Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor: comportai-vos como verdadeiras luzes. Ora, o fruto da luz é bondade, justiça e verdade. Procurai o que é agradável ao Senhor, e não tenhais cumplicidade nas obras infrutíferas das trevas; pelo contrário, condenai-as abertamente. (Ef 5, 8-11)
sexta-feira, 18 de novembro de 2022
Não, senhor... o Inferno não está vazio!
Nenhum católico fiel à ortodoxia pode dizer que o Inferno está vazio.
Estão lá pelo menos os anjos caídos, e não há absolutamente nenhuma
esperança de que eles se arrependam. Só isso já nos diz o bastante sobre
a possibilidade de também nós, homens, nos condenarmos…
Por Edward Feser
Tradução: Equipe Christo Nihil Præponere
Temos falado sobre a opinião de Hans Urs von Balthasar segundo a qual é possível ao menos esperar
que todos os seres humanos se salvem. Ora, Balthasar foi um teólogo
católico que teve o cuidado de não contradizer a doutrina definitiva da
Igreja sobre o assunto. É por isso que ele não patrocina a visão
universalista de que todos devem ser e, portanto, definitivamente serão
salvos (algo que é herético) [i]. Todavia, também é significativo que,
no título de seu famoso livro sobre o assunto [ii], ele tenha sido
cuidadoso ao formular a pergunta: “Ousamos esperar ‘que todos os homens se salvem’?” Em outras palavras, ele pergunta se todos os seres humanos
podem se salvar, e não se todas as criaturas dotadas de intelecto e
vontade, inclusive anjos caídos, podem se salvar. Na verdade, no livro
ele diz o seguinte sobre os poderes demoníacos:
Deve-se dizer desde já que de modo algum se pode aplicar a
esperança teológica a esse poder. O terreno sobre o qual atua a redenção
do Filho de Deus encarnado é, com toda evidência, a humanidade [...].
Não podemos concordar com a afirmação de Karl Barth de que os anjos não
tinham liberdade de escolha e que o mito da “queda dos anjos” deve ser,
portanto, rechaçado em absoluto [...]. A doutrina da queda dos
anjos, profundamente enraizada em toda a Tradição, torna-se não só
plausível, mas inevitável, se reconhecemos a existência do satânico [iii].
Na verdade, Balthasar especula em seguida se o conceito de “pessoa”
ainda se aplicaria a um anjo caído — com base na ideia de que,
normalmente, pessoas existem de um modo que supõe um relacionamento com
outras, e aqueles que optaram permanentemente pelo mal acabaram por se
trancar num egoísmo que impede um relacionamento adequado com os outros.
Ora, trata-se de uma metafísica um tanto confusa. Por um lado, pessoas
que estão presas à maldade não conseguem estabelecer relacionamentos saudáveis
com outras, mas isso não quer dizer que não possam estabelecer nenhum
relacionamento em absoluto. Por outro lado (e como Balthasar não parece
negar), os demônios ainda preservariam o intelecto e a vontade, ainda
que não tivessem nem mesmo relacionamentos defeituosos com outras
pessoas. Certamente, numa análise tomista isso bastaria para fazer deles
pessoas. Mesmo assim, independentemente de como decidimos
caracterizá-los, parece que Balthasar não nega que os demônios estejam perdidos para sempre, de modo que não podemos esperar que eles se salvem.
Sem dúvida, a razão é que isso também é um requisito da ortodoxia católica. Como ensina o IV Concílio de Latrão:
[Jesus] virá ao fim dos tempos para julgar os vivos e os
mortos e para premiar cada um segundo as suas obras, tanto os maus como
os eleitos. Todos ressuscitarão com os próprios corpos com que agora
estão revestidos, para receber, segundo suas obras, sejam boas ou más, uns a pena eterna com o diabo, outros a glória eterna com o Cristo (DH 801).
Mesmo que se argumentasse o seguinte: “Isso não implica que, de fato, algum ser humano será condenado eternamente; só indica a possibilidade de que isso aconteça”, não seria sensato negar que o diabo está padecendo um castigo eterno. De modo semelhante, o Catecismo da Igreja Católica
ensina que “não há arrependimento para eles [os anjos] depois da
queda”, de modo que a escolha dos demônios contra Deus é “irrevogável” e
o pecado deles, “imperdoável” (§ 393). Este ensinamento também está na
Sagrada Escritura:
Em seguida, dirá aos que estiverem à esquerda: “Apartai-vos
de mim, malditos, para o fogo eterno, que foi preparado para o demônio e
para os seus anjos” (Mt 25, 41).
E o demônio, que os
seduzia, foi metido no tanque de fogo e de enxofre, onde também a Besta e
o falso profeta serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos
séculos (Ap 20, 10).
Portanto, nenhum católico que seja coerente com a ortodoxia pode afirmar que o Inferno está vazio.
Estão lá pelo menos os anjos caídos, e não há absolutamente nenhuma
esperança de que se arrependerão. Até Von Balthasar o admite. Ao menos
para o católico, trata-se de um limite absoluto que não pode ser
ultrapassado pela especulação ortodoxa relativa ao tema. Não só não se
pode afirmar que todas as criaturas devem ser e serão salvas, mas também
se deve afirmar que algumas [já] estão condenadas — no mínimo os demônios.
O que isso nos diz sobre a possibilidade de alguns seres humanos se
condenarem? Bastante. Por um lado, isso abala o principal argumento a
favor da esperança balthasariana segundo a qual ao menos todos os seres
humanos podem se salvar. O argumento é o seguinte: Deus deseja que todas
as pessoas se salvem, como está dito em 1Tm 2, 3-4 e outras
passagens. Prossegue o argumento: se Deus o deseja, temos boas razões
para esperar que isso venha a acontecer. Mas, obviamente, Deus também
desejou que todos os anjos se salvassem; apesar disso, é certo que
alguns se condenaram mesmo assim. Portanto, por que o fato de Deus
querer que todos os homens se salvem aumentaria a possibilidade de todos
se salvarem? (No capítulo 17 do livro XXI de A Cidade de Deus, Santo Agostinho apresenta o argumento correlato de que é
absurdo apelar à divina misericórdia como prova da salvação de todos os
seres humanos e ao mesmo tempo reconhecer que os demônios estão
perdidos para sempre, apesar da misericórdia de Deus.)
Ao contrário, a priori a salvação de todos os seres humanos é muito menos
provável que a de todos os anjos, pois o intelecto e a vontade deles
são muito mais poderosos que os nossos. Por serem incorpóreos, estão
livres das paixões que cegam o intelecto e dominam a vontade. Não podem
cair nos diversos erros que podem levar os seres humanos ao pecado, e
não se desviam do bem por meio de sentimentos de raiva, luxúria, ânsia
por álcool ou drogas etc. Portanto, se mesmo assim muitos anjos se
condenam, na melhor das hipóteses a priori é extremamente improvável — na verdade, praticamente impossível — que nenhum ser humano se condene.
Isso por si só bastaria para que qualquer católico tivesse cautela em
acreditar na sugestão de que há alguma esperança de que todos os seres
humanos venham a salvar-se. Mas pode-se dizer muito mais. Em meu texto
anterior, observei que o Beato Pio IX condenou a seguinte proposição no Sílabo dos Erros:
“Pelo menos se deve ter boa esperança quanto à eterna salvação de todos
os que não se encontram de algum modo na verdadeira Igreja de Cristo” (DH 2917). Mas e aqueles que estão nela? Bem, em 1459 o Papa Pio II condenou a proposição “de que todos os cristãos se salvam” (DH
717). Sobre a espécie humana em geral, o Sínodo de Quiercy ensinou que
“Deus onipotente ‘quer que todos os homens’ sem exceção ‘sejam salvos’,
embora nem todos o sejam” (DH 623). Repare que o sínodo afirma claramente que de fato nem todos serão salvos, embora Deus o queira.
Tais afirmações estão perfeitamente alinhadas com o que a Sagrada Escritura ensina de forma clara em passagens como estas:
Entrai pela porta estreita, porque larga é a porta, e
espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os que entram por
ela. Que estreita é a porta, e que apertado o caminho que conduz à
vida, e quão poucos são os que dão com ele (Mt 7, 13-14).
Alguém
lhe perguntou: “Senhor, são poucos os que se salvam?” Ele
respondeu-lhes: “Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque vos
digo que muitos procurarão entrar, e não conseguirão” (Lc 13, 23-24).
Muitas outras passagens da Sagrada Escritura e da Tradição poderiam
ser citadas. A implicação mais do que evidente é que alguns seres
humanos realmente serão condenados — na verdade, as próprias palavras de
Cristo, ditas em resposta a uma pergunta direta sobre o assunto na
referida passagem do Evangelho de Lucas, sugerem que a maioria das
pessoas será condenada.
Mesmo assim, os balthasarianos se prendem a problemas lógicos no
intuito de encontrar nessas afirmações brechas por meio das quais a
esperança da salvação de todos possa ser aceita sorrateiramente com base
em algo técnico. Trata-se de um modo absolutamente bizarro de fazer
teologia. Podemos comparar isso a um médico que, examinando as terríveis
estatísticas relativas ao câncer de pâncreas, observa que apesar disso é
no mínimo possível sobreviver a ele e em seguida diz alegremente aos seus pacientes: “Podemos ao menos esperar
que todos os pacientes acometidos pelo câncer de pâncreas
sobreviverão!” Afinal, se isso é possível para alguns, não seria
possível para todos?
No caso do câncer de pâncreas pode ser que o paciente sobreviva, mas é
necessário que algumas coisas sejam bem-sucedidas para isso acontecer; e
como na maioria dos casos é muito improvável que todas elas sejam
bem-sucedidas, simplesmente não há uma esperança realista de que toda
possibilidade de sobrevivência se realizará em todos os casos. Mas a
mesma coisa é verdadeira em relação à salvação das almas. Não basta
observar que, no plano abstrato, qualquer alma individual poderia ser
salva. Também temos de perguntar o que deve acontecer especificamente para que ocorra a salvação de uma alma, e qual é a probabilidade
de que isso ocorrer em cada caso específico. Uma vez que fizermos isso,
a ideia de que podemos ter esperança na salvação de todos mais uma vez
será vista a priori como algo ridiculamente irreal.
Segundo a Igreja, são estas as coisas que devem ser bem-sucedidas: se
um católico é culpado de pecado mortal, deve se arrepender dele com o
firme propósito de evitá-lo no futuro, deve ao menos ter contrição
imperfeita (isto é, sentir tristeza pelo pecado por medo da punição
divina ou por abominar a feiúra do pecado), e no caso de contrição
imperfeita deve, na verdade, receber a absolvição no sacramento da
Confissão. Se não tiver recebido a absolvição, ainda poderá ser salvo se
tiver contrição perfeita (isto é, tristeza pelo pecado por amor a Deus)
e pelo menos a intenção de se confessar e receber a absolvição. Sem
preencher essas condições, ele não pode ser salvo. Por exemplo, se o católico não tem contrição perfeita, nunca se confessa e morre, não poderá ser salvo.
Se a pessoa está fora dos limites visíveis da Igreja, ainda pode ser
salva, mas somente se tiver contrição perfeita e ao menos um desejo
implícito de receber o Batismo. Se faltarem as duas coisas na hora da
morte, a pessoa não poderá se salvar.
Ora, é claro que há mais a ser dito sobre esses critérios, além de
qualificações a serem feitas. Por exemplo, o que conta como contrição
perfeita ou como desejo implícito de receber o Batismo? Eu argumentaria a
favor de uma interpretação razoavelmente ampla desses conceitos. Por
exemplo, mesmo que uma pessoa tivesse — sem culpa própria — muitas
crenças falsas a respeito da natureza divina, ainda assim seria
plausível supor que ela poderia ter contrição perfeita ou horror do
pecado por amor a Deus.
Mas de modo algum se pode dizer que qualquer postura é aceitável. Por
exemplo, dificilmente será possível afirmar que terá contrição perfeita
uma pessoa que dedicou a vida inteira a se divertir e ganhar dinheiro, e
que trata a moral e a religião com total indiferença ou mesmo desprezo,
ainda que ela possa ser considerada uma pessoa “legal” em algum sentido
banal da palavra. Deste modo, se ela tiver uma morte súbita, é muito
improvável que venha a ser salva. É possível que uma pessoa
como essa tenha em si uma dimensão mais profunda que o mundo não
enxerga? Com certeza. Talvez haja recônditos da alma dela que só são
vistos por Deus e nos quais é evidente a contrição perfeita, de modo que
a morte não implicará sua condenação. Mas quão remotas são as chances de que toda e cada uma das pessoas que vive desse modo esteja real e profundamente contrita, e portanto possa ser salva — embora nem mesmo todos os anjos
tenham sido salvos? A ideia mesma é absurda. E aqui falo apenas sobre
vidas imorais ordinárias, que vemos no dia a dia. Quando incluímos
pessoas ainda mais depravadas moralmente (assassinos, estupradores,
traficantes de drogas etc.), torna-se ainda mais absurdo supor que cada
uma delas possa morrer em estado de contrição perfeita.
A própria Sagrada Escritura sugere que alguns seres humanos específicos estão condenados. Apocalipse 20, 10 (citado acima) indica que a Besta e o falso profeta dos últimos dias serão condenados. Judas
7 afirma que “Sodoma, Gomorra e as cidades circunvizinhas, que com elas
se entregaram à luxúria e se abandonaram aos vícios contra a natureza,
foram postas por escarmento, sofrendo a pena do fogo eterno”. Cristo diz sobre Judas que “melhor fora a tal homem que não tivesse nascido” (Mt 26, 24), e também: “Conservei os que me deste; nenhum deles se perdeu, exceto o filho da perdição, cumprindo-se a Escritura” (Jo 17, 12).
Também neste ponto algumas pessoas recorrem à ginástica mental para
tentar se esquivar do sentido inequívoco desses textos. Nenhum desses
esforços é confiável, e sequer faz sentido tentar realizar tais
interpretações criativas, a menos que se esteja partindo do pressuposto
de que é plausível que todos possam ser salvos. Quando entendemos que
isso não é plausível — pelas razões que expliquei claramente —, cai por
terra qualquer motivação residual para fazer um esforço de enxergar
nesses textos qualquer outra coisa que não seja a inferência de que as
pessoas mencionadas estão condenadas.
Mesmo assim, creio que muitas pessoas preferirão se apegar à falsa
esperança. O próprio Cristo poderia aparecer a elas e dizer: “Escutai
com bastante atenção e compreendei o que digo: Algumas pessoas estão no Inferno”, e elas responderiam: “Senhor, este é apenas um alerta de que alguns talvez
irão para o Inferno, certo? Ou talvez a palavra ‘pessoas’ tenha sido
usada em algum sentido incomum. Mesmo assim, o que significa ‘Inferno’?
Refleti sobre isto: as palavras ‘algumas’, ‘estão’ e ‘no’ também
poderiam significar qualquer coisa. Senhor, certamente falais por
parábolas, mas tenho certeza de que um dia nos revelareis qual o
significado disso tudo. De qualquer maneira, até lá podemos ter
esperança!”
Ou talvez acusariam a Cristo de querer que as pessoas sejam condenadas ao Inferno, tal como fazem rotineiramente com teólogos e clérigos que alertam sobre o Inferno. Isso
é tão irracional quanto acusar o médico que alerta sobre a baixa taxa
de sobrevivência dos pacientes com câncer de pâncreas de querer que as pessoas morram da doença.
Nenhum católico deseja a condenação eterna de ninguém; eu certamente
não desejo. E afirmo que aqueles que alertam sobre o Inferno têm mais compaixão (não menos) do que os que pregam uma falsa esperança.
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