Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
quarta-feira, 21 de setembro de 2022
A não ser pelo jejum e a oração
“Certos espíritos, entre os mais violentos demônios, não são expulsos
dos corpos possessos por ordem nenhuma dos exorcistas, mas apenas à
força de jejuns e orações… É portanto agradável a Deus, e terrível para o
diabo, a oração de quem jejua”.
Gregory Dipippo
Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere
Pelo fato de ser móvel a data da Páscoa, bem como tudo o que dela
depende, as Têmporas de Setembro podem cair em qualquer semana entre o
13.º e o 20.º Domingo depois de Pentecostes. Neste ano elas caem na 15.ª
semana [i], mas no próximo cairão na 16ª. No Missal Romano, elas são
tradicionalmente inseridas após a 17ª semana, uma disposição textual
que reflete um tema bastante antigo a permear as Missas desses dias de
Têmporas.
A Coleta do 17.º Domingo depois de Pentecostes é muito antiga e se
encontra em diferentes lugares nas várias versões do Sacramentário
Gelasiano. Desde o final do séc. VIII, no entanto, ela já se achava
fixada no 17.º Domingo no Sacramentário Gregoriano: Da quæsumus, Domine, populo tuo diabolica vitare contagia, et te solum Deum pura mente sectari — “Dai, Senhor, ao vosso povo evitar as ciladas do demônio e servir de mente pura a vós, único Deus”
[ii]. Essa é a única Coleta de Missa do ano eclesiástico a fazer uma
alusão direta à influência diabólica, mas a Secreta do 15.º Domingo traz
um tema similar: Tua nos, Domine, sacramenta custodiant, et contra diabolicos semper tueantur incursus — “Que os vossos sacramentos nos guardem, Senhor, e nos defendam sempre das investidas do demônio”.
Na Quarta-feira das Têmporas de Setembro, o Evangelho relata a cura de um jovem possesso (cf. Mc
9, 16-28) [iii]. Com exceção dos tempos da Páscoa e da Ascensão, o
antigo Lecionário romano faz pouco uso de São Marcos, não obstante a
tradição de que o evangelista foi discípulo de São Pedro e compôs o
Evangelho quando ainda estava com ele em Roma. Aqui, sua versão foi
certamente escolhida por conta da narrativa comovedora do diálogo entre
Cristo e o pai do menino, a qual se encontra com menos detalhes na
versão de São Mateus:
Jesus perguntou ao pai: “Há quanto tempo lhe acontece
isto?”. — “Desde a infância”, respondeu-lhe. “E o tem lançado muitas
vezes ao fogo e à água, para o matar. Se tu, porém, podes alguma coisa,
ajuda-nos, compadece-te de nós!” Disse-lhe Jesus: “Se podes alguma
coisa!... Tudo é possível ao que crê”. Imediatamente exclamou o pai do
menino: “Creio! Vem em socorro à minha falta de fé!”
No final da passagem, os discípulos perguntam a Cristo por que não conseguiram expelir o demônio, ao que Ele replica: “Esta espécie de demônios não se pode expulsar senão pelo jejum e a oração”. No Ofício Divino, estas palavras são cantadas nas Laudes como antífona do Benedictus.
Na Sexta-feira das Têmporas, o Evangelho é o da mulher que unge os pés do Senhor na casa de Simão, o fariseu (cf. Lc
7, 36-50). É um dos pouquíssimos exemplos de um Evangelho tirado de
outra parte do ciclo temporal; ele também é lido na Quinta-feira da
Paixão [N.T.: isto é, na semana anterior à Semana Santa], e uma vez mais
na festa de Santa Maria Madalena, com a qual a mulher é
tradicionalmente identificada no Ocidente. Essa associação é reforçada,
em parte, pelas palavras de São Lucas imediatamente após essa passagem
(8, 1-3), ainda que elas não sejam lidas na liturgia:
Depois disso, Jesus andava pelas cidades e aldeias
anunciando a boa-nova do Reino de Deus. Os doze estavam com ele, como
também algumas mulheres que tinham sido livradas de espíritos malignos e
curadas de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual tinham saído
sete demônios; Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes; Susana e
muitas outras, que o assistiram com as suas posses.
No Sábado das Têmporas, o Evangelho consiste em duas histórias de São
Lucas (13, 6-17): a parábola da figueira e a cura de uma mulher
“possessa de um espírito que a detinha doente: andava curvada e não
podia erguer-se de modo algum”. A escolha deste Evangelho para o sábado
vem muito a calhar, pois ele se passa na sinagoga, cujo chefe,
“indignado de ver que Jesus curava no sábado, disse ao povo: ‘São seis
os dias em que se deve trabalhar; vinde, pois, nesses dias para vos
curar, mas não em dia de sábado’”. Ao que Cristo respondeu: “Hipócritas!
Não desamarra cada um de vós no sábado o seu boi ou o seu jumento da
manjedoura, para os levar a beber? Esta filha de Abraão, que Satanás
paralisava há dezoito anos, não devia ser livre dessa prisão, em dia de
sábado?”
Cada um desses Evangelhos, portanto, faz referência ao mesmo tema da
Coleta do 17.º Domingo, a oração da Igreja ao Senhor para que a proteja,
a si e a seus membros individuais, da influência maligna do diabo.
É fato notório que as Têmporas constituem um dos mais antigos traços característicos do Rito Romano.
O Papa São Leão Magno, que governou a Igreja de 444 a 461, pregou
numerosos sermões em dias de Têmporas, e os tinha como de origem
apostólica, como ele diz, por exemplo, em seu segundo sermão de
Pentecostes:
Ora, à presente solenidade, diletíssimos, hemos de
acrescentar ainda uma tal devoção, que celebremos o jejum que provém da
tradição apostólica; porque também isso se há de contar entre os grandes
dons do Espírito Santo: que nos foram dadas contra as seduções da carne
e as insídias do diabo as armas do jejum, com as quais, pela ajuda de
Deus, venceremos todas as tentações (Serm. 76.9: PL 54, 411B).
Do mesmo modo, em seu segundo sermão nas Têmporas de Setembro, ele se
refere às palavras de Cristo sobre o jejum, que são lidas na
quarta-feira [iv]:
Pois em toda prova do certame cristão é de grandíssimo valor
e utilidade a temperança, de tal modo que certos espíritos entre os
mais violentos demônios não são expulsos dos corpos possessos por ordem
nenhuma dos exorcistas, mas apenas à força de jejuns e de orações, como
diz o Senhor: “Esta casta de demônios não se pode expulsar senão pelo
jejum e a oração”. É portanto agradável a Deus e terrível para o diabo a oração de quem jejua (Serm. 87.2: PL 54, 439B).
A Coleta do 17.º Domingo depois de Pentecostes é um dos exemplos mais
claros de oração que os reformadores pós-conciliares consideraram
imprópria aos ouvidos do homem moderno, que não deve jamais ser
confrontado com quaisquer ideias “negativas” enquanto está em oração.
Não obstante sua antiguidade e a universalidade de seu lugar no Rito
Romano, ela foi inteiramente removida do Missal, juntamente com as
Têmporas, a maior parte das referências ao jejum e todas as referências
ao diabo.
Numa tendência similar, quando a pseudo-anáfora de um pseudo-Hipólito
foi adaptada como Oração Eucarística II, a versão original da seção
paralela ao Qui pridie — que dizia: “Ele, quando foi entregue ao sofrimento voluntário,a fim de dissolver a morte, e romper as cadeias do diabo, e pôr o inferno sob seus pés,
e trazer o justo para a luz… e manifestar a ressurreição” — foi
reduzida para: “Estando para ser entregue e abraçando livremente a
Paixão…”.
No entanto, como notou certa vez o Pe. John Zuhlsdorf, a edição
revisada do Missal de 2002 sugere em alguns lugares a consciência de que
a reforma pós-conciliar foi longe demais e descartou muito do Rito
Romano tradicional. Entre o que foi restaurado está a oração tradicional
do 17.º Domingo depois de Pentecostes, que agora aparece como uma
Coleta opcional para as Missas in quacumque necessitate, “em qualquer necessidade”, aumentando o número total de referências ao diabo, no Missal, para “um”.
A Instrução Geral do Missal Romano contém uma exortação (e não mais
que isso) a que as Rogações e as Têmporas “sejam indicadas” (indicentur, não indicandæ sunt) nos calendários locais, e uma rubrica (I, 45) diz que é dever (oportet)
das conferências episcopais estabelecer tanto o tempo quanto o modo de
celebrá-las. Não deve ser surpresa para ninguém que essa rubrica tem
sido amplamente ignorada.
Entretanto, para qualquer católico que ame a Igreja, uma coisa é praticamente impossível ignorar: o abandono quase completo de todo tipo de disciplina ascética formal, orientada pela liturgia, teve consequências hediondas,
e parece ter dado ao diabo liberdade ampla para reinar. Uma restauração
permanente e universal da disciplina tradicional do jejum, incluindo as
Têmporas, seria um pequeno mas importante passo rumo ao fim desse
“livre reinado” do mal.
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