Uma ameaça séria ao catolicismo assoma no horizonte e está oculta ao nosso redor. Ela poderia muito bem dizimar as fileiras da Igreja, e talvez isso já esteja até acontecendo. O que é terrivelmente perigoso, pois essa ameaça abala os próprios fundamentos da nossa religião...
[Este texto não é de autoria do Pe. Paulo Ricardo; foi escrito por Eric Sammons e vertido à língua portuguesa por nossa equipe.]
Uma ameaça séria, até existencial, ao catolicismo assoma no horizonte e está oculta ao nosso redor. Ela poderia muito bem dizimar as fileiras da Igreja, e talvez isso já esteja até acontecendo. O que é insidiosamente perigoso, porque essa ameaça abala os próprios fundamentos do catolicismo.
Não estou falando da crise de abusos sexuais, ou da falta de coragem episcopal, nem do crescimento das heresias, embora todas essas ameaças sejam terríveis. Só que a Igreja enfrentou esse tipo de desafios no passado e os superou, ainda que às vezes com perdas significativas.
Estou falando de uma ameaça verdadeiramente nova: a virtualização do mundo.
O mundo se tornou virtual. Embora essa tendência esteja se desenvolvendo há décadas, as paralisações relacionadas à COVID-19 finalizaram o processo. Nós nos comunicamos facilmente uns com os outros por textos, mídias sociais e bate-papos no Zoom. Quase todos os produtos que compramos podem ser entregues à nossa porta. Agora, até “assistimos” à Missa online! Para muitos (a maioria?) de nós, a vida acontece mais online do que offline.
Aos olhos de muitos, a virtualização mundial é considerada um bem absoluto. Ela permite mais conexão, mais lazer e mais acesso às informações do que nunca. Só que há um problema: ela é a antítese de uma vida católica equilibrada. Eu até argumentaria que ela destrói o catolicismo.
Se há uma palavra que resume o catolicismo, é encarnacional. Nossa fé se baseia na Encarnação: Deus se fez homem. Ao se tornar parte do mundo físico, Deus elevou o mundo físico a si. Quase tão importante quanto, Ele fez do mundo físico o meio através do qual o alcançamos. Em outras palavras, a religião católica é muito física. Ela precisa de “coisas” para funcionar: pão, água, contato físico etc. Sem os sacramentos (e os sacramentais), o catolicismo se reduz a uma religião completamente diferente — e falsa.
Agora, antes de continuar, deixe-me tratar das objeções que já
consigo escutar. O que dizer do eremita, ou do prisioneiro de
consciência católico posto em confinamento solitário? Estou dizendo que
eles são incapazes de praticar o catolicismo porque lhes falta o
“material” físico?
Claro que não. Mas a própria natureza extrema de suas vidas aponta para o fato de que eles são verdadeiras exceções, e não a regra. Uma verdade subjacente à humanidade é que Deus nos criou como seres físicos, e que “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2, 18). Ele nos criou para estarmos uns com os outros. Deus também fez o mundo físico para ser a escada através da qual ascendemos a Ele.
O mundo digital que estamos criando, no entanto, rejeita essencialmente o contato humano direto e a interação com o mundo físico. Mesmo antes da COVID, tínhamos o fenômeno dos zumbis de smartphones — incontáveis pessoas olhando para suas telas e rolando incessantemente por seus feeds ao longo do dia. Mas as restrições da COVID-19 aceleraram nossa descida para a terra virtual e muitos estão agora com tanto medo de doenças que nem mesmo querem estar próximos fisicamente uns dos outros. Isso representa um sério problema para uma Igreja baseada na fisicalidade. Oferecer Missas ao vivo e conferências virtuais apenas agrava o problema.
Como os católicos devem responder a essa tendência perturbadora? Promovendo uma vida encarnacional e intencionada.
Primeiro, os católicos devem ser “encarnados”. Precisamos redescobrir a superioridade do físico sobre o virtual. Recentemente, vi um anúncio de uma “conferência virtual de teologia do corpo”. Parece até uma ironia. Se isso não nos fizer parar para refletir, eu não sei o que mais fará. Afinal, a teologia do corpo existe para nos lembrar a importância de nossos corpos físicos e como eles não são apenas um apêndice extra da alma, mas uma parte essencial de quem somos. Qual o sentido, então, de discutir isso em uma conferência incorporal?
E, claro, isso nem se compara à Missa transmitida ao vivo. Tenho consciência de que muitas paróquias estão fazendo o melhor que podem para se adaptar a circunstâncias extremas. Em muitíssimos casos, porém, muitos padres — e seus paroquianos — levaram isso um pouco longe demais [1].
Na melhor das hipóteses, uma Missa assim é um substituto pobre de outra em que os membros do Corpo de Cristo podem realmente estar presentes na atualização do Sacrifício da Cruz (eu não acho que o Apóstolo João teria feito uma live do Calvário, ainda que isso fosse uma opção em seu tempo; talvez Judas o tivesse feito). Na pior das hipóteses, ela sinaliza que o mundo físico — inclusive o mundo físico dos sacramentos — é secundário e “não essencial”.
O homem compartilha semelhanças e diferenças com os anjos e o reino animal. Somos um híbrido de corpo e espírito, e é fundamental para o nosso ser que os dois trabalhem juntos. Ao contrário de tantas heresias velhas e novas, não rejeitamos o aspecto físico de nossa natureza, mas entendemos que o físico intensifica — ou diminui — a nossa vida espiritual. Interagir com outros católicos na vida “real”, realmente assistir à Missa e receber o Corpo de Cristo, falar com o sacerdote em pessoa no confessionário — todas essas são atividades físicas que ajudam a nos levar para Deus.
Em segundo lugar, como católicos, devemos colocar intenção
nas coisas que fazemos. Sempre que alguém faz uma crítica ao mundo
digital, as acusações de que essa pessoa está se tornando um amish são descartadas [2]. Em vez de lutar contra essas acusações, vou me inclinar a seu favor. É um equívoco comum pensar que os amish
rejeitem a tecnologia. Eles não a rejeitam. O que fazem é tomar
decisões deliberadas, enquanto comunidade, sobre se uma nova tecnologia
é, em geral, benéfica ou não. E embora nós, como católicos, não tenhamos
de concordar com suas decisões finais, essa atitude deliberativa deve ser abraçada por nós.
Bem, eu não sou um ludita (outro epíteto comum que se usa de vez em quando) [3]. Estive profundamente envolvido no boom da Dot-Com no final dos anos 90 como o primeiro funcionário de uma das primeiras empresas de hospedagem na web e cofundador de um dos primeiros registradores de domínio. (Meu apreço contínuo por tecnologia pode ser visto em minha adoção de criptomoedas). Atualmente, sou editor de uma revista exclusivamente digital, que a maioria dos leitores acessa em seus smartphones. Mas minha relação de longa data com a tecnologia me levou a ver que, nessa matéria, não há uma decisão de “tudo ou nada”: ou rejeitamos toda a tecnologia moderna ou aceitamos sem crítica cada tecnologia mais recente no momento em que ela é lançada.
Em vez disso, devemos refletir se uma nova tecnologia — e o modo como a usamos — ajuda ou a nos aproximar ou a nos afastar da união íntima com Cristo e da edificação de seu Corpo aqui na Terra. Devemos perguntar também se a nova tecnologia leva a uma existência mais “incorpórea” e, portanto, menos “encarnacional”. Sim, os métodos modernos de comunicação beneficiaram a sociedade de muitas maneiras. No entanto, eles têm um custo.
Um dos principais preços que pagamos é a perda da conexão direta. Em vez de passar o tempo conversando na varanda — ou mesmo no telefone — com um amigo, enviamos atualizações rápidas e dispersas para dezenas de conhecidos. Temos testemunhado neste século uma queda vertiginosa na adesão das pessoas a uma religião, fenômeno que coincide diretamente com um aumento tremendo de “comunidades” virtuais — e as duas tendências podem estar relacionadas. O ato de ignorar alegremente os custos das tecnologias modernas pode significar suicídio para o catolicismo.
E, claro, há o problema óbvio de estar sujeito às big techs, que estão se tornando cada vez mais anticatólicas [4].
Em termos práticos, acho que isso deve nos levar a repensar dois aspectos básicos da vida moderna: encontros físicos e o uso de smartphones/mídias sociais. Primeiro, devemos resistir ao impulso de “nos tornarmos virtuais” em nossas interações com outras pessoas. Encontre maneiras de se encontrar fisicamente com familiares, amigos e colegas de paróquia. Recentemente, perguntaram-me o que os pais católicos podem fazer para manter seus filhos na Igreja e meu primeiro pensamento foi que eles passassem mais tempo — tempo real, não virtual — com outras famílias católicas. Essas relações constroem um apreço pelo real, o que leva a um apreço mais profundo por Aquele que é a fonte de toda a realidade.
Em segundo lugar, devemos repensar séria e urgentemente nossa relação com as mídias sociais, principalmente o modo como as usamos nos smartphones, que estão perpetuamente ligados a nós. Quantos de nós mal conseguem encontrar tempo para rezar, mas passam várias horas por dia navegando por feeds de mídia social nos próprios smartphones? Mesmo que as big techs apoiassem os valores católicos, o tempo médio gasto em seus produtos excederia em muito esses valores para a maioria de nós. Em vez de acessar o Facebook, precisamos gastar mais tempo buscando a face de Deus em seu book (“livro”): as Sagradas Escrituras.
Isso não significa necessariamente que devamos descartar todas as mídias sociais (embora isso seja o melhor para algumas pessoas). Nosso relacionamento desordenado com as mídias sociais poderia ser reorganizado simplesmente removendo-as de nossos smartphones e usando-as apenas em nossos computadores desktop. Talvez até consideremos usar um telefone sem internet [5]. Passos como esses nos ajudam a controlar o nosso uso, e não o contrário.
Levar uma vida encarnacional e intencionada não é
um caminho fácil. Na verdade, quase tudo em nossa sociedade hoje está
configurado para se opor a esse caminho. No entanto, os católicos sempre foram chamados a ser contraculturais;
e seguir esse caminho, raramente trilhado, pode ser um meio de viver
uma vida autenticamente católica em uma cultura que precisa
desesperadamente desse testemunho.
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