Na foto tirada na planície de Ur na manhã do dia 6 de março, ao lado do Papa Francisco há muçulmanos e expoentes de outras religiões, mas não judeus. Nem poderiam, porque o dia escolhido - intencionalmente? - para aquele grande encontro entre “os filhos de Abraão” foi o Shabat, um sábado.
As ruínas da chamada Casa de Abraão estavam a apenas alguns passos de distância, mas nenhum dos participantes do encontro dedicou uma palavra àquele povo de Israel que foi o primogênito de Abraão e que habitou a terra dos dois rios por séculos. Só o papa, em seu discurso e depois em sua oração, bem como às autoridades políticas em Bagdá, fez menção fugaz de um “nós” que unia o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Exceto se corrigindo abaixo, no discurso com que fez um balanço da viagem, em 10 de março em Roma, e reconhecendo que em Ur só havia cristãos e muçulmanos.
Os judeus têm sido o tabu de toda a viagem do Papa Francisco ao Iraque. Omissão ainda mais impressionante se pensarmos que esta viagem foi concebida desde o início, com João Paulo II, como um retorno geográfico e espiritual à fonte comum das três religiões monoteístas, todas as três com o Padre Abraão.
A censura antijudaica teve ainda mais impacto no contexto daqueles "acordos abraâmicos" que, ultimamente, viram alguns países árabes sunitas, dos Emirados ao Marrocos, fazerem as pazes com Israel. O Iraque e, mais ainda, a fronteira com o Irã são firmemente hostis a esses acordos, por razões geopolíticas, mas principalmente religiosas -porque ambos têm maioria islâmica xiita-, e isso sugere que os diplomatas do Vaticano e o próprio pontífice se curvaram à disposição de garantir o segurança da viagem, durante a qual, de fato, as milícias de obediência xiitas iranianas observaram uma trégua.
O paradoxo da viagem de Francisco ao Iraque é que, guardando silêncio sobre os judeus, o papa fez todo o possível para preservar os cristãos justamente daquela expulsão total da terra dos dois rios que, para a comunidade judaica, já foi cumprida.
Nos últimos vinte anos, os cristãos no Iraque diminuíram drasticamente. De um milhão e meio caíram para 200-300 mil, presos como estavam entre dois incêndios: as milícias xiitas de um lado e o Estado islâmico sunita do outro, que, por três anos, de 2014 a 2017, invadiram e devastaram um de seus locais históricos de assentamento, a Planície de Nínive.
Para os judeus do Iraque, não podemos falar de declínio, mas sim de desaparecimento. Restam tão poucos - apontou Seth J. Frantzman no "Jerusalem Post" de 7 de março - que, em Bagdá, desde 2008 não há nem mesmo os dez homens adultos que permitem o rito da oração comum.
No entanto, o judaísmo na terra de dois rios é uma grande história. Vittorio Robiati Bendaud, aluno de Giuseppe Laras, rabino de grande autoridade na Itália e na Europa, escreveu em um comentário no “Formiche” sobre a viagem do Papa ao Iraque:
“Quando se fala em Bagdá, na bacia do Tigre e no Eufrates, nenhum judeu que conheça sua própria história, religião e cultura pode se sentir estranho. O judaísmo atual também foi forjado naquela terra, e o Talmud foi mais extensa e totalmente editado e editado nas antigas academias rabínicas de Bavèl, Babilônia. Mais tarde, foi lá que o pensamento judeu pós-talmúdico nasceu na língua árabe. Foi também lá que o atual ritual de oração foi estabelecido. Ali se depositou e se organizou a legislação rabínica e ali se modulou o misticismo judaico, em contato direto com o Islã, ainda que os judeus estivessem sujeitos a um status de subordinação, como os cristãos ”.
O legado do aramaico, a antiga língua falada pelos judeus na Judéia e Galiléia na época de Jesus, foi compartilhado - e ainda é - por muitos cristãos iraquianos.
Então vieram os anos de tragédia, tanto para alguns quanto para outros. Em 1915, um genocídio contemporâneo ao dos armênios exterminou cerca de 800.000 cristãos assírios. E em 1941 um pogrom causou cerca de 200 mortes e milhares de feridos entre os judeus. Alguns anos depois, o nascimento do Estado de Israel marcou o fim: não havia mais lugar para judeus no Iraque. Curiosamente, por várias décadas, a liderança sefardita do Rabinato Central de Israel estava nas mãos, precisamente, de rabinos que haviam emigrado de Bagdá para Jerusalém.
A visita do Papa e, especialmente, o encontro inter-religioso em Ur, a cidade natal de Abraão, poderiam ter dado visibilidade e voz a algum expoente da mínima presença judaica no Iraque. Mas não foi esse o caso, a mando das autoridades de Bagdá e, por trás delas, de Teerã, a quem Francisco teve de se curvar.
Mesmo na visita a Mosul e à planície de Nínive, onde no passado vivia uma próspera comunidade judaica e onde estão as ruínas de muitas sinagogas e a tumba do profeta Jonas, destruída por Ísis, tudo isso passou despercebido.
A esperança de muitos é que para os cristãos que ainda vivem no Iraque, a igual dignidade e todos os direitos invocados pelo papa e garantidos pelo Grande Aiatolá Xiita Al-Sistani - um antagonista autorizado e intransigente do Islã teocrático iraniano - os encorajem a ficar. Ao contrário do que aconteceu com seus irmãos judeus, filhos primogênitos de Abraão.
Um sinal de esperança pode ser o túmulo do profeta bíblico Nahum, em Al-Qosh perto de Mosul, recentemente restaurado e um destino de peregrinações, não só para os judeus de ontem e talvez de amanhã, mas já hoje para os cristãos e muçulmanos.
Fonte - infovaticana
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