quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

Tomás responde: Pode ser lícito irar-se?

 


Por David

 

Parece que irar-se NÃO PODE ser lícito:

  1. Com efeito, Jerônimo, expondo o texto do Evangelho de Mateus: “Todo aquele que se encolerizar contra seu irmão”, diz: “Certos manuscritos acrescentam: sem causa, mas nos melhores esse acréscimo não existe, sendo a ira totalmente excluída”. Logo, de nenhum modo é lícito irar-se.
  2. Além disso, segundo Dionísio, “o mal da alma é agir sem razão”. Ora, a ira "não obedece perfeitamente a razão”. E Gregório afirma: “Quando a ira anula a tranquilidade da mente, ela, de certa forma, a dilacera e desorienta”. E Cassiano ajunta: “Seja qual for a sua causa, o movimento efervescente da ira cega os olhos do coração”. Logo, é sempre mau irar-se.
  3. Ademais, a ira é “o desejo de punição”, como diz a Glosa a respeito do livro do Levítico: “Não tenhas nenhum pensamento de ódio contra o teu irmão”. Ora, desejar punição não parece ser lícito, pois ela deve ser privativa de Deus, conforme o livro do Deuteronômio: “A mim pertence a vingança”. Logo, parece que irar-se é sempre mau.
  4. Ademais, é mau tudo o que nos distancia da semelhança com Deus. Ora, a ira sempre nos afasta dessa semelhança, pois Deus “julga com serenidade”, diz o livro da Sabedoria. Logo, irar-se é sempre mau.

EM SENTIDO CONTRÁRIO, Jerônimo, comentando o Evangelho de Mateus: “Quem se ira sem razão, será culpado; mas quem se ira com razão, não o será, pois sem a ira, a doutrina não aproveita, os tribunais não subsistem e não se reprimem os crimes”. Logo, irar-se nem sempre é coisa má.

A ira, propriamente falando, é uma paixão do apetite sensitivo. Dela vem o nome da potência irascível, ao tratar das paixões. Ora, quanto às paixões da alma, é preciso observar que o mal pode residir nelas de dois modos. Em primeiro lugar, em razão da espécie mesma da paixão, que se determina pelo seu objeto. Assim, algum mal é da espécie da inveja, porque esta é a tristeza causada pelo bem dos outros, o que, por si mesmo, contraria a razão. Por isso a inveja, segundo Aristóteles, basta nomeá-la e já nos desperta a lembrança de algo de mau. Isso, porém, não se aplica à ira, que é um desejo de punição e desejar punição pode ser bom e pode ser mau.

Em segundo lugar, o mal pode estar numa paixão quantitativamente, isto é, por excesso ou por deficiência. Assim, pode haver mal na ira, quando, por exemplo, a pessoa se encoleriza mais ou menos do que exigiria a reta razão. Caso, porém, se irasse dentro do razoável, mereceria elogio.

Quanto às objeções iniciais, portanto, deve-se dizer que:

  1. Os estoicos nomeavam a ira e as demais paixões como emoções que escapam à ordem da razão, e, por isso, as reputavam más, como foi dito tratando das paixões. É nesse sentido também que Jerônimo tomou a ira, pois se refere àquela raiva com que nos voltamos contra o próximo, desejando-lhe o mal. Mas, segundo os peripatéticos, cuja opinião agrada mais a Agostinho, a ira e as outras paixões da alma são movimentos do apetite sensitivo, sejam ou não moderados pela razão. E, nesse sentido, nem sempre a ira é má.
  2. Pode a ira relacionar-se de dois modos com a razão: primeiro, precedendo-a, e então a desvia da sua retidão e é um mal; em segundo lugar, vindo depois dela, quando o apetite sensitivo se põe contra os vícios opostos à razão, e aí se tem a ira boa, chamada “ira por zelo”. Gregório fala assim dela: “Cumpre ter o máximo cuidado para que a ira, tomada como instrumento da virtude, não prevaleça sobre a inteligência, nem tome a dianteira como senhora, mas que seja como uma escrava disposta a servir e sem se afastar jamais da razão”. Essa ira não suprime a retidão da razão, embora lhe acarrete, no momento da ação, algum impedimento. Por isso, Gregório, no mesmo lugar, diz que “a ira por zelo turva os olhos da razão, ao passo que a ira provocada por vício, cega-os”. Não vai, porém, contra a essência da virtude que se suspenda, momentaneamente, a deliberação da razão, na execução do que foi por ela determinado, pois também a atividade artística ficaria impedida na sua execução se, quando deve agir, se pusesse a deliberar sobre o que deve fazer.
  3. Não é lícito desejar a vingança buscando o mal de quem deve ser castigado. Mas é louvável desejar punição, para que se corrijam os vícios e se preserve o bem da justiça e para tanto pode tender o apetite sensitivo, enquanto movido pela razão. E quando a punição é praticada num julgamento correto, ela vem de Deus, cujo instrumento é o poder punitivo, como diz a Carta aos Romanos (13,4).
  4. Devemos e podemos assemelhar-nos a Deus, pelo desejo do bem. Não podemos, contudo, de modo algum, assemelhar-nos a ele pelo modo de desejar, posto que em Deus não há, como há em nós, o apetite sensitivo, cujos movimentos precisam obedecer à razão. Por isso, Gregório diz que “a razão se alteia mais forte contra os vícios, quando a ira está a serviço dela”.

Suma Teológica II-II, Q158, A1

 

Fonte - sumateologica

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