sábado, 31 de agosto de 2024

Bento XVI e a Missa

Bento XVI 


UM (EX) CATÓLICO PERPLEXADO

 

Os comentários dos leitores na publicação anterior sobre a percepção de Joseph Ratzinger/Bento XVI em relação ao Concílio Vaticano II e à subsequente reforma litúrgica confirmaram o que o artigo dizia: que Ratzinger era uma pessoa desconfortável para quase todos na Igreja. Sendo Bento XVI o papa que mais fez depois do Concílio Vaticano II para eliminar as restrições à Missa Tradicional, e apesar da sua evidente evolução pessoal desde o progressismo na época do Concílio Vaticano II, foram vários os comentadores que ainda lhe pediram mais: que teria celebrado a missa tradicional como Sumo Pontífice da Igreja Católica. 

A este respeito, gostaria de salientar duas questões: a primeira, que como cardeal celebrou a Missa Tradicional em diversas ocasiões. A revista “A Missa Latina”, no seu número 4, de 1995, fez um balanço da visita, em Setembro desse ano, do Cardeal Ratzinger à abadia de Santa Madalena de Barroux, onde no domingo, dia 24, celebrou a Missa Pontifícia segundo o tradicional rito. Na véspera, sábado, 23 de setembro, visitara a abadia feminina vizinha, Nossa Senhora da Anunciação, onde também celebrara a missa tradicional. Anteriormente, em 1990, a convite da Fraternidade Sacerdotal de São Pedro, o Cardeal Ratzinger celebrou a Missa Tradicional no seminário de Wigratzbad (foto). A segunda questão é que ele celebrou estas missas enquanto era Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. Para dar um exemplo, é notório que cardeais como Gerhard Mueller e Raymond L. Burke celebram o vetus ordo; mas nenhum deles ocupa um cargo como o de prefeito da CDF. Mueller era, mas não é mais.

É verdade que Ratzinger não celebrou uma missa tradicional – pelo menos publicamente – como papa, e talvez esse tivesse sido o grande ponto de viragem para uma celebração mais generalizada. Mas se tivermos em conta que quando Dom Schneider - como ele próprio explicou numa entrevista publicada em 2023 - lhe implorou que não distribuísse mais a Comunhão na mão, e que a fizesse apenas de joelhos e na boca, Bento XVI respondeu que eu consideraria isso, mas eu já sabia o quão difícil isso poderia ser, tendo em conta os grupos de pressão que existiam na Cúria e em toda a Igreja. Porém, suportando essa pressão, acabou dando a comunhão de joelhos e na boca no Vaticano. Mas, se essa fosse a situação com a comunhão, podemos imaginar como foi o facto de o Papa ter celebrado publicamente a Missa Tradicional no Vaticano? Digo isso apenas para expor a dificuldade do contexto.

Depois da revisão que fizemos na ocasião anterior seguindo apenas o “Relatório sobre a Fé”, vamos rever outras declarações do Cardeal Ratzinger/Bento XVI sobre a liturgia e, especialmente, a Missa, nas quais creio que é claramente observou seus pensamentos sobre o assunto; o sentido da evolução da sua posição do progressismo para o conservadorismo (devido à falta de controlo na decomposição da celebração) e a sua liberalização da celebração do vetus ordo com o motu proprio Summorum Pontificum, o que se explica, como iremos ver nas mesmas palavras de Ratzinger, pela sua compreensão positiva da variedade dos ritos e, sobretudo, pela sua ideia de continuidade ininterrupta da Igreja e da Missa na história. E também pela sua consideração explícita de que a Missa é o centro da vida católica, que nos foi dada e que não pode ser fabricada. Das leituras seguintes fica claro que as decisões tomadas por Ratzinger tinham o objetivo de buscar a unidade na Igreja e a paz litúrgica.

Na sua autobiografia “Minha Vida”, publicada em 1997, Ratzinger lembrou dos anos do Concílio Vaticano II que “a liturgia e a sua reforma tornaram-se, desde o fim da Primeira Guerra Mundial, uma questão premente na França e na Alemanha”, do ponto de vista de uma restauração tão pura quanto possível da antiga liturgia romana; Soma-se a isso também a exigência de participação ativa do povo no evento litúrgico (...). Não teria ocorrido a nenhum dos Padres ver neste texto “uma revolução” que significaria o “fim da Idade Média”, como na época alguns teólogos acreditavam que deveriam interpretar. Foi vista como uma continuação das reformas feitas por Pio X e levadas adiante com prudência mas determinação por Pio XII. As normas gerais foram entendidas em plena continuidade com aquele desenvolvimento que sempre ocorreu e que com os Sumos Pontífices Pio X e Pio XII se configurou como uma redescoberta das tradições clássicas romanas. (…). Neste contexto, não é surpreendente que a ‘Missa normativa’ que deveria tomar – e tomou – o lugar do Ordo Missae anterior, tenha sido rejeitada pela maioria dos padres convocados num sínodo especial em 1967.

No prefácio da obra do liturgista Klaus Gamber, “A Reforma da Liturgia Romana”, publicada em 1996, Ratzinger afirmou o seguinte: A reforma litúrgica, na sua implementação concreta, afastou-se muito do seu propósito original. O resultado não foi o reavivamento, mas a devastação. Por um lado, há uma liturgia que degenerou em espetáculo, onde se tentou mostrar uma religião atraente com a ajuda de disparates da moda e incitando princípios morais, com sucessos momentâneos entre o grupo de criadores litúrgicos e uma atitude de rejeição ainda mais pronunciada naqueles que procuram na Liturgia não tanto o 'showmaster' espiritual, mas o encontro com o Deus vivo, diante do qual toda 'ação' é insignificante (...). Jungman definiu a liturgia de sua época, tal como era entendida no Ocidente, como uma 'liturgia resultante de um desenvolvimento (...). O que aconteceu depois do Concílio é algo completamente diferente: em vez de uma liturgia resultante de um desenvolvimento contínuo, foi introduzida uma liturgia fabricada. Saiu de um processo de crescimento e devir para entrar em outro de manufatura. Não houve vontade de continuar a evolução e o amadurecimento orgânico do que existe há séculos; “Foi substituída, como se fosse uma produção industrial, por uma manufatura que é um produto banal do momento.” 

Como cardeal e teólogo, escreveu em 1987: “Quanto ao seu conteúdo (exceto algumas críticas), estou muito grato pelo novo Missal, pela forma como enriqueceu o tesouro de orações e prefácios (…). Mas considero lamentável que nos tenha sido apresentada a ideia de um novo livro, em vez da ideia de continuidade dentro de uma única história litúrgica. Na minha opinião, uma nova edição deveria deixar bem claro que o chamado Missal de Paulo VI nada mais é do que uma forma renovada do mesmo Missal para o qual contribuíram Pio X, Urbano VIII, Pio V e os seus antecessores, desde os primeiros história da Igreja. É da própria essência da Igreja estar consciente da sua continuidade ininterrupta ao longo da história da fé, expressa numa unidade sempre presente de oração.”

Em 2007, Bento XVI publicou o Motu Proprio Summorum Pontificum. Este documento concedeu muito mais liberdade para a celebração da Missa de acordo com o Missal Romano de 1962, que ficou conhecido nesta nova legislação como a “forma extraordinária”. “Não é apropriado falar destas duas versões do Missal Romano como se fossem 'dois ritos' – disse o papa na carta Con grande fiducia, que acompanhou o motu proprio; É antes um uso duplo do mesmo rito." 

Uma das grandes preocupações de Ratzinger era a unidade, que distinguia da uniformidade: “Não sou a favor da uniformidade rígida, mas, claro, deveríamos opor-nos ao caos, à fragmentação da liturgia e, nesse sentido, também deveríamos estar em favor de observar a unidade no uso do Missal de Paulo VI. Parece-me que este é um problema que deve ser enfrentado com prioridade: como podemos regressar a um rito comum, reformado (se quisermos), mas não fragmentado ou deixado à arbitrariedade das congregações locais ou de algumas comissões ou grupos de especialistas? (…). A ‘reforma da reforma’ é algo que diz respeito ao Missal de Paulo VI, sempre com este objetivo de alcançar a reconciliação dentro da Igreja, pois neste momento existe uma oposição dolorosa e ainda estamos muito longe da reconciliação”. Em O Sal da Terra (1997), o Cardeal Ratzinger afirmou: “Sou da opinião, sem dúvida, que o antigo rito deveria ser concedido muito mais generosamente a todos aqueles que o desejam. Uma comunidade põe em causa a sua própria existência quando de repente declara que aquilo que até então era o seu bem mais sagrado e mais elevado é estritamente proibido e quando faz com que o anseio por isso pareça absolutamente indecente.” Em God and the World (2000) ele disse que “para promover a verdadeira consciência em questões litúrgicas, é também importante que a proibição da forma de liturgia em uso válida até 1970 [a antiga Missa em Latim] seja levantada”. Qualquer pessoa que hoje defenda a continuidade desta liturgia ou dela participe é tratada como um leproso; Toda tolerância termina aqui. Nunca houve nada parecido na história; Com isto desprezamos e proscrevemos todo o passado da Igreja. Como podemos confiar nela hoje, se as coisas são assim?

No seu conhecido livro “O Espírito da Liturgia” (edição de 2000), lemos: “O Concílio Vaticano I não definiu de forma alguma o Papa como um monarca absoluto". Pelo contrário, apresentou-o como fiador da obediência à Palavra revelada. A autoridade do Papa está ligada à Tradição da fé, e isso também se aplica à liturgia. Não é “fabricado” pelas autoridades. Mesmo o Papa só pode ser um humilde servidor do seu legítimo desenvolvimento e da sua integridade e identidade permanentes (…). A autoridade do Papa não é ilimitada; Está ao serviço da Sagrada Tradição. O Papa não é um monarca absoluto cuja vontade é lei, mas é o guardião da Tradição autêntica e, portanto, o primeiro garante da obediência. A sua regra não é a do poder arbitrário, mas a da obediência na fé. Portanto, no que diz respeito à liturgia, ele tem a tarefa de um jardineiro, e não a de um técnico que constrói máquinas novas e joga as antigas no lixo.

Na carta aos bispos Con Grande Fiducia, que acompanha o Summorum Pontificum (2007), o papa disse: “A respeito do uso do Missal de 1962 como Forma Extraordinária da liturgia da Missa, gostaria de chamar a atenção para o fato que este Missal nunca foi legalmente revogado e, portanto, em princípio, sempre foi permitido (…)". Chego agora à razão positiva que motivou a minha decisão de emitir este Motu Proprio que atualiza o de 1988. Trata-se de alcançar uma reconciliação interior no coração da Igreja (...). Na história da liturgia há crescimento e progresso, mas não há ruptura. O que as gerações anteriores consideravam sagrado permanece sagrado e grande também para nós, e não pode ser totalmente proibido ou mesmo considerado prejudicial de repente. Cabe a todos nós preservar as riquezas que se desenvolveram na fé e na oração da Igreja e dar-lhes o seu devido lugar. 

Preferi não ordenar os textos cronologicamente porque me pareceu que o importante era ver as ideias-chave, indicadas no início. De tudo o que foi lido, fica claro o que apontamos na semana passada, que Ratzinger baseia a continuidade no tema “Igreja”, como muito acertadamente indica o Padre Gabriel Calvo Zarraute. Aqui Bento XVI pretende incorporar todas as mudanças do século XX na tradição da Igreja, mas não consegue resolver a ruptura do princípio da não contradição. Porque, doutrinariamente, há algumas declarações nos textos do Concílio Vaticano II e no Catecismo de 1992 que os papas e concílios anteriores condenaram. 

No que diz respeito à liturgia, assistindo à Missa Novus Ordo e à Missa Vetus Ordo, tendo lido sobre as intenções da reforma e lendo estes textos de Bento XVI, não posso deixar de discordar totalmente da sua afirmação de continuidade como duas formas de celebrar o mesmo rito. O próprio Klaus Gamber afirmou que são dois ritos diferentes. E com o novo rito foi desenvolvida uma nova teologia litúrgica, que obscurece o facto de que a Missa é a atualização do santo sacrifício do Calvário, que o sacerdote atua in persona Christi e isso muda o foco de Deus para o homem; e daí emerge uma antropologia cristã totalmente diferente. É certamente a Igreja, a mesma que Jesus Cristo fundou, mas os erros permanecem e não é possível esclarecê-los até que esta questão da “hermenêutica da continuidade” como afirmou Bento XVI seja resolvida. 

Para concluir, gostaria de comentar que, pessoalmente, e agradecendo a Deus por tudo o que Ratzinger contribuiu como cardeal e como Papa para a liberalização da celebração pública da Missa Tradicional, fico desconcertado ao ver que Bento XVI colocou em igualdade de condições os chamados tradicionalistas (especialmente os lefebvristas) e os modernistas (ou progressistas), como fundamentalistas e como grupos que reivindicavam a propriedade da “fé autêntica”. Não creio que aqueles que tentaram salvar da destruição o património litúrgico que o próprio Ratzinger tanto amou possam ser considerados iguais àqueles que procuraram precisamente a sua destruição. 


Fonte - infovaticana

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