escolha já passou. Cristo Juiz declarou seu destino, e
ele está selado.Mas aqui e agora o abismo entre esperança e medo pode ser cruzado.
Não precisamos temer o fim desta vida terrena. Não precisamos viver
aterrorizados com o que virá depois de fecharmos nossos olhos pela
última vez. Não importa o quanto nos afastamos de Deus, não importa
quantas vezes nos voltamos contra Ele e seus caminhos, ainda temos tempo
para fazer outra escolha. Como o filho pródigo, podemos voltar para a
casa do Pai, sabendo que Ele nos acolherá de braços abertos e
transformará o medo da morte em esperança de vida. Evidentemente, o medo que muitos de nós temos da morte é natural. Não fomos feitos para a morte, mas para a vida. No entanto, Jesus veio nos libertar do medo da morte.
A obediência amorosa que Ele ofereceu na cruz expiou nossos pecados e
abriu as portas do Céu para todos os que O seguiram. Mas ela também
mudou o sentido mesmo da morte para aqueles que se uniram a Ele.
“Transformou a maldição da morte numa bênção”, fazendo da morte a porta
que leva à vida eterna com Deus (Catecismo da Igreja Católica, n. 1009). Citando São Paulo, o Catecismo explica ainda:
Graças a Cristo, a morte cristã tem um sentido positivo. “Para mim, viver é Cristo e morrer é lucro” (Fl 1, 21). “É digna de fé esta palavra: se tivermos morrido com Cristo, também com Ele viveremos” (2Tm
2, 11). A novidade essencial da morte cristã está nisto: pelo Batismo, o
cristão já “morreu com Cristo” sacramentalmente para viver uma vida
nova; se morremos na graça de Cristo, a morte física consuma este
“morrer com Cristo” e completa assim a nossa incorporação nEle, no seu
ato redentor: pelo Batismo, o cristão já “morreu com Cristo” sacramentalmente para viver uma vida nova;
se morremos na graça de Cristo, a morte física consuma este “morrer com
Cristo” e completa assim a nossa incorporação nEle, no seu ato redentor
(n. 1010).
Isto é, para aqueles que morrem na graça de Cristo, a morte não é um
ato solitário; é uma “participação na morte do Senhor”, e quando
morremos com o Senhor, também ressurgimos com Ele; participamos de sua
Ressurreição (cf. n. 1006). Essa participação muda tudo. A liturgia da Igreja nos recorda isso. Tuis enim fidelibus, Domine, vita mutatur, non tollitur, escutamos o sacerdote dizer nas Missas de defuntos. “Para os vossos fiéis, Senhor, a vida é transformada, não tirada, e, se lhes é destruída a morada desta habitação terrestre, está-lhes preparada nos céus uma habitação eterna”.
Quando sabemos que a morte não é o fim, quando sabemos que a morte é apenas o início da alegria,
vida e comunhão eternas com Aquele que amamos, a esperança afasta o
medo. Ela leva-nos a ansiar pela morte, a desejar estar com Cristo num
mundo onde não há sofrimento, dor nem perda. Por isso São Francisco
podia rezar assim:
Louvado sejas, meu Senhor, pela nossa irmã a morte corporal, à qual nenhum homem vivo pode escapar. Ai daqueles que morrem em pecado mortal! Bem-aventurados os que ela encontrar a cumprir as tuas santíssimas vontades, porque a segunda morte não lhes fará mal (Catecismo, n. 1014).
Saber que a morte não é o fim nos leva a ansiar por algo mais. Leva-nos a querer compartilhar nossa esperança com outros.
Os
primeiros cristãos — nossos pais e mães na fé — não temiam a morte;
esperavam por ela. Muitos deles a buscavam, desejando apenas começar o
que C. S. Lewis descreveu em A Última Batalha como o “Capítulo um da Grande História, que ninguém na terra leu; que dura para sempre; e na qual cada capítulo é melhor que o anterior”.
“Glória do Cristo recém-nascido”, da Igreja de Sant’Ana, em Viena.
Muitas
vezes as pessoas se referem ao Evangelho ou mesmo à história da
salvação como “a maior história já contada”. Mas não é verdade. É apenas
uma introdução ou um prelúdio. O que virá depois desta vida, quando os
bem-aventurados entrarem na visão beatífica e virem pelos olhos do Pai a
história de sua vida, da vida de todas as pessoas, do mundo inteiro,
aquela será a maior história já contada, à qual pertencem todas as
outras histórias, a história que dá sentido a todas as outras, a
história que esperamos escutar durante toda a vida.
Neste exato momento, somos chamados como cristãos a imitar os
primeiros cristãos. Podemos ou não ser chamados a correr na direção da
morte numa arena ou numa ala de hospital. Mas certamente somos chamados a deixar nosso medo de lado e a viver com esperança.
Somos chamados a esperar que veremos nossos entes queridos novamente e a
esperar que, junto deles, um dia descansaremos nos braços do nosso Pai.
Somos também chamados a esperar em Deus, que tomou o maior ato de
maldade já perpetrado — a crucifixão de Nosso Senhor — e tirou dele o
maior bem que o mundo já conheceu: a redenção da humanidade. Se Deus
pode tirar o bem, a glória, a beleza e a vida desse tipo de maldade, com
certeza pode tirar o bem, a glória, a beleza e a vida do mal que
enfrentamos hoje.
A esperança é o que nos sustentará nos próximos dias. Ela também nos
ajudará a viver a alegria no dia de hoje, não importa que sofrimentos
nos aflijam atualmente.
Mais uma vez: a morte não é o fim. Fomos feitos para a vida, para a
alegria. E em Cristo essa vida e essa alegria serão nossas. Em Cristo,
elas já são nossas. A morte traz a concretização delas, mas já podemos vivê-las agora, mesmo no meio da tristeza, da guerra, das pragas, da pobreza e da confusão.
Se estamos unidos a Cristo, não precisamos temer os horrores deste
mundo. Eles não podem tirar a vida que está dentro de nós, não podem nos
privar da nossa alegria, não podem nos roubar a esperança que nos
preenche — a esperança da vida eterna.
“Onde está, ó morte, o teu aguilhão?” (1Cor 15, 55).
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