A descida de Jesus à chamada “mansão dos mortos” talvez seja um dos artigos mais obscuros e incompreendidos de nossa fé. Fala-se muitíssimo pouco a seu respeito, embora ele conste expressamente no Credo, que rezamos todos os domingos.
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A descida de Jesus à chamada “mansão dos mortos” talvez seja um dos artigos mais obscuros e incompreendidos de nossa fé. Fala-se muitíssimo pouco a seu respeito, e no entanto ele consta expressamente no Credo Apostólico, que rezamos todos os domingos na Santa Missa.
A fim de sanar essa ignorância — e também para combater certos erros modernos —, tratemos brevemente do assunto.
Jesus desceu “aos infernos”
No latim, a expressão que se usa no Credo para resumir esse acontecimento é descendit ad ínferos (lit. “desceu aos infernos”). Mas, justamente para não confundir nossa cabeça — e não pensarmos que Jesus desceu ao inferno dos condenados —, é até melhor que usemos a expressão “mansão dos mortos” (com a qual estamos acostumados por causa de nossa tradução litúrgica).
De fato, os judeus acreditavam, desde o Antigo Testamento, que, quando uma pessoa morria, a sua alma imortal ia para junto de seus pais, num lugar chamado sheol (cf., v.g., Gn 37, 35, Nm 16, 30-33; Jn 2, 3). Nosso Senhor mesmo aludiu a isso quando profetizou acerca de si mesmo: “Do mesmo modo que Jonas esteve três dias e três noites no ventre do peixe, assim o Filho do Homem ficará três dias e três noites no seio da terra” (Mt 12, 40). Essa expressão (gr. καρδίᾳ τῆς γῆς, lit. “coração da terra”) não é o sepulcro, mas as “regiões inferiores” ou “infernais”, por assim dizer (o prefixo latino infer designa simplesmente algo que está embaixo).
As almas dos mortos, porém, não se misturavam indistintamente nesse lugar. A parábola do pobre Lázaro e do rico epulão (cf. Lc 16, 19-31) nos recorda a separação que, mesmo antes de Cristo, havia entre bons e maus: enquanto estes se condenavam para um lugar de fogo e tormentos eternos, aqueles iam para o “seio de Abraão”. E foi para este último lugar, especificamente, que desceu Nosso Senhor Jesus Cristo:
Há quatro infernos: o inferno dos condenados, o purgatório, o limbo das crianças e o limbo dos justos ou seio de Abraão. O inferno ao qual desceu Cristo não é o dos condenados, mas o lugar onde moravam as almas dos justos que morriam antes de ter-se realizado a redenção — e que recebe o nome de limbo dos justos (limbus Patrum) [1].
Se falamos dos efeitos que produziu, Cristo baixou a todos os infernos que se conhecem, mas com diferente finalidade a cada um. E assim, baixou ao inferno dos condenados para convencê-los de sua incredulidade e malícia; ao purgatório, para dar-lhes a esperança de alcançar a glória, e ao limbo dos patriarcas, para infundir a luz da glória eterna nos justos que ali estavam retidos unicamente pelo pecado original da natureza humana. Mas por sua própria presença real Ele desceu unicamente ao limbo dos patriarcas, a fim de visitar em sua morada, com a alma, aqueles que pela graça havia visitado interiormente com sua divindade. E desde ali estendeu aos demais infernos sua influência da forma como dizemos, de modo semelhante a como, padecendo em um só lugar da terra, libertou com sua Paixão o mundo inteiro [2].
Quando professamos que Jesus “desceu à mansão dos mortos”, então, estamos falando do que aconteceu à alma de Cristo durante o tempo entre sua morte e ressurreição. Enquanto o seu divino corpo estava no sepulcro, sua alma santíssima foi para junto dos mortos, a fim de resgatar os que entre eles eram justos e abrir-lhes as portas do Céu, até então fechadas a todos, como consequência do primeiro pecado.
Muitos artistas procuraram representar esse momento da história da salvação (que permaneceu oculto, evidentemente, aos olhos de todos): nesses retratos, Jesus Cristo é visto, ressuscitado, inclinando-se para resgatar os patriarcas, à frente dos quais estão ninguém menos que Adão e Eva.
Uma descida salvadora
Uma boa forma de explicar esse artigo de fé é inserindo-o no grande quadro da nossa salvação.
De fato, a história humana é uma longa linha do tempo, no centro da qual se encontra ninguém menos que Nosso Senhor Jesus Cristo. Se estamos no ano 2021, é porque se passaram 2021 anos desde o nascimento de Cristo. Todas as vezes que escrevemos a data, estão implícitas as abreviações d.C. (“depois de Cristo”) ou A.D. (anno Domini). Ainda que nossos contemporâneos tentem eliminar essa referência, chamando a nossa época simplesmente de “Era Comum” (E.C.), a luz de Cristo refulge através dos séculos, e é debalde qualquer esforço por escondê-la ou apagá-la.
Só que Jesus não está no centro da história como um simples “ponto de referência” do passado, que nada tem a ver com nossas vidas. Como sabemos pela fé, Ele é o próprio Deus que salva. O significado do seu nome é o que Ele fez (e faz) por todos os homens. Há uma diferença, porém, no modo como Ele salvou os que vieram antes dele e como Ele salva a nós, que viemos depois. É o que nos explica Santo Tomás de Aquino:
A paixão de Cristo foi uma espécie de causa universal da salvação dos homens, tanto dos vivos como dos mortos. Ora, a causa universal se aplica aos efeitos particulares segundo algo especial. Portanto, assim como o poder da paixão de Cristo se aplica aos vivos por meio dos sacramentos, que nos configuram com a paixão de Cristo, também é aplicada aos mortos por meio de sua descida aos infernos. Por isso, diz claramente Zc 9, 11: “Vou libertar teus cativos desta cisterna sem água por causa da aliança que contigo fiz, selada com sangue”, isto é, pelo poder de sua paixão (STh III 52, 1 ad 2).
Os sacramentos são para nós, portanto, o que foi o descensus para os justos do Antigo Testamento. Jesus nos resgata da “cisterna sem água” dos nossos pecados pelo Batismo; aos nossos pais, porém, Ele salvou indo-lhes ao encontro na região dos mortos.
Uma verdade de fé
Como não estamos acostumados com a catequese sobre esse acontecimento, podemos nos perguntar: é realmente “de fé” — ou seja, é obrigatório acreditar — que Jesus de fato desceu com sua alma para salvar os mortos antes dele, ou isso é apenas uma “especulação teológica”?
Ao que devemos responder que sim, essa é uma verdade de fé, sobre a
qual falam todos os bons catecismos e livros de teologia dogmática (cf.,
v.g., as citações acima, cujas referências se encontram
abaixo), e isso com base em inúmeros registros das Escrituras [3], da
Tradição e do próprio Magistério da Igreja.
O silêncio de nossa época a respeito desse artigo de fé se deve, em primeiro lugar, como já dissemos, à singularidade do fato: a descida de Jesus à mansão dos mortos não aconteceu na frente de todos, não foi atestada por inúmeras testemunhas oculares — como foram, por exemplo, seus milagres — e, até por isso, não foi narrada meticulosamente por nenhum evangelista. Por falta de detalhes, é um assunto sobre o qual, naturalmente, pouco se fala.
Mas, em nossa época, há também um fator que não devemos subestimar. Seu nome é incredulidade. É uma infeliz tendência da teologia moderna depreciar, ignorar ou até mesmo negar os acontecimentos mais extraordinários da vida de Cristo. As reflexões de nossos “eruditos” estão cheias de espírito cético, racionalista e antissobrenatural. É muito comum ver os teólogos contemporâneos qualificando, inclusive, as várias descrições da descida de Cristo aos infernos como resquícios de uma “mitologia pagã”. Quando a própria existência da alma humana é questionada por um sem-número de teólogos, não impressiona que a descida da alma de Cristo à mansão dos mortos seja igualmente posta em questão e distorcida, quando não negada de todo.
Agora, que os incrédulos não creiam, não é novidade alguma. A nós cabe preservar o que nós mesmos recebemos de outrem. Como disse o Apóstolo: Ego accepi a Domino quod et tradidi vobis, “Eu recebi do Senhor o que vos transmiti” (1Cor 11, 23). Só assim seremos católicos de fato: preservando o depósito da Revelação, a Tradição de nossos pais na fé.
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