Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
sexta-feira, 10 de junho de 2022
O Espírito Santo nas orações da liturgia romana
Por que não existem, no “ecossistema” do rito romano, orações dirigidas à
terceira Pessoa da Santíssima Trindade? Como entender a construção
comum a quase todas as orações litúrgicas, de se dirigir “ao Pai, pelo
Filho, no Espírito Santo”?
Por Michael P. Foley
Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere
No rito romano, a formulação típica das Coletas, Secretas, Pós-comunhões e Super Populum é “ao Pai, pelo Filho no Espírito Santo” [i]. Trata-se de um venerável arranjo de inspiração bíblica (cf. Ef
2,18). No século IV, São Basílio Magno já o considera bem estabelecido —
embora ele também tenha usado “ao Pai, com o Filho junto com o Espírito
Santo” [ii]. As orações em nossos manuais litúrgicos mais antigos (os
chamados Sacramentários Gelasiano e Leonino) pressupõem essa fórmula, e
de fato a sagrada liturgia e a vida cristã como um todo podem ser definidas como uma oblação ao Pai, pelo Filho, no Espírito Santo.
A partir do segundo milênio, a tradição litúrgica latina passou a
incluir várias orações dirigidas ao Filho em lugar do Pai. No século XX,
puristas da liturgia consideraram abomináveis tais acréscimos (alguns
ainda pensam assim). Por isso, o Missal de 1970 reduziu bastante o
número delas [iii]. O prof. Peter Kwasniewski já defendeu as orações
cristocêntricas no Missal de 1962, descrevendo-as como “uma espécie rara num ecossistema”.
Gosto muito da metáfora que compara as diversas liturgias da Igreja a
muitos ecossistemas. A Oitava de Pentecostes nos proporciona a
oportunidade de refletir mais detidamente sobre as peculiaridades do
ecossistema romano, pois ambas têm uma criatura exótica: orações que se
referem ao Espírito Santo.
As orações que se dirigem ao Espírito Santo no rito romano (novo ou antigo) não são raras: elas não existem. Embora o sacerdote reze ao Espírito Santo em cada Missa com o Veni Sanctificator, do rito do ofertório; embora recite ou cante o hino Nunc Sancte nobis Spiritus
quase toda manhã durante o hino da hora Terça; e apesar de em
Pentecostes e ao longo de sua oitava a Igreja se dirigir ao Espírito
Santo na sequência da Missa Veni Sancte Spiritus e no hino do Ofício Veni Creator Spiritus
[iv], ainda assim não há uma só oração de Coleta, Secreta ou
Pós-comunhão que use o vocativo para a terceira Pessoa da Santíssima
Trindade.
O mais perto que a liturgia romana chega de uma oração dirigida ao
Paráclito é o que vemos na Vigília de Pentecostes, na festa em si e ao
longo da oitava, a saber, orações dirigidas ao Pai que mencionam o
Espírito Santo e terminam com in unitáte eiúsdem Spíritus Sancti, Deus, per ómnia sæcula sæculórum… — “na unidade do mesmo
Espírito Santo, Deus, por todos os séculos dos séculos. Amém” [v].
Mesmo nessas circunstâncias, nem todas as orações mencionam o Espírito
Santo.
Quanto ao restante do ano, o ciclo temporal inclui uma Coleta (pro aliquibus locis)
para Nossa Senhora, Rainha dos Apóstolos (Domingo depois da Ascensão) e
uma Pós-comunhão para a Sexta-feira após a Quarta-feira de Cinzas, que
seguem a fórmula de dirigir-se ao Pai e mencionar o Espírito, enquanto o
ciclo do santoral tem orações semelhantes para São Filipe Néri (26 de
maio, Secreta), São João Maria Vianney (8 de agosto, Secreta), Santa
Joana de Chantal (21 de agosto, Pós-comunhão) e São Josafá (14 de
novembro, Coleta). Não é de admirar que o santo mais frequentemente
vinculado ao Espírito Santo seja a Santíssima Virgem Maria: as Coletas
do Imaculado Coração (22 de agosto) e da Apresentação (21 de novembro)
se referem a ela como morada dele. Nem mesmo as Missas votivas do
Espírito Santo e a Missa votiva para pedir a graça do Espírito Santo
dirigem a prece ao Espírito Santo, embora todas as orações o mencionem igualmente.
Talvez tudo isso pareça injusto com o Espírito Santo, mas antes de
iniciarmos um movimento pela “igualdade na oração”, convém analisar dois
pontos.
Primeiro, as orações da Igreja dirigidas ao Espírito Santo
em outros contextos compensam qualquer aparente desprezo à idêntica
divindade ou individualidade do Espírito Santo nas orações. Na verdade, o final trinitário das orações, que faz de todas elas orações no Espírito Santo, é uma afirmação da importância do Espírito.
Quando a Igreja faz referência à Trindade na oração, geralmente o faz
por meio de um padrão de “coordenação” e “mediação”. Padrões de
coordenação como “Glória ao Pai e ao Filho e ao
Espírito Santo” acentuam a igualdade das Pessoas, ao passo que padrões
de mediação, tais como os que vemos nas conclusões das orações, deixam
“clara a ordem das Pessoas divinas na economia da salvação” [vi]. No
entanto, essa ordem econômica não representa uma negação da igualdade
ontológica [entre as Pessoas].
Segundo, o fato de as orações falarem sobre o Espírito Santo
em vez de se dirigirem a Ele reforça (ao menos a meu ver) certa aura
inevitável em torno dele. As Coletas do Advento omitem de forma
engenhosa o santo nome de Jesus (embora falem sobre Ele e às vezes até
se dirijam ao Filho de Deus) como uma forma de dramatizar o conceito de
expectativa pela chegada do Messias ainda anônimo [vii]. Do mesmo modo,
quando deixamos de nos dirigir ao Espírito Santo, dramatizamos algo da
pneumatologia; a terceira Pessoa da Santíssima Trindade a ser revelada é, sob certo aspecto, a que menos conhecemos.
Para São Gregório de Nazianzo, o Antigo Testamento proclama o Pai e,
com menos clareza, o Filho, embora o Novo Testamento proclame com
clareza o Filho, mas proporcionando apenas “um vislumbre da divindade do
Espírito” [viii]. Historicamente, o Espírito foi revelado
gradativamente e só depois que os mistérios do Pai e do Filho ficaram
mais claros. Uma forma de refletir a respeito das convenções nas orações
romanas a respeito do Espírito Santo é um exemplo do conselho de
Gregório, segundo o qual deveríamos seguir o padrão divino de não
revelar sua doutrina subitamente nem ocultá-la até o último momento
[ix].
Não quero com isso afirmar que os compositores dessas orações
tivessem esses pontos em mente. Podem ter simplesmente agido dentro dos
parâmetros de um estilo litúrgico-literário (e apenas isso), até que, no
segundo milênio, as regras ficaram frouxas o bastante para tornar
possível inserir orações dirigidas ao Filho. Como consequência disso,
herdamos um número maior de orações dirigidas ao Pai, algumas ao Filho e
nenhuma ao Espírito. Como mostra o prof. Kwasniewski, há razões
providenciais para sermos gratos pelas orações ao Filho (por exemplo,
como antídoto para o arianismo), e é bem possível que haja razões
providenciais para sermos gratos pela ausência de orações dirigidas ao Espírito, mesmo no dia da festa dele ou durante sua oitava. Pois talvez seja exatamente essa a vontade do Espírito Santo, sob cuja inspiração os tesouros da Igreja foram formados. Talvez aquele que ilumina nossos corações não queira ter essa particular notoriedade.
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